segunda-feira, 28 de abril de 2008

BRIGAS NA COZINHA

1
Na mesa posta, o frango desossado
(lembra o tempo? Ah, o tempo
em que eu era mais amado!)
o arroz à grega
para troiano nenhum botar defeito
que eu comia até dizer "chega!"
com aqueles anéis de cebola a dorê
tão supimpas (que a Deus eu pedia tivessem
o tamanho do bambolê);
e também a salada russa - uma tese
de gastronomia, porquanto não carregavas tu
a mão na maionese.
Depois de tudo, o arremate
sem o qual não fazíamos amor:
a mousse de chocolate.
2
Éramos pessoas de raro brilho
e nos amávamos
lambuzados em mel de milho
no piso frio da cozinha
enfrentando Deus, o mundo, o enxamear das moscas
de uma estrebaria vizinha.
Mas havia tamanho zelo
entrega, confiança mútua, que um do outro não escondia
o picador de gelo
tampouco a chave do freezer
como se à natureza humana de todo impossível fosse
cair em deslize.
Raras, as nossas animosidades
eram sempre trituradas num super-liquidificador
de seis velocidades.
3
Um dia, porém, deu-se o tal disparate
(quando eu, com a paciência de um preto velho
tirava a pele dos tomates).
Ai que me disseste: "melão com presunto
é o que existe de mais opíparo."
O que me fez rir te ti, do teu bestunto
outrora conhecedor sem igual da arte
gastronômica, coisa e tal...
E fiz um aparte
no qual, do cimo de um traquejo
mil vezes vencedor na prova de encher a terrina
com pequeninos cubos de queijo,
eu defendi ser o quibe
mesmo feito de véspera, a mais fina iguaria existente
(na verdade, a minha diatribe).
4
Nisso, ao nível de um espremedor
de frutas, eis que um ato (doloso!) de tua parte
por pouco não me fez perder o indicador
e o rosto meu, que só a brisa
antes tocava
viu-se de encontro a um disco de pizza,
como se eu fosse um bandalho,
vil, reles e desprezível ser, e não um homem
passado na casca do alho.
Então, peguei de um repolho (era roxo!)
para o revide
(que um homem é um homem, não é um frouxo!)
e, em seguida, derramei sobre ti, ó bastarda
nas tuas inesquecíveis saboneteiras
até a última gota da mostarda.
5
Sim, vá lá que o rolo de pastel
para meu azar tão destramente por ti empunhado
fizesse em mim escarcéu
e que tanto levasse daquele tacape
a ponto de acabar desmaiado
numa poça de sangue e ketchup...
Em pleno emborco,
com tu, ó exterminadora, ainda cogitando em usar
a faca de furar porco
e a agulha de costurar
bife a rolê...
(Pelo que sou hoje levado a repudiar
o cretino, o farsante, o seja-lá-quem-for
que, um dia, falou para não se bater em mulher
nem com uma couve-flor.)
6
Por conseguinte, minha cara, deixemos para os pomos
a discórdia e nos reconciliemos já:
civilizados somos!
Que, em sinal de harmonia, eu te ofereço amor,
um moderno filtro de parede
e um exaustor,
o qual tornará mais suportável o borralho
(sem que suprima, é verdade
o eterno problema do cheiro do alho).
Pois antes, muito antes do que pensas
neste cálido recinto de forno e fogão
(onde as carências tuas são imensas)
de mim - quem sabe? - tu precisarás
para que eu substitua o teu vazio
botijão de gás.

