OS PREPARATIVOS DA EXCURSÃO
Em 1966, nós, os calouros da Faculdade de Medicina
reunidos em assembleia, escolhemos por aclamação os representantes da turma
para as disciplinas do 1.º ano. Na mesma ocasião, decidimos também sobre a
criação de uma entidade (informal) que recebeu o nome de Clube Andreas
Vesalius, incorporando o nome latinizado de Andries van Wiesel, famoso médico
flamengo que viveu entre 1514 e 1564.
O nome do autor de “De
humani corporis fabrica” (No tecido do corpo humano), que é referido como o
fundador da moderna Anatomia, foi escolhido também por aclamação. Era a
Anatomia, com a dissecação dos cadáveres humanos conservados em formol e com o
manuseio dos esqueletos remontados, a disciplina que dominava mais fortemente o
nosso imaginário.
Qualquer nome que não viesse da área da Anatomia seria
fatalmente rejeitado. Em meio a outras disciplinas como Histologia e
Embriologia, a Bioquímica e a Biostatística...
A ideia principal, e talvez única, era a de que o
clube se destinaria a viabilizar uma grande excursão que faríamos adiante.
Então, toca a trabalhar, arrecadando dinheiro em rifas
e tertúlias. E também nos organizando em grupos que, em períodos noturnos,
visitávamos as residências de nossos mestres em busca de doações. Até abrimos
um "Livro de Ouro" para que eles se sentissem, ao fazerem suas
doações, como se estivessem participando de algo grandioso. É verdade que houve
um deles que nos despachou com um ditado ("quem não pode com o pote, não
pega na rodilha"), mas esse, no devido tempo (no período em que houve a nossa formatura), recebeu o troco: não foi lembrado
para ser patrono nem paraninfo.
Além disso, havia as contribuições que nós, futuros
excursionistas, pagávamos mensalmente. Sob pena de ter o nome cortado da
excursão (o que, aliás, quase aconteceu a este escrivão de bordo).
No início de 1970, com o dinheiro apurado nos quatro
anos anteriores, fretamos um ônibus que nos levaria a uma excursão pelo
Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. O plano de viagem incluía, após
atravessarmos a fronteira, irmos ao Uruguai e à Argentina - o "plus" que destacaria a Turma Andreas
Vesalius da Faculdade de Medicina da UFC das turmas precedentes que haviam
excursionado apenas por território nacional. A nossa turma, portanto, seria a
que iria mais longe numa excursão - além de Taprobana, como diria Camões.
O roteiro foi preparado por um grupo que assumiu a
liderança. Contando com a expertise
do colega Mário que já havia viajado até Porto Alegre.
Éramos trinta (de quase uma centena de alunos), em
nossas férias do término do quarto ano de medicina.
Mas...
O número de excursionistas ultrapassava o de assentos
no ônibus!
Divulgou-se, de última hora, a abertura de vagas para
quem quisesse aderir ao IDP, o Instituto da Desistência Premiada. Apareceram
desistentes e o número de excursionistas foi fechado.
Não houve necessidade de providenciar passaporte,
apenas a obrigatoriedade de tomar a vacina contra a febre amarela.
A PARTE BRASILEIRA DA EXCURSÃO
Dois motoristas se revezariam na direção do ônibus:
Nelson e Josué. Devido a barbaridades explícitas na estrada que deixaram a
gente de cabelo em pé, o segundo logo foi afastado da função. Isto fez com que
o Nelson ficasse sobrecarregado em seu trabalho durante a viagem, atingindo os
limites dessa situação na fase do retorno.
1)
Salvador. Nós, os rapazes, ficamos alojados em uma unidade da
Marinha, enquanto as moças, em menor número no grupo, foram conduzidas a um
hotel. Naqueles anos de chumbo, de descontentamento de parte dos estudantes
universitários com as medidas repressivas do governo, a hospedagem fazia parte
da "política de boa vizinhança" da ditadura militar. Minhas
lembranças de Salvador incluem a Cidade Baixa, o Elevador Lacerda e o Mercado
Modelo, onde adquiri uma sacola de fibra vegetal (que foi apelidada de caçuá).
