quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ARRAIAS, PAQUETÕES E BOLACHINHAS

O mês em curso me faz lembrar os julhos da minha infância. Quando o céu de Fortaleza ficava povoado de vistosas arraias fazendo as suas belas evoluções aéreas. Um fenômeno explicado pelas férias escolares que incidiam, ontem como hoje, num mês de muitos ventos.
As arraias (ou "raias" como pronunciavam os moleques), as quais, em outras partes do Brasil, seriam chamadas de pipas, pandorgas ou papagaios.
Para a confecção de uma delas, não se necessitava de muita coisa. Palitos secos de coqueiro, linha, papel-seda e um pouco de grude. Com os palitos secos, em número de três, amarrados nos cruzamentos por pedaços de linha (e com um destes pedaços utilizado para delimitar o perímetro) fazia-se o esqueleto da arraia. A seguir, nesta armação se colavam os retalhos do papel-seda por meio de um grude preparado na cozinha de casa.
Os complementos do brinquedo eram o cabresto e o rabo da arraia. Para o cabresto, que servia para prender a arraia, bastava um pequeno pedaço de linha. E, para o rabo da arraia, além de uma maior porção de linha, à qual se atavam pequenas tiras de pano (molambo era o ideal), a intervalos regulares, ficando uma tira maior, a ponteira, para ser colocada no final da linha. O rabo (ou rabiola) era então preso na extremidade da arraia para lhe conferir estabilidade. Sem ele, ao ser posta no ar, a arraia ficaria a girar loucamente e sem ganhar altura.
Havia uma versão gigante da arraia, o paquetão, cujo esqueleto era feito de taboca. O qual era colocado no ar apenas por quem tinha a robustez suficiente para controlá-lo. E existiam também as bolachinhas, umas imitações baratas das arraias, que serviam de divertimento para as crianças menores. Feitas de algum papel grosso, cortado na forma redonda, e a seguir perfurado por palitos de coqueiro que funcionavam como armação, eram feias e não ganhavam grande altura.
Empinava-se a arraia com a ajuda de um companheiro que a elevava bem acima da cabeça. Até que, a um sopro mais forte do vento, a arraia era largada enquanto o outro a puxava. O outro era o dono da arraia que, muitas vezes, tinha de correr contra o vento para que ela subisse. Não havendo o auxílio de um companheiro para empiná-la, a alternativa era o "soltador" de arraia se posicionar num local elevado como um muro ou o terraço de casa.
E a arraia subia em movimentos coleantes sob o incentivo de repetidos puxões aplicados em sua linha. Com esta, a cada instante, sendo liberada de um carretel que rolava entre os dedos do "soltador". Até que a arraia se encontrasse na altura desejada (ou a linha chegasse ao fim). Neste ponto, começava o bonito espetáculo da arraia a movimentar-se no espaço em resposta aos "lanceios" feitos no chão.
Uns contentavam-se com esse aspecto "pacífico" da brincadeira. Outros, porém, preferiam praticar o "corte" de arraias. Uma peleja entre arraias em que, ao cruzamento das linhas, uma delas (às vezes, ambas) sofria o "corte". E, ficando sem o controle da linha que a prendia, passava a ser arrastada pelo vento até terminar enganchada num fio elétrico, árvore ou telhado. Sendo, nessa "agonia", acompanhada pelos moleques em louca correria como se fora um troféu.
A muitos frustrava a arraia "cortada" ser também "aparada". Quando essa arraia "derrotada" não caía em domínio público, por haver sido em pleno ar capturada e recolhida pela arraia "vencedora", graças à habilidade do dono desta.
Não seria possível o "corte" de arraias sem a participação do cerol. Preparado com vidro moído e cola derretida, assim que secava na linha em que era aplicado, o cerol a transformava num instrumento verdadeiramente cortante. Capaz de causar acidentes nos brincantes e em terceiros, aliás, como acontece até hoje. E, o que é pior, com alguns destes acidentes a se mostrarem terrivelmente letais.

Publicada em 21 de julho de 2008 no EntreMentes.

ACHADO CASUAL

Antologia de prosa e poesia publicada em 2008 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Autores: Airton Marinho, Antero Coelho Neto, Celina Corte Pinheiro, Chico Passeata (Francisco Monteiro), Christiane Chaves Leite, Dalgimar Beserra de Menezes, Eilson Goes (15/06/1941 - 18/10/2008), Fernando Siqueira Pinheiro, Flávio Leitão, Francisco Tomaz Ramos, Ilnah Soares, Jesus Irajacy Costa, José Maria Bonfim, José Maria Chaves, José Wilson de Sousa, Luciano Arruda, Luciano Sidney, Luiz Moura, Marcelo Gurgel, Martinho Rodrigues, Nilson de Moura Fé, Paulo Gurgel, Pedro Henrique Saraiva Leão, Sebastião Diógenes, Vladimir Távora, Walter Miranda e Weimar Gomes.
Apresentação: José Maria Chaves (Presidente da Sobrames Nacional) e Linhares Filho (Professor do Curso de Letras da UFC e Membro da Academia Cearense de Letras) com o texto "Sob o Signo de Duas Artes".
Dedicatória: "À memória do Prof. Eilson: saudades sobramistas" por Marcelo Gurgel.
Projeto Gráfico e Arte Final: Júlio Amadeu
Coordenação: Walter Miranda
Organização e Revisão: Walter Miranda e Marcelo Gurgel
Imagem da Capa: Obra iconográfica do pintor peruano Pablo Amaringo após ingerir a bebida alucinógena ayahuasca.
Editoração e Impressão: Expressão Gráfica e Editora Ltda.
Tiragem: 700 exemplares
Livro com 178 páginas.