domingo, 27 de abril de 2008

O VAMPIRO NORDESTINO

Bem diferente do congênere da Transilvânia, na década de 30 vivido no cinema por Bela Lugosi, o vampiro nordestino não é de estirpe nobre. Quando muito, teve um tio-avô pelo lado paterno que, havendo travado escaramuças com a Coluna Prestes, em pagamento recebeu na época a honraria de coronel. E também não é um ser de hábitos noturnos que, com fidelidade, possa ser enquadrado na estética dark. Pois ele age tão-somente à luz do dia, mesmo porque não conta com uma criadagem expedita que cuide de seus outros interesses.
Gibão de couro, blusa e calça de mescla, chinela de rabicho - eis em que se resume a indumentária do bicho. E na hora do transformismo não vira morcego, não. Ele se transforma numa libélula, em tudo indistinguível da popular lava-bunda que adeja sobre as poças d'água na caatinga. Mas é preciso ficar explicitado que não é uma libélula deslumbrada. Nessas horas em que há muito drácula "crepusculando" por aí, esquecido de que no passado todo vampiro era macho-chô. Haja vista, a exemplo desta contrafação, o bissexualismo do drácula de "A Hora do Espanto".
No cinema nacional, parece que só o José Dumont tem o seu physique du role. Mas, ainda assim, precisando de alguns retoques para a caracterização. O vampiro do Semi-Árido, por exemplo, tem os caninos assustadores (que nem os do colega da Transilvânia) mas não tem os dentes centrais. Daí o apelido que, na primeira vez que escancarou a boca, o vulgo de imediato lhe pespegou: 1001. Contudo, ser um deficiente odontológico não faz dele uma reles sanguessuga. Ao contrário, escora como poucos da categoria um mocotó alheio.
Agora, como fica o sugado depois de uma sessão vampiresca é coisa que o banco de sangue nem de longe consegue. Embora, ultimamente, esteja cada vez mais difícil a nosso vampiro encontrar uma vítima adequada. Minguado como se encontra o hematócrito do matuto (inclusive o do matuto que habita uma dessas "ilhas de prosperidade"). E, quanto ao vampiro já ter sido visto a fuçar bacias de chouriço, eu digo que procede a história. A tanto obriga a sobre-humana necessidade que ele tem de sobreviver.
Então, já se prevê uma adaptação para o vampiro do Semi-Árido: ele passará a chupar linfa. Sem abandonar o mocotó, claro.
Idiossincrasias à parte, o vampiro nordestino é antes de tudo um forte. Surpreende por ser dificílimo de combater. Alho é fichinha, cruz nem pensar (pois no plano religioso é sincretista, funde Deus e o Diabo na Terra do Sol). Não se deixa atrair por absorventes íntimos usados. E, com uma acha ponteaguda cravada no coração, ainda assim ele sobrevive. Como também sobrevive aos "aposentos" recebidos com atraso com o carnê do Funrural.
A grande atribulação do vampiro nordestino vem da parte de seus concorrentes alados. Quando a noite cai no sertão e ele, em sua rede preta, cai... no sono. Aí, é ele incontinenti cercado por esquadrões de muriçocas, percevejos e barbeiros. Havendo ainda a participação de um livre-sugador, o morcego hematófago, o qual pode ter tudo menos senso corporativista.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