Houve também passeio na Baía de Todos os Santos, Ilha de Itaparica e, numa das
noites, fomos ao restaurante Varandá, o qual descobrimos se tratar de um reduto
LGBTIQIA+ (estou usando a nomenclatura atualizada).
2)
Rio de Janeiro. Ficamos na Casa do Marinheiro, na Praça
Mauá. Por motivos óbvios, nossas colegas tornariam a se hospedar num hotel, o
que talvez tenha sido a causa de uma amotinação masculina. Exigia-se que o
"tesoureiro" da excursão fizesse a imediata partilha dos recursos financeiros comuns. Daí
para frente, cada um iria administrar sua parte no espólio. Lembro-me de termos
ido à Ilha de Paquetá (acesso através de barcas que partem da Praça XV), ao
Maracanã (onde assistimos a um jogo de futebol), ao Corcovado (leia-se: Cristo
Redentor), a alguma praia da Zona Sul e de termos passeado no bondinho do Pão
de Açúcar. Fui procurado por um marujo, Eduardo César, meu primo em 2.º grau,
com a proposta de me mostrar o Rio e que me pegou um dinheiro emprestado (acho
que não paga mais). Na Cidade Maravilhosa foi quando chegou ao auge o "campeonato
de xexo" disputado por alguns colegas.
Xexo
Caloteiro (Nordeste)
A
palavra xexo vem de seixo (pedrinha). Antigamente, quando se usavam pedras
preciosas como dinheiro, os espertos misturam seixos com as pedras preciosas
para enganar os outros. Surgiu, aí, a expressão "dar o seixo", que
virou "dar o xexo", que quer dizer "deixar de pagar, dar o
calote".
3)
São Paulo. Hospedamo-nos no Pacaembu, o estádio. Fomos visitados
por um colega de uma turma anterior e líder estudantil que, por motivos
políticos, vivia clandestino em São Paulo. Ao se despedir nos quotizamos para
ajudá-lo naqueles tempos difíceis.
Alguns dos excursionistas foram assistir ao rock
musical "Hair" (o que eu só iria fazer no RJ, três anos depois).
E descemos a Serra do Mar para conhecer Santos e
Guarujá.
4)
Curitiba. Onde nos hospedamos na Casa do Estudante. Foi
inesquecível aquela experiência de
descer de trem a Serra do Mar até o porto de Paranaguá. Saibam que até hoje a
tal viagem turística ainda existe, mas até Morretes. Desta cidade, passando por
Antonina, e com o turista voltando pela belíssima Estrada da Graciosa para Curitiba.
No trecho Sul da excursão, demos carona a um gringo de nome Michel. Artur
brincava muito com ele ao ensinar português.
5)
Porto Alegre. Tinha uma Serra Gaúcha no meio do
caminho, no meio do caminho tinha uma Serra Gaúcha - com vinhos para a nossa
degustação. Chegamos a Porto Alegre onde os alojamentos de outro quartel nos
esperavam. Numa das noites fomos a um teatro para um show da Gal Costa. Tive a
nítida impressão de que ela cantava só para mim (o pior é que outros também
pensaram assim com relação a si próprios).
No Chuí, passamos o dia atarefados em resolver nossos
entraves burocráticos para podermos atravessar a fronteira. Carreguei a mão na
quantidade de azeite que pus no almoço, e atribuí a isso os distúrbios
intestinais que me afligiram nas horas seguintes.
A PARTE ESTRANGEIRA DA EXCURSÃO
6)
Montevidéu. Jantamos nos arredores da cidade. Num
restaurante que eu, pressionado por fortes cólicas, escolhi no grito. Fomos
tungados na conta (Maureen, por exemplo, não jantou) e, ameaçados pelo dono ("voy a llamar la policía"),
pagamos o que ele queria. Passeamos no Centro Histórico de Montevidéu,
assistimos a um jogo de futebol no Estádio Centenário e fizemos um passeio do
tipo bate-volta a Punta del Este. Foi nesta cidade balneária que o colega Nelson,
protegido do sol com um "sombrero",
sofreu uma abordagem armada de autoridades locais. Ao seu confundido com
algum membro do Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros, conto por ouvir dizer.