ACHADO CASUAL

Lançamento do livro
A Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional do Ceará (Sobrames - CE) e a Diretoria de Cultura e Arte do Ideal Clube anunciam para hoje, à noite, a solenidade de lançamento do livro "Achado Casual", a vigésima-terceira antologia anual da Sobrames - CE.
Os autores e o livro serão apresentados pelo Prof. Dr. Linhares Filho, Membro da Academia Cearense de Letras.

Data: 25 de novembro de 2008, às 19h30.
Local: Salão Meireles do Ideal Clube.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A TÍTULO DE...

Vez por outra me surpreendo desempoeirando velhos papéis guardados. Entre notas fiscais, cartas, recibos, cartões de visitas, um que sempro encontro pegando aquele ranço é o meu título de eleitor.
Arranjo tempo para levar dois dedos de prosa com ele:
- Oi, bicho.
- Até que enfim... você me aparece. No mínimo, está de saída para votar.
- Desinformado... Então, as traças não lhe contaram? Que não vai haver eleição no ano de 1980.
- Mas... não estava tudo certo?
- E você... é como o cartão de crédito que acredita em tudo aquilo que ouve?
- Bem, a intenção...
- Aí é que está! É grande a distância entre intenção e gesto.
- Quer dizer que o partido do governo vai continuar...
- Um momento. Agora se diz: partido no governo.
- Detalhes de semântica.
- Muito mais. É o próprio jogo democrático, dizem.
- E a oposição?
- Caiu no conto do pluripartidarismo. Quando deu fé estava já toda dividida.
- Sendo assim, não vejo ocasião mais propícia do que esta para o partido no governo, como você diz, desfechar um golpe de misericórdia na oposição.
- Teoricamente. Na prática, a oposição pode fazer uma holding.
- E qual é a opinião dominante no seio da classe política?
- Olhe, anjo. Quem conseguiu lugar no salão vai continuar se requebrando para que o mandato, digo, o bambolê não caia da cintura.
- Você considera isso justo?
- Não. Mas os políticos, sustentados pelos resultados de uma pesquisa feita entre eles, bastante semelhante a uma que ocorreu no Congo Belga, em 1928 (Macaco, você quer banana?), acharam a prorrogação de seus mandatos a coisa mais justa do mundo. De modo que pretendem continuar representando o povo...
- Representando para o povo, fica melhor.
- Como preferir. Agora, a consequência é que você nem em 81 vai receber carimbada nova.
- Mas... 1982 promete. Com eleições para vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores...
- Não esteja tão confiante. A nossa democracia é dinâmica, hiperdinâmica eu diria, e não pode cumprir fielmente um modelo de nação mais desenvolvida, como a Guatemala, por exemplo.
- Pô! O que é que eu vou fazer esse tempo todo?
Nessa altura, percebo que a raison d'être do meu título de eleitor anda a perigo e tento bancar o amável, pois tenho medo de que ele abandone de vez a gaveta para ir morar no Arquivo Nacional.
- Semana que vem, vai ter eleição para síndico do meu prédio. Você quer ir comigo?

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

APENAS

O esbarro
- Olhe por onde anda, descuidado - pensei. Mas o grito gêmeo do pensamento não aflorou. Segurei-o na garganta, assim que o estranho prontamente se desculpou por haver esbarrado em mim. E, sendo eu um pedestre costumeiramente desatento, até que ponto não havia também contribuído para o encontrão?
Mal se afastou o estranho, recompus-me. Os cabelos despenteados, as vestes em desalinho, os óculos mal armados no rosto...
A seguir, toquei-me em frente. Naquela rua de passantes tão apressados, outros esbarros que ocorressem. Sim, onde está o problema se todos temos as palavras corteses, os tapinhas nas costas e os sorrisos pré-moldados?
O meu receio é apenas o de que, algum dia, eu comece a esbarrar... em mim mesmo.
(de 1980, reescrita)
29/06/2012 - Atualizando...
O leitor fique certo de que os cientistas estão tentando melhorar esse estado de coisas, mas estão a fazer progresso a passos muito lentos.
How do pedestrians avoid collisions? In: The Guardian

O esparro
Na sala do meu apartamento de solteiro, como objeto de decoração, eu pendurara um tipiti na parede. O tipiti, para quem não sabe, é um cesto cilíndrico de palhas entrançadas, em cujo interior o caboclo da Amazônia põe a massa da mandioca ralada para ser espremida, antes de levá-la ao forno para que se transforme em farinha.
Não pensando em fazer agricultura de subsistência no apartamento, eu usava o tipiti ornamentado por uma planta do grupo dos filodendros: uma cara-de-cavalo.
Vivendo à sombra, e com uma modesta "ração" semanal de água, era uma planta realmente durona. Tirando algumas câimbras nas raízes, de que se queixava raramente, a cara-de-cavalo gozava uma saúde invejável. Enquanto iam tossindo e morrendo umas sempre-vivas vizinhas.
Certa vez, uma visitante me sugeriu aumentar-se-lhe o viço, colocando anticoncepcional em sua água. Bem, acho que a cara-de-cavalo não gostou da absurda sugestão. Pois tive a impressão de vê-la a rir, com todas as folhas, com o teor da resposta que dei à intrusa.
Que ela e eu éramos apenas bons amigos.

(de 1980, reescrita)