JORGE, UM CEARENSE

No local combinado e na hora marcada – com apenas um dia de atraso – consegui iniciar a entrevista de Jorge, esse conterrâneo que vive sob os spotlights da fama. Ele chegou meio mal-humorado, por haver um pouco antes chutado uns paralelepípedos fora de ordem na Rua Tabajaras, e suas primeiras palavras foram de desabafo: “Veja você o que é o comportamento do povo cearense. A caminho desta entrevista, tive de agüentar um ônibus cheio, com as pessoas se apertando como aspargos numa lata... Uma senhora gestante, aí pelo sétimo ou oitavo mês, com um filho remelento ao colo, nem ao menos teve a cortesia de me ceder o assento que ocupava... Quanta indelicadeza, meu Deus!”
Bem, como em matéria de ônibus cheio eu não sou nenhum “pino que satisfaz”, de imediato concordei. Mas, já percebendo que Jorge, com aquele linguajar de “aspargos em lata”, havia-se aculturado. Nos velhos tempos, ele teria dito “caranguejos no surrão” que, a par da superior força comparativa, é uma expressão da maior cearensidade. Se bem que, na presença dele, eu prudentemente evitasse comentar isso. Para não o melindrar, Jorge é difícil “pacas”. E uma pergunta desajeitada, um posicionamento contrário, um ruído diferente do gravador (ou que sei mais eu?) podia levá-lo a bruscamente encerrar a entrevista. Com isso prejudicando, por desídia do repórter, um leitorado que é sempre tão ávido de informações sobre Jorge bem como o que ele pensa.
Acontece que Jorge, como homem de ação, apresenta uma agenda mais cheia do que o calendário turístico da Bahia. E já se constituía num grande tento jornalístico eu estar com ele, ali, numa das mesas do Estoril, imobilizado para um depoimento. Era, daí para frente, não assustar a criança que... “É um erro o individual se submeter ao coletivo, principalmente se tiver dinheiro para o táxi.” Pronto! Ainda com laivos daquilo que recém o aborrecera, mas já era Jorge criando uma de suas frases lapidares. E, ao mesmo tempo, com a graça e a simpatia de volta ao rosto, era ele já sinalizando o começo de um depoimento. Quando, então, podia-se agora apostar, ele deitaria uma enorme falação, dessas de deixar para trás qualquer taxista de corrida longa.
Antes, ainda um compromisso ele me cobrou. Não publicar, em hipótese alguma, a entrevista numa terça-feira “para não se misturar com o material de segunda de que os jornais, nesse dia da semana, são feitos”. Eu não só aquiesci como também, com um generoso acréscimo de minha parte, comprometi-me de que... nem o seu necrológio. E me postei a ouvi-lo – ora discorrendo no bom português, ora na “língua do pê”, ora no “gestual arranhado” – em suas fluentes considerações sobre os mais diversos assuntos. Já, de cara, convencido de que eu estava lidando com o mais acabado referencial da intelectualidade brasileira. Do Oiapoque à Marilena Chaui.
Ele, com a palavra: “O Brasil, ora veja. De país abaixo do equador está passando a ser abaixo do Equador, tão ruim que se acha. Observe a nossa economia: ninguém acredita em nossa moeda, ela serve para jogar cara ou coroa, calçar a perna de uma mesa... e para mais o quê? Se não temos, como os portugueses, um escudo que nos defenda da inflação. Ou se não colocamos, nas cédulas, retratos do Golias, Costinha, João Kleber e outros comediantes, que é para dar mais seriedade... Por isso, cabeleireiros e decoradores têm adotado o milenar sistema de trocas, o qual, aliás, trata-se de um evidente recuo. Enquanto a política aqui não passa de uma arte para administrar a mentira, advogo que devemos aperfeiçoá-la nem que isso nos custe uma fortuna em jetons. E a História? Não explica o que aconteceu entre João XXIII e Joãozinho XXX, o que, pensando bem, é melhor que fique em silêncio. Mas, retomando o assunto da economia: quem sabe a fórmula para oxigená-la é o economista luso-americano Mr. White Martins, ninguém mais. Ou se faz o que ele diz ou, em breve, estaremos todos comendo farofa de alfinete. Mas o que ele diz? O que ele diz, sei lá, muda o que diz a toda hora... Ah, não comer do mel que é servido na ponta de uma faca, parece um provérbio tibetano, não é? Mas é dele, Mr. White. Como também é dele se dizer para não comer do mel enquanto as abelhas voam atrás... Bem, quanto a mim, tenho uns narcodólares ganhos honestamente que me permitem uma existência digna, comparável a do cachorro-ser-humano do Magri. E quer saber de uma coisa? Essa lei em tramitação para revogar a Lei de Gerson não passa. E se passar não vai pegar.”
Quando fala Jorge George Bizarria (o seu nome completo) é aquela catadupa de idéias, imagens e frases. E, quando há umas cervejas na jogada, surge-lhe logo a irrefreável vontade de ir ao banheiro. Mas, leitor amigo, não se diz que, quando um brasileiro decide tirar a água do joelho, o outro idem? No que ele se dirigiu ao banheiro do Estoril, eu também me piquei (epa!) no mesmo rumo. Um detalhe interessante: lá, usando as forças motrizes de nossas micções, disputamos a ver quem empurrava mais aquelas bolinhas de naftalina colocadas na calha do mictório. Ah, felizmente não foi uma aposta a dinheiro pois – menos prostático que eu – ganhou ele.
Em seguida, retornamos à mesa onde nos esperava um barulhento grupo. Com um abaixo-assinado para acabar com a poluição sonora na Praia de Iracema, a hoje designada “praia dos amores que o bar carregou”. Ora, durma-se com um silêncio desses... De qualquer modo, em meio ao alarido que o grupo fazia, eu aproveitei para mostrar a Jorge o meu recente exame audiométrico. Como a prova de que não sou um repórter mono-auricular, ouço sempre os dois lados da questão. Mesmo que o lado “B”, como nos discos do Gonzaguinha, não costume prestar.
E a entrevista, daí para frente, continuou no melhor estilo pinga-fogo porque assim preferiu Jorge.
Uma cor? “O amarelo que um dia persuadirá todos os gostos. A propósito, já que você falou em cor, eu defendo a idéia de que antes do quadro deve-se pintar o cavalete.” Uma pedra? “De preferência fora do sapato.” Um trabalho? “Terminar a minha tese: Porque à visão do prato de fritas o saleiro não funciona. É batata, não funciona mesmo.” Uma frase? “Não vamos nos dispersar, que é de Tancredo Neves quando ainda não havia conhecido as bactérias do Hospital de Base.” Um time de futebol? “O Politheama, do Chico Buarque, que é dono do campo, da bola, das camisas e do apito.” Uma declaração de amor? “Mulher que eu amo não sujo com dinheiro.” Um livro? “Zélia, a Grande Mentecapta.” Um prato? “Baconzitos, que eu gosto de comer na cama com Petúnia, a minha deusa neo-punk.” Um passatempo? “Matar moscas com o jornal dobrado.” Uma virtude? “A da originalidade em tudo o que faço, minha própria sombra me considera um ser inimitável.” Um espírito exemplar? “O poeta singular que foi Vinício de Moral.” Uma preocupação ecológica? “Transfiro-a para os filhos do vento fresco com a mata virgem.” Um defeito? “Ora, basta de confidências, pois nem o meu travesseiro até hoje me arrancou tantas...”
Dito isto, levantou-se. E, com o ar de quem estava dando o papo por encerrado, ante a minha pergunta de quais seriam as suas últimas palavras, foi peremptório: “Não farei como o Aurélio que disse zurzir, zwingliano e morreu. Nessa situação, exclamarei: Ah! A interjeição que é a um só tempo dor e alegria, como a significar o espanto, a ironia por ter que recomeçar tudo em algum outro canto do Universo.” E retirou-se, deixando-me com a sensação final de que acabara de atravessar um oceano de sabedoria. Com apenas dois centímetros de profundidade, sim senhor, mas, de qualquer forma, um oceano de sabedoria.