Por fim, fomos a Colonia del Sacramento para a
travessia do Rio da Prata (este detalhe me foi lembrado por Nelson Cunha), com
destino à capital portenha.
7)
Buenos Aires. Acho que houve uma dispersão do grupo por
vários hotéis. Hospedei-me num hotel da Avenida Corrientes, no Centro Histórico
de Buenos Aires, que tinha um elevador vintage.
Ficava perto da Casa Rosada, da Plaza de Mayo e do Obelisco, o monumento
erguido na Praça da República, no cruzamento das avenidas Corrientes e 9 de
Julio. Foi onde conheci um Metrô. Tirei fotografias - sem flash - do Metrô de
Buenos Aires que só captaram as luzes internas.
Infelizmente, perdi um passeio bate-volta ao Delta do
Tigre, um refúgio de luxo com mansões e clubes construídos às margens dos rios,
os quais só eram acessiveis pela água.
Chamaram-me a atenção, em Buenos Aires, seus ônibus
urbanos: eram pequenos e não tinham cobradores. Escolhi um restaurante para
jantar, pollo (frango) y vino. E, no passeio que fiz em La
Boca, deparei-me com outro restaurante de grande animação. Por conta dos
brasileiros que já estavam por lá. Subi ao palco para cantar "Garota de
Ipanema". E , ao voltar para o hotel, cantei "Sebastiana" no
carro de um argentino que deu carona a alguns de nós.
Corrientes,
348. Esse endereço em Buenos Aires foi imortalizado por Carlos Gardel, no tango
"A Media Luz", um dos mais conhecidos dos chamados "tangos
clássicos". Descrito na canção de uma forma envolvente e romântica, já não
era mais um hotel e no local existia um estacionamento.
A VOLTA PARA FORTALEZA
8)
Porto Alegre (2.ª vez). Carnaval (que acontecia no período
de 7 a 10 de fevereiro) no Partenon Tênis Clube, na av. Bento Gonçalves.
Problemas particulares me motivaram a antecipar meu retorno para Fortaleza. Na
rodoviária de Porto Alegre, peguei um ônibus para o Rio de Janeiro. E, na
rodoviária Novo Rio, comprei passagem para um segundo ônibus com destino a
Fortaleza. Com algumas horas noturnas disponíveis na Cidade Maravilhosa
procurei um hotel para a dormida. Mas quem disse, Berenice? O hotel em que me
hospedei, apesar de ficar bem próximo da rodoviária, era uma espelunca. E tinha
um postigo que, por não fechar, expunha um medroso hóspede à curiosidade
pública. Não dormi, claro. Nunca uma espelunca, como disse o Chico.
A
fuga do Nelson
Não estou me reportando ao colega Nelson José da
Cunha.
Na década de 2010, atendi algumas vezes o paciente
N.A.F. na Multiclínica Fortaleza. Era o motorista Nelson da excursão!
Septuagenário, lúcido e com bom estado geral, porém apresentando uma doença
associada ao tabagismo em estádio avançado. Numa de suas consultas, Nelson me
contou uma história interessante. Quando o grupo voltava para Fortaleza, houve
uma noite em que ele foi muito pressionado para não interromper a viagem. No
entanto, sentindo-se muito cansado, ele procurou uma pousada para descansar. E
não informou a ninguém onde foi dormir. No dia seguinte, reassumiu o volante do
ônibus. Se houve quem não gostasse dessa conduta? Sim, mas Nelson agiu assim
para o bem de todos.
Relação
dos participantes
Artur, Beto, Casanovas, César, Clóvis, Colares,
Daniel, Edson, Emanuel, Ercílio, Lages, Mário, Nelson, Paulo, Portela,
Valdenor, Silvio, Zé Leite.
Adriana, Célia, Imeuda, Lúcia, Leni. Maureen, Maura,
Mazé, Maria Alice, Maria Regina, Noelma, Núbia.
(Paulo Gurgel)