sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A PRIMEIRA CIRURGIA DO MUNDO

Eu não entendo os criacionistas. Eles não compreendem o conceito de um macaco evoluir para um homem, mas não têm nenhum problema para admitir o de uma costela se transformar em uma mulher. Jonco Stl

Estava Deus posto em sossego num penhasco cheio de musgos, apreciando o seu trabalho ecológico de seis dias, quando percebeu a aproximação de alguém. Um ser bastante diferente dos outros criados por Ele - era bípede, quase pelado - que reconheceu de pronto: (1) Adão.
O jeito dele, meio malandro, era de quem vinha pedir alguma coisa, sacou logo Deus.
Acontece que Adão, apesar do desembaraço com que circulava no soçaite animal, (2) na frente do Todo-Poderoso tinha lá sua inibição: ficava um sujeito sem verbo. A saída, nessa situação, era que o Sujeito, também chamado Verbo, tinha o Predicado de ser um bom puxador de diálogo:
"Que cara é essa, rapaz?"
(Adão começava aqui...
"Que cara é essa, rapaz? Não está gostando do Paraíso?"
... e aqui terminava de susPIRAR.)
"Sabe, Deus, é que eu tenho notado que todo bicho por aqui têm uma companheira... Menos eu que, para ser sincero, já ando farto desse tal prazer solitário!" (3)
Deus não se abalou com a objetividade do recém-chegado. Recordou-se de que, ao fazer Adão, (4) considerara um empreendimento perigoso e de resultado incerto. Preferiu, entretanto, não mencionar isso pois, certamente, o bicho-homem ficaria magoado. Afinal, ele estava vivo, sadio e chutando por aí...
"Não houve esquecimento de minha parte, mentiu Deus. (5) Apenas me reservei o direito de criar sua companheira em outra oportunidade."
"E quando vai ser?"
"Até agora... desde que você me fale de suas preferências."
Enquanto Adão sentava-se ao lado, o Criador fez surgir prancheta, papel A4 e tirou do bolso uma lapiseira. (6) E pôs-se a desenhar em conformidade com o que Adão ia imaginando... gesticulando curvas e mais curvas no ar. (7)
Terminado o croqui da Mulher, Deus passou-o às mãos de Adão para que este desse o grau. (8) O celibatário homem, ao ver o que iria levar para o seu leito de folhas, experimentou uma onda de entusiasmo tão intensa que logo ficou ereto. (9)
"Gostou?", perguntou Deus, com obviedade.
"Se gostei?!"
"Bem, ainda há um problema. Esta delicada criatura, se moldada em barro, diretamente, não vai combinar com você."
"Como?"
"Você, como tem uma mente assaz irrequieta, só harmoniza com alguém que venha de você. Daí, uma costectomia ser indispensável..."
"Costectomia?"
"Uma operaçãozinha. Retiro-lhe uma das costelas (10) e, partindo dela, faço artesanalmente a Mulher."
"Não vai doer?"
"Não, se eu chamar o Espírito Santo para dar a anestesia geral."
O Espírito Santo veio voando. (11). Adão foi posto a "dormir" e Deus Pai realizou a primeira cirurgia do mundo. (12) Em seguida, foi o que se sabe: pós-operatório e lua-de-mel a um só tempo.
O que se sabe... quase tudo. Pois ainda consta que, a caminho do Céu, Deus Pai e Espírito Santo tenham travado o seguinte diálogo:
"Pai, não é desfazendo de sua meticulosidade criadora, mas tenho cá dúvidas de que a harmonia conjugal deles seja para sempre."
"Ora, Santo, (13) não reparou você que, durante a intervenção, eu poupei o periósteo da costela?"
"Sim."
"Com isso, a costela se recompõe. E, a qualquer tempo, eu posso fazer a Outra."

(1) Sem olhar o Catálogo da Criação.
(2) Animal Society no jargão dos colunistas.
(3) Não precisava ser tão radical.
(4) Projeto Bellum.
(5) Absolvendo-se ex officio.
(6) Presente do Dr. Sérgio Gomes de Matos.
(7) O primeiro retrato falado de que se tem notícia.
(8) Nota 10 com louvor.
(9) O corpo inteiro, entenda-se.
(10) A porção-mulher do primeiro Homem.
(11) Convocado pelo "bip".
(12) Com êxito de 200 %.
(13) Intimidade divina.