Em tempo – Por uma questão de fidelidade aos fatos, devo registrar que as suas últimas palavras a este repórter foram verdadeiramente estas: “Neste restaurante, tem uma conta que eu não estou a fim de pagar. Mas espero que você reaja de modo oposto, abrangente e, se possível, sem chiar.”

domingo, 13 de abril de 2008

MEMÓRIAS DE CUBAS...

Tinha eu quatorze ou quinze anos de idade quando atendi pela primeira vez ao chamamento do álcool. Enturmado com alguns amigos do meu bairro, numa daquelas tardes que as responsabilidades não trazem mais. Um despretensioso ponto de venda de utensílios domésticos - cujo dono se acumpliciou conosco na armação - serviu de palco ao acontecimento em questão. Pelo fato de que lá não se vendeu, naquela tarde memorável, panela, jarro, moringa ou cinzeiro (feito tudo de barro). Ocupando-se apenas o estabelecimento - com o dono em seu novo papel de barman - a receber um grupo de cinco rapazes que andavam a fim de uma "malinação".
No interior do modestíssimo estabelecimento, com a porta fechada a tramela para que outros não adentrassem, lá estávamos nós. Sentados em bancos improvisados (caixotes), a provar do mel proibido. Em particular, eu temia a quem aparecesse de intrujão para depois sair me dedurando (ao pai, ao mestre-escola, ao juiz de menores etc). E, partilhando o temor com a rapaziada, eu também receava uma outra coisa. Por conta de algumas doses acima da conta, perder as tais estribeiras.
Ninguém da turma apresentava uma idéia exata de quando o álcool "pegava". E ficávamos olhando, uns para os outros, em busca dos sinais denunciadores. Rir à toa, dizer um disparate, engrolar a fala, por aí...
O fato é que bebericávamos com todo o cuidado. Cheios de línguas. Antevendo inclusive que, ao fim daquela reunião secreta, cada um tinha de chegar a sua casa com o poder pátrio sobre as próprias pernas. Por isso, nada de "chorar" muito à hora de pôr o rum no copo. E, como precaução extra, diluir bastante a dose colocada em Coca Cola, gelo e suco de limão.
Pois é, dá para notar em que eu fui me escorar para o primeiro porre de minha vida. No espírito da cuba-libre.
E, como tudo mais no Brasil, aquela bacante reunião terminou em samba.
Depois, em oportunidades outras de minha existência, fui sendo paulatinamente apresentado no vasto círculo das bebidas. Cerveja, Gin, Vodca, Cachaça, Vermute, Uísque (o cachorro engarrafado, segundo Vinicius, por ser o maior amigo do homem), Martini... A propósito, por uns tempos andei seco por um Martini idem. E houve ainda o caso do Vinho que me perguntou se eu estava a sofrer de amnésia alcoólica. Mas que, em seguida, não se negou a me socorrer a memória.
- Na sacristia, lembra?
- Ah...
Agora dois dedos de prosa sobre a cachaça. Pelos terríficos efeitos em minha economia (palavra aqui usada com o significado de organismo animal ou vegetal em plenitude de suas funções), ontem como atualmente, não me entra. A não ser muito bem disfarçada de caipirinha, coquetel, leite-de-onça... Ao contrário da cerveja, cujos domínios espumantes muito já tenho frequentado e que, por isso, sobre ela o meu comentário é este: aprovo-a com louvor. Ainda que procure beber dela cada vez menos, pedindo ao garçom que não deixe juntar muitos cascos em minha mesa. Afinal, o público merece respeito.
E como já sofri com as carraspanas! Da cefaléia, o carro-chefe deste tipo de suplício, ao afamado gosto de cabo de guarda-chuva na boca, passando pela sensação de ter matéria ígnea no estômago, que chega mesmo - suprema humilhação! - a me transformar em vulcão de banheiro. Hoje, porém, isso não acontece mais comigo. Depois que, numa atitude de volta à origem, aderi de copo e alma ao rum-doce-rum, o qual vem me proporcionando um day after absolutamente normal. E, sem explicação científica para o fato, dado que o fenômeno não se repete em outras pessoas que experimentam a rústica beberagem.
Bem, dizer que aderi de copo e alma não passa de um trocadilho. E também de um exagero. Apesar de que busco, nessa muralha chamada vida (Huxley falou), aqui e acolá abrir umas portas da percepção. Com todo o cuidado, porém, para não virar o alcoólatra da Regra de Jânio da Murphologia.
Mas... o que diz esta importante regra?

