sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

FITAS DE MÁQUINA

Não digo inseparável que é exagero, mas uma assídua companheira tem sido nos últimos anos a minha máquina de escrever. Pondo as palavras no papel, já tem conferido existência a contos, crônicas, clecs e poemas que, de outro modo, não fora ela, acabariam por certo caindo na vala do esquecimento. E, por isso, sou-lhe grato. Externando essa gratidão, via certas decisões inequívocas: não levar trabalho (literário) para o trabalho, não deixar a gravata enganchar no rolo da máquina, não aderir ao computador com impressora etc.
O fato é que comigo se passa o seguinte. Achar que um texto recém-concluído, desvirginando a brancura do papel, por si já se constitui um antegozo. Sim, porque o gozo propriamente dito dar-se-á apenas por ocasião da publicação. Ah, que bom se houvesse nesses casos a ejaculação precoce... Não ficando o autor à espera de uma publicação que tarda e, às vezes, nem sequer acontece.
Eis no que divirjo da poeta norte-americana Emily Dickinson: a publicação é parte necessária do destino de um escritor.
Mas, falando ainda da companheira, ela não é de ter muitas exigências. Quando apresenta algum defeito, disso se encarrega o especialista. No dia seguinte, lá estou eu com a máquina como se nada houvesse acontecido. Todo irrequieto, debruçado sobre ela, a escrever mil caracteres por hora. Esperem aí: mil é muito? é pouco? Não faço a menor idéia do que representa essa vazão datilográfica. Oscar Wilde se deu por satisfeito porque, ao longo de uma manhã, escreveu uma vírgula e, à tarde, a desescreveu.
Bem, nesse meu afã, somente uma coisa poderá me interromper. Haver chegado a hora de trocar a fita.
Meu Deus, como detesto o servicinho sujo! E fico a adiar o momento em que vou fazê-lo, mesmo sabendo que é apenas uma questão de tempo. Bater forte nas teclas ajuda um pouco, até certo ponto. Mas... quando a gente vai, descobre que tem de teclar duas, três vezes cada letra para que ela saia no papel, aí não dá mais. É fazer hoje o que devia ter sido feito ontem, anteontem... Meio parecido, aliás, com o que também acontece a meu violão. Apenas quando a pátina (gostaram?) já recobre as suas cordas, abafando-lhe o som, é que encordoamento novo ele recebe.
Máquina de escrever com fita nova está tudo resolvido. Não, não está. Por vezes, a fita substituta é tão ruim de tinta, que tudo continua como dantes. Com as letras sendo "anemicamente" impressas no papel, para desespero de quem, depois de tanta relutância, é que se abalançado havia a substituir a fita. Até que, consumidor logrado, sabem qual foi uma vez a minha reação? Escrever no ato um candente protesto ao fabricante - e com a fita de carregação ainda na máquina, esse o meu azar!... Porque o fabricante, obviamente, deve ter recebido a minha carta de reclamação... em branco.
E ficou o escrito pelo não escrito.

*****

Coube a um brasileiro, o padre João Francisco de Azevedo, a invenção da máquina de escrever. Idealizado e construído à mão por ele, este invento figurou na Exposição Agrícola e Industrial de Pernambuco, em 1861. Registro o fato porque muitos ignoram quem é o inventor e - mais ainda - que ele é brasileiro. Padre Azevedo, apesar de festejado em sua época pelo que fez, nenhum lucro material veio a auferir com o invento.
E a gente logo associa a máquina de escrever ao piano. Pois, como o instrumento musical, a máquina através de suas teclas produz uma espécie de música. Tlec, tlec, tlec... Só que bastante monótona a musiquinha, não acham? Uma tecla que aperto tem o som parecido com o da seguinte, assim por diante.... Máquina de escrever versus piano, eita comparação gasta e antiga! Na época de sua invenção, eis como a "Revista Ilustrada" já descrevia a máquina do Padre João Francisco de Azevedo:
"O sistema geral é quase idêntico ao dos pianos, isto é, por meio de um teclado, convenientemente adaptado, consegue-se transmitir ao papel os caracteres correspondentes, formando palavras, linhas, parágrafos, enfim, a escrita regular de uma ou mais páginas. O teclado está disposto em quatro pequenas carreiras, tendo cada tecla a indicação de uma letra; assim pois, tocando-se uma tecla, a letra correspondente vai imprimir-se num papel que envolve e desliza por um rolo no cimo do aparelho. Para a separação das palavras, basta tocar em uma pequena régua colocada ao fundo do teclado."
É... a máquina de escrever nem de longe tem os recursos do piano, instrumento que sola e harmoniza. Em compensação, ganha dele em materialidade. Pois, enquanto vou tlec-tlec-tlec solando, vou também com ela criando a própria "partitura".
Não fora assim, e pedindo vênia à minha "Olivetti" pelo que vou dizer, melhor seria compará-la a uma concertina de botão.