Informativo "Mandacaru", ano III, jul 81, n° 13

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

EM BIBLIOTECA TUDO SE SABE

Leitor amigo,
Deixe cronificar em você o gosto pelos livros - eles que são os mais desenvoltos agentes do entretenimento e da cultura. Ler e coçar é questão de começar! - já disse o velho letrado. Assim: desenvolva o hábito de frequentar as livrarias da cidade, de espiar seus mostruários, de inteirar-se das obras recém-lançadas, para depois - quem sabe? - virar um adquirente regular de livros.
Adote o costume da leitura (se já não o tem). Da leitura sistemática nas filas do ônibus, do banco, da farmácia e da previdência; no escritório e na lanchonete; na sala do televisor (desligado) e na cama. Olho vivo, portanto, que esta é a maneira de você entrar para o rol dos que sabem das coisas, na categoria sênior.
Mais: existe uma coisa que se chama envolvimento leitor-livro. Ele não deve acabar quando se vira a última página de um exemplar que foi lido. O livro requer ser guardado facilmente alcançável, a fim de que, em uma dúvida, você possa rever uma frase, um tópico ou a obra inteira.
O livro não pede, mas justo é que você retribua os seus ganhos de cultura livresca, oferecendo-lhe certo conforto "pessoal". Como conforto se traduza mantê-lo protegido das traças, mofos e poeiras, e colocá-lo de modo conveniente na biblioteca.
Aqui, onde eu queria chegar: o colecionamento dos livros, o qual só fica bem feito quando efetuado com arte e artimanha. Os livros, assim como as pessoas, têm ideias, gosto e temperamentos;  excetuando-se os poucos momentos que passam nas mãos do dono, coabitarão um espaço comum. Por isso, bem ou mal, interrelacionar-se-ão.
Considere então as tais afinidades inter-livros quando for ordená-los, objetivando que prevaleça a harmonia em sua biblioteca. Um pouco da minha casuística para que o leitor entenda plenamente o que busco dizer:
O livro "O Feijão e o Sonho", de Orígenes Lessa, por exemplo, a arrumação ideal será a que coloque o "Supermercado", de Paulo Mendes Campos, e o "Escolha seu Sonho", de Cecília Meireles, à esquerda e à direita dele, respectivamente.
Nesta linha de raciocínio, o "Cuca Fundida", de Woody Allen, e o "Doente Imaginário", de Molière, se mantidos na proximidade do "Pequena Psiquiatria", de Van den Berg, sentir-se-ão menos grilados.
Já pensou que despautério se eu deixasse o "Fumando Espero", de Francisco Rodrigues, ao lado do "É Melhor Não Fumar", de Jorge Pachá? Ou, então, o "Macunaíma", de Mário de Andrade, capaz de tantas inconveniências, ao lado do circunspecto "Ulisses", de James Joyce?
Coisa parecida se eu deixasse o "A Grande Bofetada", de Jorge Hachaus, de meia-parede com o "Com as Mãos Sujas de Sangue", de Marcos Faerman, sabendo que são ambos rixentos e temperamentais?
Certas sutilidades, entretanto, o leitor só aprenderá com o tempo, ao entrosar com os livros. Quer ver? O "Textos Revolucionários", de Che Guevara, conhecidamente um asmático, se beneficiará com a vizinhança do "Medicina para Milhões", do camarada J. S. Horn.
Já o "Sexualidade & Criação Literária", entrevistas do Gay Sunshine, ficará mais à vontade na companhia do "Sexo nas Prisões", de Jorge Rizzini. Sem falar que será também uma prova de tolerância para com as minorias.
Mas, leitor, mesmo me fazendo de criterioso, eu nem sempre sustento a paz no mundo dos livros. Certa feita, encontrei em minha biblioteca o "A Técnica e o Riso", do economista Roberto Campos, atirado ao chão com várias páginas arrancadas. Colocado num canto de prateleira, ele incriminou num relato que me pareceu inverídico, o "Dicionário dos Marginais", de Ariel Tacca. Veio com uma história mal alinhavrada, testemunhada em falso pelo "É Mentira, Terta?", do Chico Anísio, e logo para cima de moi que sei do quanto ele é capaz de inventar para manter uma imagem vendável (quer fazer carreira de best seller).Não demorou, "Juvenal Ouriço Repórter", de Carlos Novaes, desvendou o acontecido trazendo à minha presença o "Onde Estivestes de Noite", de Clarice Lispector. E este entregou o serviço, fora tudo na verdade um ataque de ciumeira por parte de uma brochura. O nome da cuja? "Bonitinha mas Ordinária", de Nelson Rodrigues.