Isto: "Alcoólatra é o sujeito que bebe mais do que o seu médico."

sexta-feira, 11 de abril de 2008

1992

Valerá a pena estar acordado em 1992?
Diante do que o o presidente Collor recentemente anunciou, dando este ano como sendo de arrocho e dificuldades e prometendo algum alívio somente em 1993, presume-se que não.
Por isso, não fique na recessão esperando a depressão chegar. Fuja de ambas as situações da melhor maneira que existe: dormindo.
Encontra-se em nossa cidade o Dr. Rip Van Winkle para ministrar um curso de sono prolongado. O notável mestre, que acumula em seu saco de dormir a experiência de haver dormido 20 anos ininterruptos, foi discípulo de um outro não menos notável, o grego Epimênides. O qual, por sua vez, logrou dormir 57 anos a fio, com a alma desagregada do corpo a estudar Filosofia e Medicina.
Se você está interessado, compareça logo ao Palácio de Morfeu. Trazendo apenas colchonete, travesseiro, pijama ou penhoar (conforme o sexo), tampões de ouvidos, lençol e cobertor.
Enquanto estiver sob seus soníferos cuidados, equipes de monitores treinados encarregar-se-ão de:
- trocar periodicamente os lençóis molhados;
- sacudir o dormidor acometido de pesadelo (mas com o cuidado de não o acordar para a realidade que pode ser bem pior);
- massagear-lhe as panturrilhas e, caso tenham sido previamente solicitadas, outras partes (não-erógenas) do corpo;
- completar o nível de água do copo com a dentadura;
- perseguir de forma implacável grilos, percevejos e pernilongos que ousem entrar no recinto;
- e reconduzir o sonambúlico de volta ao leito.
Dr. Rip Van Winkle não usa porrete, pêndulo, barbitúricos ou mosca tsé-tsé. Apenas o poder natural da persuasão - que teve a aprovação unânime da Food and Drug Administration - acrescido de ligeiras pinceladas acerca de como vai ser o presente ano. Sinta aí: inflação, choques econômicos, mais inflação (com soluços), AIDS, corrupção, cólera, CPI, 59º imposto... Por isso, é largar ou pegar... no sono, e quem tem juízo escolhe a segunda alternativa, claro! Mesmo porque o Mestre do Sono não é de conversar para boi não dormir.
Atenção! Por não se tratar de eletrossono, o método do Dr. Rip Van Winkle não remove os macaquinhos do sótão. Nem faz você ir dormir Ibrahim e acordar Merquior. Apenas ajuda a atravessar o inditoso ano de um modo absolutamente indolor, como se você estivesse dos pés a cabeça untado de xilocaína.
Concluindo o ano de sono, receberá o dormidor um certificado. Para a justificação de todos os compromissos não atendidos, inclusive os relacionados com a Receita Federal. E receberá também uma sinopse do noticiário econômico e político do País. A fim de bem se sair numa questão que, no pós-despertar, inevitavelmente vai formular a si próprio.
Valerá a pena estar acordado em 1993?
Pelo sim e pelo não, no ano seguinte Dr. Rip Van Winkle vai estar novamente a postos.