Publicado no jornal O POVO, em 07/01/92, e no livro MEDITAÇÕES

MEDITAÇÕES

Antologia de prosa e poesia publicada em 1991 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Patrocínio: UNIMED de Fortaleza.
Apresentação: Darival Bringel de Olinda.
Autores: Celina Corte Pinheiro, Caetano Ximenes Aragão, Dalgimar Beserra de Menezes, Francisco Medeiros, Francisco Monteiro, Geraldo Bezerra da Silva, Hamilton Monteiro dos Santos, Heládio Feitosa de Castro, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Paulo Sérgio de Oliveira Moura, Pedro Henrique Saraiva Leão, Tarcísio Diniz e Walter Miranda.
Composição: Gláucia Saraiva.
Arte-Final: Renê Sales e Marcos Antônio.
Capa e Ilustrações: Roberto Alencar e Isaac Rocha (médicos).
Impressão: Gráfica HG.
Livro com 224 páginas.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O VENDEDOR DE ESTRELAS

Era mais um dia de tédio em Letícia, Colômbia. No restaurante do Hotel Anaconda, com o olhar pousado sobre o Rio Solimões, eu sorvia vagarosamente a quarta tulipa de suco de carambola. Contemplava o rio, seu eterno fluir na calha que a natureza lhe reservara, seu manto majestoso cor amarelo-tartaruga... De quando em vez, um boto na vadiação rompia o espelho das águas para quebrar a monotonia. Ou, então, levada de roldão pelo rio passava alguma terra caída - ilhota móvel de vegetação. Em Letícia imperava o tédio.
No cais fluvial, uns nativos tentavam meter uma robusta anta numa embarcação, a qual mais parecia uma Arca de Noé numa versão miniatural. (Mas não havia outros animais a embarcar, nem Noé.) Já bastante ferida pelos puxões imprimidos através das cordas, a anta ainda oferecia uma grande resistência. Homens e animais numa cena antológica. Depois de hora e meia de esforços inúteis, os homens deram um tempo. E entraram numa tasca onde rolavam estridentes cumbias e o estoque da "Costeña" era bom, generoso. No cais, ficou só a pobre anta inventariando os ferimentos.
Nisso, alguém me interrompeu nas divagações:
- Sr. Silva, Paulo G C ?
Bem, respondi que sim. Ao mesmo tempo em que deduzi o seguinte: ele catara o meu nome num catálogo telefônico. Em seguida, na qualidade de brasileiro cordial ainda não desnaturado pelo meio colombiano, eu lhe ofereci uma cadeira (para que sentasse, obviamente). Mas, ao fazê-lo, notei que ele sobraçava um imenso livro de capa sépia, de onde se desprendiam traças agonizantes. Percebendo também a sua intenção de abri-lo, pedi a um garçom que esvaziasse a mesa. Mas isso depois de conferir que o recém-chegado não desejava me acompanhar numa rodada de suco de carambola.
Ele então me deu, cuidadosamente dobrado num dos cantos, o seu cartão de visita. No qual se lia:

JAMIL BEN JAMIL
Vendedor de Estrelas

Mal refeito da surpresa que tão inusitada apresentação me causara, comecei a apreciar o homem que se dizia chamar Jamil Ben Jamil. De estatura mediana, ele tinha presumíveis qüarenta anos, tez morena, cabelos castanhos e mechados, lábios pouco carnudos e um queixo proeminente. Os olhos, bastante encovados, lembravam os de uma pessoa da qual se diz que chora mais cedo. Quanto ao nariz, sugeria ser ele (e por extensão o dono) natural da Ásia Menor. E furto-me a descrever o seu traje, uma vez que ele se vestia de um modo absolutamente comum para a região amazônica, o cachecol inclusive.
Ele era extremamente loquaz. E presto ao folhear o livro de capa sépia, imenso livro só de mapas estelares, tabelas de luminosidade, espectros, gráficos de distâncias, paralaxes - enfim, um catálogo estelar. Ao ritmo de seus dedos ágeis, meninos, eu vi aparecer e desaparecer no catálogo estrelas de todas as magnitudes. Enquanto ele ia dizendo, num fôlego único:
- Temos aqui a Alfa Centauro, uma estrela tripla a 4,3 anos-luz da Terra, mas se o senhor prefere uma estrela dupla disponho de Antares, que é uma supergigante, e se está querendo algo melhor vendo Sirius, a estrela mais brilhante do céu, a apenas 8,5 anos-luz daqui, ou mesmo Regulus, que se estivesse situada a igual distância seria um astro seis vezes mais brilhante...
Sem dúvida, Ben Jamil era um brilhante vendedor. E, para que ele não se esbaldasse em vão, prometi a mim mesmo que compraria dele algum barato celeste. Nem que fosse uma estrela cadente. Antes, porém, tinha curiosidades a matar. E lhe pedi que falasse um pouco sobre a sua profissão de vendedor de estrelas. Ben Jamil não se fez de rogado:
- Estou nesse negócio há mais de dois mil anos. Mas não me refiro a anos-luz, pois estes não medem tempo e sim distância. Pois, como eu ia dizendo, há mais de dois mil anos que montei esse negócio. Foi no tempo de Hiparco, o que organizou o Almagesto. No início, eu só vendia os corpos celestes das longínquas galáxias, as estrelas embuçadas para o olho humano quando nu. Até que, na centúria passada, cheguei às estrelas visíveis, de maior aceitação pelo público comprador. E se a estrela pertence a uma constelação zodiacal, então nem fala. A Beta da Constelação de Escorpião, por exemplo, comprou-me o Salvador Dali por uma quantia astronômica, uma dinheirama que só vendo...
Faltava apenas saber qual era a minha garantia numa transação estelar. Ben Jamil esclareceu:
- Recebe o certificado legal. Mais: uma estrela, assim que é vendida, ela se apaga no firmamento. E fica apenas o buraco negro, fácil de ser conferido num observatório. Eis como provo ao comprador a lisura de meu negócio. Então, Sr. Silva, Paulo G C , pode escolher e comprar sua estrela sem susto nem sobrosso.

*****

O vulgo, cada vez que olha para o céu e nele constata estrela de menos, que faz ele? Bota a culpa na poluição, "a feia fumaça que sobe apagando as estrelas". Até Caetano Veloso caiu na esparrela. Mas eu, não, pois sei quem responsabilizar pelo fato. Ben Jamil, o vendedor de estrelas, que prossegue fazendo seus bons negócios. Eu mesmo lhe comprei a estrela Epsilon do Cruzeiro do Sul que estava com o preço remarcado (para menos). A Epsilon, também chamada de Intrometida, é aquela quinta estrela mal posicionada (abaixo do braço da cruz), que compromete a Constelação do Cruzeiro do Sul. Pois é, tirando a Intrometida do céu austral, eu penso que dei a minha contribuição - estética - para o melhoramento de um dos símbolos da pátria.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O NOME DA COISA

