sexta-feira, 23 de setembro de 2011

EM BIBLIOTECA TUDO SE SABE

Leitor amigo,
Deixe cronificar em você o gosto pelos livros - eles que são os mais desenvoltos agentes do entretenimento e da cultura. Ler e coçar é questão de começar! - já disse o velho letrado. Assim: desenvolva o hábito de frequentar as livrarias da cidade, de espiar seus mostruários, de inteirar-se das obras recém-lançadas, para depois - quem sabe? - virar um adquirente regular de livros.
Adote o costume da leitura (se já não o tem). Da leitura sistemática nas filas do ônibus, do banco, da farmácia e da previdência; no escritório e na lanchonete; na sala do televisor (desligado) e na cama. Olho vivo, portanto, que esta é a maneira de você entrar para o rol dos que sabem das coisas, na categoria sênior.
Mais: existe uma coisa que se chama envolvimento leitor-livro. Ele não deve acabar quando se vira a última página de um exemplar que foi lido. O livro requer ser guardado facilmente alcançável, a fim de que, em uma dúvida, você possa rever uma frase, um tópico ou a obra inteira.
O livro não pede, mas justo é que você retribua os seus ganhos de cultura livresca, oferecendo-lhe certo conforto "pessoal". Como conforto se traduza mantê-lo protegido das traças, mofos e poeiras, e colocá-lo de modo conveniente na biblioteca.
Aqui, onde eu queria chegar: o colecionamento dos livros, o qual só fica bem feito quando efetuado com arte e artimanha. Os livros, assim como as pessoas, têm ideias, gosto e temperamentos;  excetuando-se os poucos momentos que passam nas mãos do dono, coabitarão um espaço comum. Por isso, bem ou mal, interrelacionar-se-ão.
Considere então as tais afinidades inter-livros quando for ordená-los, objetivando que prevaleça a harmonia em sua biblioteca. Um pouco da minha casuística para que o leitor entenda plenamente o que busco dizer:
O livro "O Feijão e o Sonho", de Orígenes Lessa, por exemplo, a arrumação ideal será a que coloque o "Supermercado", de Paulo Mendes Campos, e o "Escolha seu Sonho", de Cecília Meireles, à esquerda e à direita dele, respectivamente.
Nesta linha de raciocínio, o "Cuca Fundida", de Woody Allen, e o "Doente Imaginário", de Molière, se mantidos na proximidade do "Pequena Psiquiatria", de Van den Berg, sentir-se-ão menos grilados.
Já pensou que despautério se eu deixasse o "Fumando Espero", de Francisco Rodrigues, ao lado do "É Melhor Não Fumar", de Jorge Pachá? Ou, então, o "Macunaíma", de Mário de Andrade, capaz de tantas inconveniências, ao lado do circunspecto "Ulisses", de James Joyce?
Coisa parecida se eu deixasse o "A Grande Bofetada", de Jorge Hachaus, de meia-parede com o "Com as Mãos Sujas de Sangue", de Marcos Faerman, sabendo que são ambos rixentos e temperamentais?
Certas sutilidades, entretanto, o leitor só aprenderá com o tempo, ao entrosar com os livros. Quer ver? O "Textos Revolucionários", de Che Guevara, conhecidamente um asmático, se beneficiará com a vizinhança do "Medicina para Milhões", do camarada J. S. Horn.
Já o "Sexualidade & Criação Literária", entrevistas do Gay Sunshine, ficará mais à vontade na companhia do "Sexo nas Prisões", de Jorge Rizzini. Sem falar que será também uma prova de tolerância para com as minorias.
Mas, leitor, mesmo me fazendo de criterioso, eu nem sempre sustento a paz no mundo dos livros. Certa feita, encontrei em minha biblioteca o "A Técnica e o Riso", do economista Roberto Campos, atirado ao chão com várias páginas arrancadas. Colocado num canto de prateleira, ele incriminou num relato que me pareceu inverídico, o "Dicionário dos Marginais", de Ariel Tacca. Veio com uma história mal alinhavrada, testemunhada em falso pelo "É Mentira, Terta?", do Chico Anísio, e logo para cima de moi que sei do quanto ele é capaz de inventar para manter uma imagem vendável (quer fazer carreira de best seller).Não demorou, "Juvenal Ouriço Repórter", de Carlos Novaes, desvendou o acontecido trazendo à minha presença o "Onde Estivestes de Noite", de Clarice Lispector. E este entregou o serviço, fora tudo na verdade um ataque de ciumeira por parte de uma brochura. O nome da cuja? "Bonitinha mas Ordinária", de Nelson Rodrigues.

Informativo "Mandacaru", ano III, ago/set 81, n° 14

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