* * * * *

No início do ano, a TV Globo botou uma parte do seu elenco de profissionais a serviço de uma proposta. Esta: convencer o brasileiro a fazer (depois de inventar e tentar) um 92 diferente. E, para dar o recado global, é que aconteceu na telinha o maior troca-troca artístico. Em que diretor fez esquete, apresentadora sapateou, ator dedilhou violão, atriz cantarolou e até o Primo Rico virou o Primo Pobre (e vice-versa). Ficando assim demonstrado - via exemplos famosos - que qualquer um tem condição de trocar o ramerrão cotidiano por experiências que desenvolvam os pendores latentes.
Requisitos para tanto: uma dose de boa vontade e um afrouxamento na autocrítica (este último fora do script, claro).
Felizmente, não estamos em 69. Porque aí, ocorrendo a proposta da Globo, verificar-se-ia um forte efeito perturbador no plano dos bons costumes. Com inevitáveis consultas - por parte dos erotômanos tupiniquins - ao "Kama-sutra", ao "Positions" ou mesmo à tão aguardada coleção de revistinhas do Zéfiro. Para se inteirarem sobre o que de novo estaria havendo sob o... teto espelhado dos motéis. Mas isto depois de terem eles dado trato às bolas, inventando e tentando, inventando e tentando... Afinal a Globo dixit.
Apertando o botão de forward até chegar a 1992. No reveillón, muito mais que a entrada neste ano, eu comemorei (e "bebemorei") a saída do ano anterior. Ah, intempestivo flui! Porque, para o meu próprio bem, eu devia ter ficado no limbo até as coisas melhorarem. Pois, de saída, aliás, de entrada o que já encontro no ano? As promessas do governo, políticos legislando em causa própria, o problema do menor abandonado, o do maior desempregado, o cartel do cimento, consórcios de carros dando trambiques, as estatísticas de mortos e feridos no trânsito louco, analfabetismo, tráficos de influências, corrupção e impunidade, as doenças se propagando a jato (o ministro, de bicicleta), a novela dos aposentados... Enfim, tudo como dantes no Quartel de Abrantes (inclusive a velha tara de ameaçar com botar a tropa na rua).
No país da "imexibilidade" que a mesmice é também perene, lá isto é. E, pelo andar da carruagem, digo, carroça não dá para acreditar em mudanças à vista. Salvo aquelas que aconteçam para continuar tudo igual, cravo e ferradura levando idênticas marretadas. Então, no meio dessa pasmaceira, vai que eu fique a pensar sobre o que é fazer um 1992 diferente. Um 1992 tão inusitado que o Gerald Thomas ainda não tenha inventado, nem o Cacá Rosseti tentado... Hum, está difícil... A menos que eu, para sair do dilema apresentado, seja tão inovador quanto consigo ser anacrônico.

Feliz MCMXCII, leitor!

OUTRAS CRIAÇÕES

Antologia de prosa e poesia publicada em 1992 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Patrocínio: UNIMED de Fortaleza.
Apresentação: Darival Bringel de Olinda.
Autores: Caetano Ximenes Aragão, Celina Corte Pinheiro, Cleto Brasileiro Pontes, Dalgimar Beserra de Menezes, Francisco Monteiro, Francisco Sampaio de Oliveira, Geraldo Bezerra da Silva, Hamilton Monteiro dos Santos, Heládio Feitosa de Castro, José Maria Bonfim de Morais, José Rômulo Barbosa, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Luiz Teixeira, Newton Gonçalves, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Pedro Henrique Saraiva Leão, Roque Muratori e Tarcísio Diniz.
Capa: José Flávio.
Impressão: Multigraf Editora Ltda.
Livro com 178 páginas.