Carolino era atendente num hospital psiquiátrico em Petrópolis. Moreno, atarracado, olhos amendoados, ele me auxiliava na visita médica aos pacientes. Mas não tinha lá muita instrução.
Uma vez lhe pedi o tensiômetro.
Como o aparelho não aparecesse, repeti o pedido. E ele... nada.
Aí, já estranhando a demora (por ser ele sempre muito solícito), enderecei-lhe um olhar inquiridor. A ver porque, em não estando tão atarefado assim, Carolino remanchava... Quando dei de cara com o atendente apalermado, o ar de quem não estava entendendo nada.
Foi preciso, então, que eu lhe explicasse:
- O aparelho de tirar a pressão, seu Carolino.
- Ah, bom.
Não sei como anda hoje o bom Carolino. Mas tomara que tenha evoluído na compreensão dos nomes do instrumental médico, a ponto de não fazer feio quuando lhe pedirem o... esfigmomanômetro.
Que, meio sobre o pedante, vem a ser também o tensiômetro.

No museu do Nirez tive a oportunidade de conhecer um rolo fonográfico. Tratava-se de uma peça cilíndrica, que tinha um registro musical, do tempo em que não existia o disco de cera. Com o advento deste, o rolo saiu de cena. Entre os vários motivos, por ser menos prático do que o disco. O rolo fonográfico, por exemplo, não permitia a feitura de cópias. Assim, cada um deles era gravado isoladamente, com o cantor e a orquestra se esfalfando por uma tiragem que não era lá grande coisa.
Pois bem, ganhando ou adquirindo (não recordo o detalhe) o tal rolo, Nirez precisou remetê-lo. do Rio de Janeiro para Fortaleza onde fica o seu inigualável museu. E, para tanto, procurou os serviços de uma companhia aérea bastante conhecida.
No balcão da companhia, por ser de praxe, uma funcionária pediu a identificação do objeto. E fez anotações.
Tempos depois, em Fortaleza, ao conferir a raridade que em boa hora conseguira para o acervo do Museu Cearense da Comunicação, Nirez se surpreendeu. Com o nome que constava no aviso de remessa desse objeto: rolo pornográfico.

Um matuto contava as suas proezas para uma turma da cidade. E a turma, achando aquilo pitoresco, de gravador ligado ia registrando tudo.
Finda a prosa, alguém resolveu conferir a gravação. Para espanto do tabaréu que, até então, não sabia que troço era aquele. E, por conseguinte, qual a serventia que o troço apresentava.
(Por causa de que antes não lhe haviam explicado, não é?!)
Ora, pois não é que o objeto era capaz de repetir, tintim por tintim, como fora cada um dos seus "causos"!
- Eita bichim enredeiro!
Foi como o matuto desafrontou a coisa.

Esta é de corredor de hospital. Um médico, numa roda de colegas, assegurava a existência de um aparelho capaz de dispensar a canseira dos estudos. Isso lá nos Estados Unidos. Onde o sujeito, durante as horas que estivesse a dormir, poderia receber do prodigioso aparelho toda a sorte de informação. Do assunto que quisesse e escolhesse, ao se conectar no equipamento. E que esforço mnemônico, por conta desse invento, passava a ser coisa do passado, meu irmão.
Bastava o usuário do aparelho, através de hot dogs colocados nos ouvidos, blá, blá, blá...
É claro que se tratava de um "cochilo" do contador de novidades. essa história de hot dogs nos ouvidos... Mas que ficou gozado, ficou. Principalmente porque deu margem a outro acontecimento, se bem que na base da adesão.
Alguém, assim que a roda se desfez, convidar os demais a ir à cantina. Para comer uns headphones.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

