terça-feira, 31 de agosto de 2010

DISPUTAS CURRICULARES

Ele, na frente dos amigos, gostava de contar vantagens. Uma delas era o controle que tinha sobre a mulher, uma paulista de aparência frágil. E, para que a mulher se mantivesse enquadrada, ele recorria a um argumento irretorquível: o curriculum vitae. Aqui entendido o currículo como uma larga experiência de vida, firmada em seus casamentos anteriores.
Se casar fosse construir o andar de um edifício, ele já estava na quarta laje. Podendo ir para a quinta, conforme.
Um dia, porém, o curriculum vitae, mil vezes falado, foi afrontado. Pela mulher que, já não suportando tanta hegemonia do marido na relação conjugal, anunciou na roda:
- Também mostro o meu...
Epa! Então a mulher teria algo equivalente em seu passado (que não lhe fora antes revelado), de onde poderia criar forças para derrotá-lo logo no primeiro assalto?! E nem precisou perguntar como seria o tal currículo, pois ela, abrindo a bolsa, já o mostrou para todos.
- Está aqui. É uma passagem aérea para São Paulo. Só de ida.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FORA DO AR

Depois do jantar Possidônio adorava reunir-se com os amigos para um carteado. Todas as noites, isso, para o desgosto da mulher que queria ter o marido a seu alcance. A parolar um com outro, nas espreguiçadeiras postas na calçada da casa, um longo papo apenas interrompido para cumprimentar os passantes. Sim, era assim que a mulher gostaria de que fosse... Mas, diabos, havia o maldito carteado que arrastava o marido para longe... Não tão longe, porém, uma vez que a cidade, pequena como era, não permitia um grande distanciamento entre as pessoas.
Tanto que Possidônio não encontrava sossego nos carteados com os amigos. Logo e muita vez, chegava alguém, a mando da mulher, para lhe interromper o jogo, com o recado de que fosse ligeiro em casa. Os motivos eram forjados, claro, pela mulher que ansiava pelo retorno do marido. Só que este, com o passar do tempo, deixara de levar a sério os repetidos chamamentos. Podia a casa pegar fogo - de verdade - que ele não arredava o pé do jogo. Embora se aborrecesse, e muito, com as insistências da cara-metade.
O diacho. Coisa uma era o entretenimento com as cartas, o papo descontraído com os amigos, as bicadas na cachaça que alguém da turma trouxera... E coisa outra era ficar na calçada da residência, entediando-se com a mulher. Alô, seu Souza, como vai? vou bem, recomendações para a patroa, tal e tal... A cumprimentar os conhecidos, que eram tantos quanto o número de almas da cidade. Por sorte, não passavam todos na mesma noite, se bem que havia um que não falhava. Mas esse vinha de longe, era o vento do Aracati e, graças a Deus, não precisava ser saudado.
Mal o vento passava, então todos recolhiam as cadeiras e iam sonolentos para suas camas, assim era a rotina da pequena cidade. Pois bem, dessa rotina Possidônio se livrava... caindo noutra, a qual pelo menos era de seu agrado.
Um dia, a cidade tomou conhecimento de uma grande novidade. No morrote dos Guimarães, onde Possidônio costumava passarinhar quando garoto, tinham acabado de instalar uma antena repetidora de televisão. De modo que a cidade, daí em diante, ficava integrada à aldeia global, o que era a prova do progresso chegando. E quem podia logo se apressou a comprar o seu aparelho de televisão. Possidônio inclusive, mas por um motivo bem particular, digamos assim. Por entender que o aparelho, assim que fosse entronizado em sua residência, operaria uma transformação em sua mulher. Fazendo com que ela não mais o incomodasse no carteado.
Não deu outra. Enquanto Possidônio mexia com as cartas, as novelas das sete, das oito, das nove... se encarregavam de manter a mulher paralisada na sala do lar. E Possidônio já nem se lembrava do tempo desagradável em que não podia cartear em paz. Por isso, foi com grande surpresa que ele viu o molecote dos recados se aproximar do local em que jogava. Não devia ser atrás dele...
Mas era:
- Seu Possidônio, sua mulher me mandou aqui...
- O que ela quer?
- Ela disse que a televisão está fora do ar.
- Ora, vá... Diga a ela que bote no "bê".