domingo, 6 de abril de 2008

PÃO, CIRCO & COMPANHIA

São cinco anos de circo, beirando os seis. Eu entro logo depois que as irmãs Desilu e Dida concluem o número dos pratos. Mas... antes eu espero que toquem o meu prefixo musical... aí, enquanto o apresentador me anuncia, eu me posiciono no interior do canhão. Em seguida, me concentro e enrijeço os músculos do corpo todo, tentando ser um bloco compacto. Disparam e... lá vou eu!... Cumprindo uma trajetória curva que me leva até a rede de proteção. Depois, é fazer umas tantas mesuras em agradecimento ao público que está aplaudindo. O público, por sinal, gosta muito do que faço e eu procuro melhorar a cada função.
Já deu para entender que eu sou o homem-bala de um circo. Inicialmente, trabalhei algum tempo no Grande Circo Mirífico, fazendo parte da trupe de equilibristas. Eu fazia com a turma uma pirâmide humana de difícil estabilidade. A prova é que um dia ela desabou feio, me causando uma fratura. Baixei ao hospital e quando me recuperei o circo tinha-se mandado do lugar. Não me comunicando a partida, eu concluí que não mais me queriam. Talvez por julgarem que eu ia ficar com algum tipo de limitação.
Ora, eu fiquei de fato foi na pindaíba, me equilibrando por outros meios para sobreviver. Até que, um dia, me surgiu na frente o Gran Circo Portunhol, que estava precisando de um homem-bala. Aceitei na bucha o emprego oferecido. Estava a fim de me livrar da pecha de pé-frio (e alguém pode imaginar emprego mais adequado para isso?)... Também estava a fim de subir na vida, o salário era razoável... E eu logo aprendi a conviver com o canhão, metal e carne na maior harmonia, se completando... E, com pouco tempo de treinamento, já fazia parte do espetáculo.
Essa loucura que é o circo. O sujeito está aqui, no mês seguinte numa outra cidade... A menos que seja com alguém do próprio circo, não dá para levar vida sentimental. Eu acabei me envolvendo, me apaixonando mesmo por Lili, a contorcionista. Dotada de um corpo exato, no esplendor dos seus dezoitos anos, ela também correspondeu ao meu amor. Seis meses após, estávamos juntos como marido e mulher. O dono do circo, pela importância que tínhamos no picadeiro, nos arrumou um trailer privativo, o nosso ninho de amor. E, nos braços de Lili, eu era incansável. Nem o leão Nero a mim se igualava (mesmo estando ele no período do cio). Ah, não queira o amigo saber do que uma contorcionista é capaz na alcova!...
Outra coisa, sou ciumento. E, aumentando o natural receio, tempos depois comecei a perceber algo diferente no ar. Algo que não era cheiro de pólvora (pois ao mesmo, aliás, por força do ofício já me habituara). Lili, minha doce Lili, não era mais a que eu conhecera. Pouco interessada em fazer amor comigo, não era mais a outrora fogosa mulher. E, porque não usava da franqueza comigo, tome eu grilado sobre o futuro do nosso relacionamento. Ficava pensando, pensando... se uma sinistra pessoa não estava me fazendo entrar pelo cano.
Um dia, porém, a suspeita de traição ganhou maior consistência. E foi Abhez, o mágico, quem levantou a lebre. "Fica de olho no Oto com a Lili", ele me disse. É... o Oto, que era do trapézio, já tivera inclusive precedente com a mulher de um companheiro. Ensaiara com ela uma fuga, só não indo muito longe os dois, pelas limitações que o trapézio oferece para tentativas de tal natureza. Então, botei olho vivo no Oto. O trapezista preenchia todos os requisitos para um homem que o mulherio chama de pão.
Em princípio nada notei que comprometesse. Mesmo porque eu ficava com Lili o tempo todo, menos nos momentos do meu show. Mas, diabos, o encontro dos dois podia ser nesses exatos momentos. Pois, de estar a postos a descer da rede de segurança, incluindo-se ainda a minha corrida até o trailer, transcorriam quinze minutos. Ou até mais tempo, quando o estrondo do canhão me deixava atordoado. E quinze minutos era tempo suficiente para Oto consumar o ato e ainda se livrar do "flagra". Principalmente se Lili dispensasse as preliminares. Bem, falando mais alto o orgasmo, Lili certamente vinha dispensando as preliminares.
(Entre nós: que espécie de show eu estaria a fazer se, em vez de me concentrar nele, ficasse a vigiar os dois pombinhos? Num domingo - que tem muitas funções - ia acabar sabe como? Quebrando a cara.... no sentido físico desta expressão.)
Depois de um estudo de situação resolvi então o seguinte. Verticalizar ainda mais o canhão - aí, com este previamente "envenenado" para dar um impulso extra - a fim de que, após atravessar uma abertura quadrangular existente na lona, eu fosse cair na proximidade do trailer. Com isso, ganhando decisivos minutos. E os cálculos feitos numa prancheta (um capitão de artilharia embaixo assinaria) não antecipavam outra coisa. Que a operação era executável, faltando apenas resolver o problema da aterrissagem.
Quando um monte de feno foi colocado no local previsto para a queda, então não faltava mais nada. O feno, esclareço aqui, era para a alimentação do leão Nero que tinha virado vegetariano. Desde que uma carne da pá, consumida em demasia, lhe causara uma bruta indigestão. A carne da pá, que não era boa nem má... porém, aí entro numa outra história, esqueça. Como também esqueça eu antes, no capítulo do desempenho sexual, haver me comparado ao sibarítico leão.
No dia propício, lá estava eu na trajetória que ia dar no monte de feno. Sob o olhar estupefacto do dono do circo, do respeitável público, de todos, enfim. E, mal pouso no feno, de lá corro ao trailer certíssimo de flagrar a dupla. Antes de ser projetado no espaço, eu não tinha visto o Oto no interior do circo. Nem a Lili. Então, era só abrir de supetão a porta do trailer e... Com razão, vejo na cama um movimentar de corpos, ouço um indecente resfolegar... Aproximo-me. Mas... quando puxo os lençóis para que se inculpassem aos meus olhos, jacaré estava lá? Não, Oto não estava.
Aquele toco de gente, o anão Epaminondas, era ele quem estava agarrado à Lili, minha doce Lili. Molhando o biscoito, como se diz neste tempo pós-Faustão. E a surpresa foi tamanha que eu, preparado para matar Giovanni Casanova, fiquei completamente aturdido. a ponto de deixar fugir, cabriolando entre as minhas pernas, com a cueca vestida ao contrário, o anão Epaminondas. Entretanto, ao alcance do meu braço vingativo, ainda se encontrava Lili. Lili, a arrependida, que chorava me pedindo para não lhe tirar a vida. Aí, me lembrando de todos os bons momentos que antes tivéramos, embainhei a arma. E abracei, beijei e perdoei Lili.
Levou algum tempo, sim, mas depois perdoei Epaminondas. E, por conta da amizade reatada, ele é muitas vezes um íntimo convidado nosso. Bem... a situação me obriga a transar grupalmente com uma contorcionista e um anão, mas foi a maneira que encontrei de sair menos chamuscado do episódio.