ALGARAVIA

UM PEQUENO CONTO ÁRABE
Era um desses albergues onde só vai dar o costado uma ou outra alma-perdida. Apesar disto, tomado de repentino e inesperado alento, Al-Cunha bateu na aldrava. E quem veio atendê-lo, após alongado tempo, foi o próprio dono da estalagem. Um albino de nome Al-Meida, o qual, aliás, se mostrou receoso em deixá-lo entrar. No máximo, o recém-chegado ficasse no alpendre e olhe lá. Mas, no que Al-Cunha lhe houvesse perguntado se tinha cara de aldravão, se aparentava ser algum escravo do álcool, se portava algum feio aleijão... "Alastrim" foi a resposta. Estava ocorrendo uma epidemia da doença na aldeia.
Ora, Al-Cunha atravessara terras alagadas, contornara despenhadeiros alcantilados, subira morros alcandorados, percorrera campos alcantifados... para agora estar ali, com o corpo alquebrado, a pedir o inadiável repouso... E o alojamento lhe era negado naquela... naquela aldeola. Sob o pretexto de que vigorava uma lei de quarentena assinada pelo alcaide - uma estúpida lei! Que não relaxava nem para o seu cavalo Al-Faras. Aí, para não aloprar, e mesmo porque as almorreimas já o incomodavam, ele continuou desapeado. E, na expectativa de que Alá interviesse em seu favor, até retirou o alforje da montaria.
Uma chuva começou a cair ensombrecendo o dia. E nada de se notar mudança no alvedrio do opinioso albergueiro - que inclusive gracejou: "A chuva... que há com a chuva? Do telhado ela cai no algeroz e vai se acumular na almácega, o que me garante por algum tempo água em abundância..." Ora, depois de receber tamanha alfinetada, a Al-Cunha só restava usar de uma aleivosia. Dizer a Al-Meida que era um mestre da aleuromancia (nome que os alfarrábios dão à arte de predizer por meio da farinha de trigo). Com esse tipo de charla, quem sabe, ele... Mas não chegou mesmo a ser preciso, entrou em cena Al-Merinda.
Alvíssaras! Pois a mulher de Al-Meida, metendo-se na altercação, conseguiu-lhe a hospedagem (não obstante o risco de o albergue vir a perder o alvará). E o cansado viajor, para compensar o incidente, foi a seguir recebido com um fino repasto. À base de almôndegas, alface (tornado mais palatável pelo azeite guardado numa almotolia) e alcaparras. Alfenim foi a sobremesa e, para rebater tudo, chá de alfavaca. Já Al-Faras foi deixado num terreno alambrado a se regalar com uma generosa alfafa. E um dedicado almocreve, por meio de uma almofaça, cuidou de limpar os pêlos da alimária.
Findo o repasto, Al-Cunha entrou na alcova que lhe indicaram. Mas, antes de se deitar, verificou se havia num alguidar água bastante para qualquer precisão. Feito isso, tirou as alpargatas. E, estirado numa alfombra, pôs-se a dorminhar com a cabeça sobre um almofadão. Até que... altas horas, após haver sido despertado por gemidos lúbricos, inevitáveis pensamentos lhe vieram à mente. Que espécie de algolagnia devia sofrer Al-Merinda para se entregar ao albergueiro e encontrar nisso prazer? Ainda mais que Al-Meida, a pele enfeada pelo que parecia um alvaraz, exalava o mais desagradável almíscar (que lembrava o de um aligátor).
Ah, Al-Merinda! Como ele desejou ter Al-Merinda em sua alcova, possuir aquele corpo alabastrino... E, por muito pouco, aquilo que ele almejava não se tornou realidade. Quando ela, pé ante pé, adentrou o quarto mal alumiado... E ele, mais que o vislumbre da sua aproximação, foi... sentiu-lhe o cheiro bom de alfazema. No entanto, Al-Merinda a ele não se achegou, em vez disso se dirigiu a uma alcofa onde se encontrava as vestes de Al-Cunha. E, pensando que ele dormia, pôs-se a revirar a algibeira do seu caso de algodão, aluindo assim a própria reputação.
Então, aos primeiros albores do dia, Al-Cunha decidiu prosseguir viagem. Só que, aliviado do porta-moedas por Al-Merinda, não haveria como ele pagar o almoço, o aluguer... E o alarde ficou por conta da feroz alcatéia que o dono da estalagem lhe botou no encalço. Com Al-Cunha, é claro, dando tudo de si para, como diz um provérbio de fino álbum, não bater a alcatra naquela terra ingrata.