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O ENTREGADOR DE JORNAL

Sr. Editor:
Num tempo que as rotativas não trazem mais, uma funcionária do setor de vendas de seu jornal, o Diário do Nordeste, me conquistou. Demonstrando possuir um notável poder de persuasão, no decorrer de uma ligação telefônica (de poucos impulsos), essa pessoa operou em mim um feito simplesmente carismático. Por pôr por (quanto eco, meu Deus!) terra o que, até então, era um tabu meu. Comigo carregava a ideia de que eu jamais seria um assinante de jornal ou revista. Sem que isso significasse alguma restrição ao prestigioso jornal que está a publicar esta crônica (travestida de carta).
Antecedendo a abordagem sofrida, eu devo dizer que, a cada dia, já vinha me tornando o mais regular dos regulares adquirentes do DN. A ponto de só falhar em adquirir um exemplar do periódico na terça-feira (o dia da semana em que o jornal sai com material de segunda).
Era que o sol nas bancas de revistas, me enchendo de alegria e preguiça (quem lê tantas notícias?), reforçava um velho hábito meu. Parar, junto a uma delas, a fim de ver que novidades haviam chegado sob a forma de revista, fascículo ou livro. E, após um momento de leitura e outro de livre arbítrio, adquirir uma dessas mercadorias de cultura, informação e lazer. Entretanto, quando nenhuma delas me provocava algum interesse, pelo menos levar um jornal estava garantido. De modo a compensar um pouco o tempo que o dono da banca gastara comigo. Afinal, ele tinha certas expectativas que não podiam ser tão repetidamente frustradas.
Promovido a assinante de jornal, passei a travar contato com uma nova realidade. Nunca mais sair de casa sem saber os parâmetros da nossa economia indexada, por exemplo. Mas não era só isso. Todo dia que Deus dava, passei a reconhecer o som de uma motocicleta que se aproximava, reduzia a marcha e... parava bem defronte a meu portão. Era o entregador. Seguia-se um breve tempo (em que se pressentia que ele estava dobrando o jornal) e lá vinha o meu exemplar. Depois de ultrapassar o muro da residência para, em seguida, cair no jardim: na grama, num cesto de samambaia ou no capô do carro. Precisão cirúrgica não existia nesses lançamentos do entregador.
Agora, respeite o estrondo que o jornal arremessado fazia ao atingir uma parte cimentada do jardim. Era algo tão tonitruante que até o cachorro do vizinho se punha a latir. O cachorro, fique aqui bem entendido. A crise nacional era fogo, mas custa a crer que o próprio vizinho ficasse latindo para economizar cachorro. Apesar de que esta piada, se for lida por ele, possa comprometer a minha política de boa vizinhança.
Por vezes, o resultado do lançamento dava para ser catalogado como "muito além do jardim" (pedindo vênias pela falta de originalidade da expressão). Era quando o matutino, aproveitando-se de uma janela aberta, aterrissava na sala principal da casa, perto do Buda dourado. Ah, matutino sem tino! Supostamento, o entregador se achava em dia de grande forma física. E conseguira dobrar o jornal nove vezes (o limite para um ser humano), antes de lançá-lo. Nunca o conheci pessoalmente, porém o imagino como um moderno discóbulo.
Jorge de Lima cantou para a eternidade o acendedor de lampiões. Outros, com menor claridade, escreveram sobre o jangadeiro, o boiadeiro e a mulher rendeira. Rompendo o ineditismo existente, coloquei o entregador de jornal no centro desta crônica (que o Sr. Editor naturalmente já percebeu que não é uma carta). É minha tentativa de reparar uma injustiça histórica. Pela regularidade com que ele cumpria o anônimo dever, o seu nome deveria figurar no expediente do jornal.
Atrasos acontecem. Se me propiciam uma perspectiva histórica dos acontecimentos, então deixam de ser problemas. Houve uma vez em que ele deixou o meu jornal pegando chuva. Mas não quero, com isso, entregar o meu entregador. Foi a forma liminar que ele encontrou para me dar um importante recado. Comece a aprender a técnica do papier machê. E, se eu deixei passar a oportunidade, a culpa cabe só a mim.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