Informativo "Mandacaru", ano III, ago/set 81, n° 14

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A SOLUÇÃO DO PROBLEMA "ANIVERSÁRIOS"

Finalmente encontrei a solução do problema.
Através de uma fórmula por mim criada em que as datas de estimação da mulher são somadas e divididas, disso resultando uma quinta data, que, por sua vez, é multiplicada por um fator de correção, o qual produz uma sexta data que, por sinal, coincide com a data do meu aniversário natalício.
Não poderia chegar a um resultado diferente, uma vez que eu uso na última operação o chamado fator egocêntrico de correção. C.Q.D.

Aniversário
"Comemoração que sempre fazemos com menos um ano de entusiasmo." Leon Eliachar

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O PERIGO DAS DEFINIÇÕES

Omnis definitio periculosa est.

Tese é uma hipótese que não caiu do cavalo.

O mundo é uma orquestra. Uns carregam o piano para que outros levem a vida na flauta.

A ordem dos fatores altera o produto. É por isso que José Maria não é Maria José.

A toda primeira intenção corresponde uma segunda de maior intensidade.

De tanto ver triunfar as nulidades botei uns zeros à minha esquerda.

Não importa a cor do rato contanto que ele não seja apanhado pelo gato.

Esse tal espírito corporativo - também chamado de espírito de corpo - só serve para encobrir os espíritos de porco.

O amor é a parte burocrática da genética.

Hiperinflação é quando você quer trocar uma cédula e o outro diz: "Sim, mas só se você passar o seu dinheiro primeiro".

Agiota é uma palavra que já diz tudo: um ágil de um lado e um idiota do outro.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

IN ILLO TEMPORE

Naquele tempo, disse eu a meu botões: "Vou me candidatar a acólito da Igreja de Nossa Senhora das Dores".
No RH do templo, em Otávio Bonfim, levaram a sério a minha pretensão e me deram para ler em casa uma espécie de "Manual do Acólito", que continha as orientações necessárias a um coroinha de primeira missa. Trazia o rito completo da missa celebrada em latim e posso dizer que foi o meu primeiro contato com essa língua tão cheia de palavras e construções incompreensíveis. Como, por exemplo, entender que tanto saecula quanto saeculorum podiam ser traduzidas por "séculos"? Dúvidas, dúvidas, dúvidas que só seriam solucionadas adiante com meus estudos de latim no Colégio Cearense.
Além do rito e do latinório, o acólito tinha de conhecer bem o nome das coisas sacras: missal, patena, turíbulo, cálice e, finis coronat opus, o sacrário.
Quanto ao esforço para me levantar de madrugada e, ainda sonolento, ir balançar o turíbulo na igreja, tinha lá umas compensações a posteriori. Um desjejum de café com leite, servido numa grande caneca de ágata, acompanhado de pão (dos pobres?) com bastante manteiga e... um ingresso para assistir ao filme de sábado no Cine Familiar! Este último era o braço propositivo de um patrulhamento que Frei Teodoro fazia para que não frequentássemos o Cine Nazaré. Não que ele quisesse nocautear a concorrência, não, era somente para defender os bons costumes do bairro.
O sacerdote rezava a maior parte da missa de costas para os fiéis. No rito, havia o momento em que um dos acólitos transportava o pesado missal de um lado para outro do altar. Com o detalhe de uma rápida genuflexão feita pelo meio do caminho. Pois bem, numa missa das cinco, o missal desequilibrou-se de minhas mãos e rolou escadaria abaixo. Todo vexado, apanhei o livro santo para colocá-lo onde devia. E Frei Oto levou um tempão para achar o evangelho do dia, o qual tinha sido desmarcado pela queda do missal.
Por vezes, aparecia no convento dos franciscanos frades um tal "Frei Cosquinha". Assim apelidado pelo costume de agarrar os meninos pelos corredores do convento. Não o prejulguem, era apenas pelo divertimento de lhes fazer cócegas.
Uma ocasião, tio Edson, que vinha se preparando para o concurso de um banco oficial, me veio com uma proposta indecente decente. Eu devia ir à igreja, expressamente para rezar um certo número de padres-nossos e aves-marias, intercalados com pedidos especiais em favor de sua aprovação no concurso. É que meu tio defendia a teoria de que as súplicas, quando partidas de um coração infantil, eram prioritárias para o Criador. Chamem isso de tráfico de influência, de atitude religiosamente incorreta, enfim, da forma como quiserem.
Quem era eu para contestar uma teoria que, além de defendida por um ex-seminarista, prometia aumentar o meu pé de meia, e como de fato aconteceu?
Caprichei. Naquele tempo a fé não costumava falhar.