Publicado em O POVO CULTURA, em 09/09/89, e no livro EFEITOS COLATERAIS

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

MOSCA NA SOPA

Comecemos por aquilo que contém a mosca, isto é, a sopa. A qual já se encontra bem na sua frente, servida em prato fundo. Apenas aguardando que você - com a fome dos diabos em que se acha - meta logo a colher. Hum... tem cheiro agradável, parece apetitosa e há tentadores pãezinhos na mesa para o acompanhamento. Comme il faut, diria o cronista mundano. E assim poderemos saltar a etapa em que você teria gritado:
- Garçom, o meu prato está molhado.
E ele:
- É a sopa.
Sim , você já se encontra depois do equívoco em questão. Quando já está prestes a sorver a primeira colherada de uma refeição que consagrou o Zarur. Mas aí... de um modo absolutamente frustante, você constata: uma mosca na sopa! Uma hórrida mosca que só Deus sabe dos monturos e de outros locais abjetos por onde andara (o inseto, bem entendido). Até que, num adejo não bem calculado, acabou sendo - como disse o Raulzito - a mosca que pousou na sua sopa. Nojo, asco, repulsa... Pensar que você jamais entra num frege-moscas, que só vai a restaurante limpo, bem administrado e com chêf (a quem manda recomendações ao se retirar satisfeito).
Então, diante do desagradável incidente, agora é chamar o...
- Garçom.
Mesmo sabendo que ele, para enfrentar uma situação dessas, dispõe de mais justificativas do que imagina a nossa vâ gastronomia.
Primeiro, ele pode querer negar o fato (apesar de que o fato está claro, óbvio, patente).
- Não é mosca, é o desenho do prato.
- Mas... como? Está se mexendo!...
- É desenho animado.
Segundo, ao invés de negar o fato, ele pode querer minimizá-lo dizendo que é apenas um mosquito... Rá, rá, rá, rá, aquela falsa premissa de que é somente um elefante que engasga o cliente. Terceiro, ele pode - mesmo que fique de ponta-cabeça a ordem natural das coisas - querer alegar que a mosca é que deu sopa. Quarto, pode o manhoso do garçom querer sopitar (epa!) você, com palavras do tipo "calma, mosca não come muito!" E por aí...
Agora, se ele é um cara verdadeiramente esperto, passado na casca do alho como se diz, é que o incidente vira... uma sopa no mel. Pois o garçom, a propósito de que o acontecido também promove a casa, eis que o dito-cujo certamente dirá:
- Ora, mosca também gosta do que é bem feito.
Vamos e venhamos: você não é mosca morta, mas o homem também não é sopa!
Dá para ver que ele faz um tipo imbatível na argumentação. Capaz de, entre outras proezas, pegar mosca a vinagre.
Por isso, o importante é você não perder o fair-play:
- Garçom, a mosca acaba de morrer afogada na sopa. Traga outra.
Que pode ser outra sopa, outra mosca... Ou, inevitavelmente, uma com a outra.