sábado, 5 de abril de 2008

MURPHY SHOW

LEI MAIOR DA REUNIÃO
O fim precípuo de uma reunião é organizar a pauta da reunião seguinte.
ENUNCIADO DE ACÁCIO
Regra é o que sobra depois que se suprime a exceção.
AXIOMA DE LAZARONI
Em time que está empatando não se mexe.
COROLÁRIO
Quem não leva, faz.
LEI DA SUMIDADE COM O REDUTOR DE PINOTTI
Quando um especialista afirma que viu dois ou três casos de uma rara doença ele viu exatamente um.
COMUNICADO DE MACEDO À IGREJA UNIVERSAL
A fé remove montanhas por ocasião dos terremotos.
ADIÇÃO DE CARLOS MAGNO
E isso era dogma!
POSTULADO DE BURLE MARX
Quando o jardineiro se demora na aguação no restante do dia chove.
LEI DA PEGABILIDADE DE MAGRI
Dito por quem não entende de etimologia um neologismo pega facilmente.
PARADOXO DE ALCENI
A velocidade com que o paciente é atendiddo no hospital é inversamente proporcional à da ambulância que o transportou.
POSTULADO DO EXAME COMPLEMENTAR
Apesar de rico em detalhes o espermograma não diz do prazer que houve.
PRIMEIRA LEI DE SADDAM HUSSEIN
O bem morre de véspera.
ADIÇÃO DE JÓ
Já o mal quando acaba ainda dura três dias.
LEI TARSO DE CASTRO
O álcool não só encurta a vida como faz com que ela passe mais depressa.
PRINCIPAL DE RUSCHI
Quando é para melhorar a natureza não dá saltos.
LEI DE GERSON APLICADA AO TRÂNSITO
Quando se infringe o regulamento o guarda nunca é míope.
COROLÁRIO
Porém se acha "duro", o que facilita o entendimento.
LEI MARGARIDA PROCÓPIO
Nenhum sofrimento é completo sem a interferência do governo.
AFORISMO DE TANCREDO
Afora a hipocondria uma doença nunca vem só.
COROLÁRIO
E o especialista que vai tratá-la, idem.
DEBOCHE DE DERCY SOBRE A EXPANSÃO DO UNIVERSO
Não influi no microcosmo, não aumenta a oferta de sublocação.
LEI SEVERIANO RIBEIRO
Se o filme é bom há um jogador de basquete sentado(?) na cadeira da frente.
ENUNCIADO DE SENOR ABRAVANEL
O que faz em casa o papagaio não repete no programa da televisão.
EXTENSÃO DE GUGU
A menos que seja o indevido.
OBSERVAÇÃO DO MAÎTRE BATISTA SOBRE ORADORES BAIANOS EM GERAL
Conforme o número deles um banquete pode ser maçante ou massacrante.
AFORISMO DE STING
Índio não quer apito, quer agito.