SOBRE AS DISTÂNCIAS REGULAMENTARES

A classe média (da qual faço parte, mas não orgulhosamente) foi inventada para manter os pobres distanciados dos ricos. Em troca de nossos serviços, estes nos acenam com a possibilidade de um dia entrarmos para o seleto clube do caviar. E essa mutualidade acontece porque os ricos são extremamente ciosos de seus espaços pessoais onde, procedentes de outras categorias, só entram os personal trainers e os personal stylists.
Não ignoremos que a noção do "eu" não se restringe aos limites da pele. Duas a três décadas atrás, Edward Hall desenvolveu uma área de estudo, a proxêmica (criando inclusive este termo a partir do latim proximus), para definir a "ciência que estuda a estrutura inconsciente do microespaço humano". Em outras palavras, tudo o que se coloca entre o "eu" e o "outro".
Através da proxêmica, aprendemos que, entre dois adultos norte-americanos, a distância conveniente para que eles mantenham uma conversa é de cerca de 70 centímetros (que pode ser ampliada se o interlocutor tiver mau hálito). Isto porque os norte-americanos, em grande parte, pertencem a uma cultura de não-contato resultante de uma herança puritana. Já os latinos gostam de bater papo a uma distância menor, face a face. Daí porque são bem aceitas, no Brasil, as entrevistas no estilo "Cara a Cara", como aquelas que a Gabi faz na televisão.
Os russos, os árabes e os judeus são outras grupos étnicos que gostam da aproximação. São culturas táteis, por assim dizer.
E há particularidades interessantes relacionadas ao sexo: a aglomeração torna o homem combativo e a mulher amistosa; assim, numa sala pequena e apertada, um júri feminino tenderá a ser mais tolerante.
A proxêmica também nos ensina que existe uma escala de distâncias, a qual estabelece a distância apropriada a cada tipo de relacionamento. A distância que é adequada para fazer sexo, para conversar, para discursar etc. Por conseguinte, uma moça não deve dar o "sim" (ainda que a tentação seja grande) para quem a pede em casamento a uma distância de... 4 metros. Pois essa é uma distância pública, apropriada apenas para os discursos.
Desviar o olhar, dar as costas, inquietar-se, recuar e até mesmo avaliar se há necessidade de atacar são condutas observáveis frente a uma invasão da "bolha" individual. É por saber medir qual a distância crítica que o domador controla o leão (ou a leoa).


*****

O oftalmologista Nelson Cunha talvez não se lembre do fato. Estávamos no centro de Fortaleza: ele, eu e Ozildo, um colega de turma na Faculdade de Medicina. Quando Nelson me avisou de que ia fazer uma brincadeira com o colega. Imagino que Nelson já fizera isso antes (para ter tanta certeza do resultado que ia obter). Como era a peça: Nelson, enquanto papeava com Ozildo, faria umas incursões no microespaço dele. Fez a primeira. Sentindo a "bolha" invadida, Ozildo recuou. Nelson tornou a crescer para cima dele. Ozildo recuou ainda mais. Quando deu por encerrada a brincadeira, Nelson tinha conduzido o colega por um quarteirão inteiro - em marcha à ré!
Como um grande germanófilo que era, Ozildo tinha assimilado até essa característica do povo que tanto admirava.

Resposta do Nelson:
"Lembro me sim dessa "característica " do Ozildo. Há também aqueles que durante uma conversa vão marcando os tópicos do assunto com leves toques no interlocutor (vendedores de patos). Há em Monlevade uma senhora, dona de cartório, que perde instantaneamente o ritmo do discurso se voce se livrar dos seus toques. Faço com ela o que fazia com o Ozildo, mas em direção contrária. Afasto-me muito discretamente para além do alcance do seu braço. Ela instintivamente avança na minha direção. Assim seguimos para seu desespero e o gozo da minha alma de moleque."
O grifo é meu. PG

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

MARIA

(original)
1
Maria, por simples gosto
Das aventuras galantes
Nas duas covas do rosto
Vai enterrando os amantes.
2
Não te recordas, Maria
Da noite de São João
Tu vias no céu estrelas
Eu, as areias do chão.

- Anônimo
(paródia)
1
Fui amante de Maria
Acabei me dando mal
Enterrado à revelia
Em seu rosto sepulcral.
2
As tais areias do chão
Não me causaram prazer
Aliás, foram um estorvo
Na hora do "vamos ver".

- PG