Publicada no jornal O POVO, em 07/09/90, e no livro EFEITOS COLATERAIS

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O BRASILEIRO CORDIAL

Dizer que o brasileiro é cordial é incorrer num mito. Para início de conversa, ele não tem consideração com o próprio corpo. E só porque um dia lhe cortaram o cordão umbilical, ele então acha que pode fazer tudo. Pôr o dedo na ferida, torcer o nariz, bater perna na rua, sacudir as cadeiras, emprenhar pelo ouvidos, dar a mão à palmatória, queimar os miolos, as pestanas etc. Inclusive fazer corpo mole.
Atire a primeira pedra quem ainda não levou uma facada do brasileiro! Ou, por causa dele, não haja se metido numa fogueira, segurado um rabo de foguete.... Sobre ter o calo pisado, idem. É, os outros que o digam. Pois o brasileiro, além de assassinar o Português, de gastar o Latim, vive arranhando o Inglês, o Francês...
(O demônio não é tão feio, mas quem o pintou, hein?)
O desprezo que ele tem pela ecologia! Do contrário, ele não amolaria o boi, não afogaria o ganso, não cutucaria a onça com a vara curta, não deixaria a vaca ir para o brejo... Ah, o "não matarás" não é para o brasileiro, que vive matando cachorro a grito. E a cobra (que ele mata para mostrar o pau) e os coelhos (que ele mata com uma só cajadada) sabem disso perfeitamente. Como os sapos que ele também engole. É pouco? Pois o brasileiro dito cordial ainda gosta de dar no couro e ficar por cima da carne seca.
Que vexador o brasileiro! Tenha vida ou não, um ser não existe para virar gato e sapato. E tirar o cavalo da chuva até que melhora a imagem do brasileiro. Porém, ao dar com os burros n'água, ele volta a danificá-la.
Vamos ver, agora, se a flora lhe consegue escapar. Bem, descascando o abacaxi, confundindo alhos com bugalhos, torcendo o pepino (de pequenino, meu Deus!), o brasileiro prova que não.
Para ser exato, nem as coisas inanimadas escapam à sanha do brasileiro cordial. Senão, vejamos:
Quem bate na madeira, malha em ferro frio, entorna o caldo e não deixa pedra sobre pedra? Quem rói a corda, morde a isca, põe água na fervura e arrebenta a boca do balão? Quem joga dinheiro pela janela, combate moinhos de ventos e queima os últimos cartuchos? O brasileiro, evidentemente. Que, achando pouco, ainda dá uma no cravo e outra na ferradura, atira no que vê e acerta no que não vê.
E existe mais o que dizer sobre o brasileiro. Que mata o tempo, a fome, a sede, sufoca a emoção, abate os juros, suja a barra, fura o combinado, engole as indiretas, esconde o jogo e torce o sentido das palavras: é muito cordialismo... faltando.
Ah, sim. Como se não bastasse tudo o que faz, o brasileiro de modo sistemático enforca a sexta-feira.

Crônica publicada em VIDA E ARTE, de O POVO, e no livro EFEITOS COLATERAIS

EFEITOS COLATERAIS

Antologia de prosa e poesia publicada em 1990 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Autores: Celina Corte Pinheiro, Geraldo Bezerra da Silva, Hamilton Monteiro dos Santos, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Paulo Sérgio de Oliveira Moura, Pedro Henrique Saraiva Leão, Sebastião Diógenes e Tarcísio Diniz.
Composição: Glauco Sales e Irapuan.
Arte-Final: Glauco Sales.
Capa: Roberto Alencar (médico).
Livro com 130 páginas.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

MINHA HISTÓRIA

Teria oito, nove anos quando um jornal de Fortaleza publicou um poema de minha lavra. Por uns tempos circulei com um recorte do jornal, mostrando-o a todos que a mão alcançava. Na escola risonha e franca, então ninguém escapou. E as pessoas sabiam ser elogiosas, o peito era uma festa. Nele, ainda hoje ressoam aqueles acordes lisonjeiros!... Bem, eu não mostrei o recorte ao Agripino Grieco. Quem o verrinoso Agripino pegava pela proa, ficava depois (se já não estava antes) fazendo água. Com oito, noivo anos, eu não deixava nem que me limpassem as cracas!...
Eram verdadeiramente generosos os espaços dos jornais, mas a criança publicista parou aí. Aliás, hoje ressurge perguntando: que fim levou o recorte com seus versos? O recorte que guardava como a um cimélio... Se, distraidamente, o pus entre as folhas do Thesouro da Juventude (dezoito volumes), só um Theseu dos sebos poderá encontrá-lo. Mas, se o comeram as traças, que baita indigestão elas não tiveram!... Não, eu não vou procurar nas hemerotecas aquilo que foi a minha estréia literária. Primeiro, por não acreditar que afora o afetivo outro valor tenha. E, segundo, por ser uma tarefa a exigir paciência beneditina, qualidade que eu não tenho. No futuro, quem sabe, alguém que use um sofisticado detector de poesia infantil poderá fazê-lo. Com esta finalidade: censo das musas dos anos cinqüenta.
A quadra ginasial! Atravessei a quadra vidrado em Malba Tahan. Os contos orientais de Malba Tahan (pseudônimo do brasileiríssimo Prof. Júlio César de Melo e Sousa) tomaram conta da minha jovem imaginação. Imitando o mestre, tratei logo de arranjar um pseudônimo bem árabe. Era... está bem, como memorialista estou longe de alcançar Pedro Nava. O fato é que escrevi uns curtos contos em que o leitor, a todo instante, tropeçava em Maktub!, pela glória da Caaba e Inch'Allah! Eram lidos - com exclusividade - por um colega de nome Mesquita, no Colégio Cearense. (Que Allah, o Misericordioso, o proteja!) Em contrapartida, Mesquita me fazia ler - também com exclusividade - os contos dele. Outro regionalista árabe, com pseudônimo e tudo!
Um dia meti o pé na estrada da vida para a caminhada tirana. Da mochila, comecei a extrair as mais líricas imagens. Não contente com isso, ainda deambulei pelos céus e ainda deambulei nos mares, tudo em busca do lirismo. Era preciso cantar as raparigas em flor. O ar meio lorpa, versificando no quatro, quatro, três, três, eu ardia numa estranha febre. A febre causada pelo Sonetococcus brasiliensis, se engano não cometeu o esculápio que me socorreu. Mas, fiquei bom do febrão - com imunidade definitiva. E depois disso, por muito tempo, só quis saber da charada, da carta enigmática e do logogrifo. E do poema-piada, mas este quando estava na veneta.
Sobrevieram os anos verdolengos. Vestibular, Faculdade de Medicina, estágios, concursos públicos, plantões... uma canseira, meu irmão. Foram anos em que esqueci a Harmonia nos braços da Verdade, ou nos braços da Sósia da Verdade, sei lá... A bem dizer, eu não a esqueci totalmente. Em Fortaleza Oeste, montei casa para Euterpe. E com Euterpe o fauno se desenfadava de Bichat, Osler, Morgagni, Freud, a curriola esmeraldina. O leitor aqui me dispense de contar os encontros clandestinos com Euterpe, a musa que preside a Música. É assunto para outra ocasião.
De volta à Literatura, assumi para todos os efeitos ser um principiante. E comecei a escrever pensamentos, com a idéia de mais tarde reuni-los num pequeno livro. Um livreco a ser chamado "Pensamentos, Palavras e Obras". Depois, viriam os contos, as novelas e os romances, nesta ordem. Mas, o leitor repare no que há tempos disse um plumitivo de Pindamonhagaba: "Nos, os principiantes, devemos começar pelo princípio, pelo primeiro degrau; coisinhas leves, pensamentos; depois sonetos; depois contos e por fim novelas e romances." O azar do plumitivo foi comentar isso para Monteiro Lobato. E o autor de "A Barca de Gleyre", em carta para o confrade Godofredo Rangel (30/08/1909), registrá-la na íntegra. Com esta ironia final: "Ele andava com uma trena no bolso." Cáspite!
Mas, separando o escritor de um reles plumitivo, há também um detalhe crucial. O célebre estalo, como o que abriu a inteligência do Padre Antonio Vieira. Pois comigo aconteceu um fato que talvez me ponha na primeira categoria. Foi quando a escrivaninha do meu livre-pensar, não resistindo à pressão dos meus cotovelos, arriou com grande estrondo. Assim que me recompus, eu que antes só escrevia pensamentos de pequena voltagem, logrei a redigir a primeira crônica - de duas laudas! Fadiga da madeira, não vale, dirá um crítico de plantão. Está bem, mas foi o mais próximo a que já cheguei de um estalo de Vieira.
Agora, Carlos Augusto Viana, o editor do "DN - Cultura", me liga a cobrar (epa!) uma maior regularidade nas colaborações. E pede que eu saia do meu habitual estilo condensado, uma vez que me garante um bom espaço gráfico, coisa de mão-cheia. Sei não. Se, por um lado, prestigiando-me o autor de "Primavera Empalhada" me deixa em estado de graça, por outro, me põe um peso enorme sobre os ombros. O peso do empreendimento difícil. É que a vaca sagrada, donde tiro o leite (condensado) do humor, tem lá suas imprevisibilidades. Às vezes, estou no melhor da ordenha e a danada recolhe as tetas. E isto para não falar do pior. Quando ela escoceia o balde, derramando tudo.