quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O BEIJO

O beijo: taí um tema que anda nas bocas. Descrito como o ato de pousar os lábios em alguém, vá lá, o beijo é um ato de superfície não necessariamente superficial. Ah, a profundidade que ele tem quando o coração está na jogada! (E reparem que eu não estou falando apenas do beijo de uma mulher que pinta os lábios em coração.)
Além do beijo pessoa-pessoa há o pessoa-coisa, não esqueçamos. Quando se beija, por exemplo, um amuleto, uma carta de baralho ou um bilhete de loteria - de olho na sorte grande. O beijo que o pugilista dá na lona, de olho roxo, bem... deve ser uma exceção à regra.
Como surgiu o beijo? Dan Carlinsky, um estudioso do assunto, viu o começo de tudo nas aves que, bico a bico, alimentam seus filhotes. Depois, com um simples aperto na tecla de fast forward, Dan avançou milhões de anos e chegou aos homens das cavernas. Não é que os cavernícolas lambiam, uns aos outros, nas faces, como forma de compensar a carência orgânica de sal?
A civilização nos legou benefícios. Um deles, o de que, com a invenção do saleiro, ficamos todos mais elegantes à mesa da refeição; outro, o de que atrelamos novas razões e emoções ao ato de beijar. Há uma classificação para o beijo: 1) caloroso, 2) afetuoso, 3) religioso e 4) voluptuoso.
O primeiro tipo, o beijo caloroso, é o das pessoas que, em sinal de amizade, beijam-se nas faces. Esbanjado pelos eslavos, vem se universalizando. Os últimos, talvez, serão os esquimós que ainda desconhecem o beijo: eles se contentam em esfregar o órgão do atchim. (Gente fria é outra coisa!). O segundo, o beijo afetuoso, quem tem supermãe tem todos.
Já o beijo religioso é o que se dá, como sinal de respeito, em uma autoridade eclesiástica. O anti-exemplo dele foi o beijo, de triste memória, dado por Judas na face de Jesus. Naquele tempo, Jesus mostrava aos homens o caminho do Céu, o caminho alternativo com relação a todos outros que só levavam a Roma. Deu que os "omes" não gostaram da pregação e resolveram tirá-lo de circulação. Estavam só precisando de um "beijo-duro", quando apareceu Judas, que andava com problema de caixa. Judas entregou o Nazareno e, desde então, tem sido (merecidamente) malhado.
O último tipo, o beijo voluptuoso, o que dizer dele? É o que nos transporta ao céu (da boca, bem entendido), é o que não conhece a barreira da língua (pelo contrário), é o que instaura na gente o princípio do prazer (cujo fim é também o prazer). Bem-aventurados os que têm bons lábios. Bem-aventureiros os que têm boas lábias.
Sinônimo de beijo é ósculo, os dicionários registram. Desculpe-me, minha senhóra, mas ósculo parece beijo de sujeito pedante, daquele que a chama de minha senhôra. Já beijoca, palavra também dicionarizada, soa melhor pois é, exatamente, o beijo com estrépito. O smack dos norte-americanos, o "?" dos brasileiros, que aqui ninguém sabe a ortografia de algo que só existe na tradição oral. Mmmrrrzzz? Pppfffttt? Nnnssslll?
Aconteceu de um cientista calcular a quantidade de germes a serem transmitidos num único beijo. E, com esta descoberta em mente, ele, ao chegar a residência, então evitar o beijo de sua (dele) esposa;
- Não, querida, beijo na boca, não.
- Já sei. Você não quer se arriscar aos 100 milhões de Streptococcus pyogenes do meu beijo.
- Seja compreensiva. Você não está usando pastilhas antissépticas.
- Cafajeste, não exige isto quando vai nos beijos de suas secretárias. No de F., que tem 150 milhões de Staphylococcus aureus, no de B., que tem 230 milhões de Haemophilus influenzae e no de S., que, com 375 milhões de Pseudomonas aeruginosa, mais parece uma guerra bacteriológica.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

UM JARDIM ZOO-ILÓGICO

O desinteresse pela vida animal é geral. Cidades de razoável porte, como Fortaleza, não se dão mais ao barato de ter um zoológico. Foi-se o tempo da procura pelo “segundo maior espetáculo da Terra”, no dizer de Arrelia, um palhaço que ficou no desemprego depois que o circo pegou fogo.
Fui criança, como a maioria das pessoas (a maioria, porque já houve uma exceção: Dom Pedro II), e recordo-me do fascínio que o zoológico despertava em minha alma infantil. Fortaleza, dos anos 50, estava à altura do Rio de Janeiro (ao nível do mar) ao apresentar, no Parque da Criança, uma permanente exposição da vida animal selvagem.
Verdade, não era um zoo completo. Tinha lá suas deficiências: a preguiça, por exemplo, que morrera de um mal lentíssimo, em seu lugar haviam botado por muito tempo um zelador em regime de horas extras.
Hoje, nem isso. Fortaleza, carente de um zoológico, transmite a impressão de que nos quinto e sexto dias da Criação houve ponto facultativo... para Deus. Urge, portanto, que algum órgão municipal encampe:
1°) a mini-ideia de um jardim zoo-lógico.
2º) a maxi-ideia de um jardim zoo-ilógico.
Levando esta última a efeito com os seguintes seres:
O Dragão – Na qualidade de sparring já fez a glória de muito cavaleiro andante que queria impressionar sua donzela. Hoje, porém, em via de extinção (dragão, cavaleiro e donzela). Basicamente, é um animal dócil mas, quando se trata de defender a prole, fica tão fera quanto aquele deputado goiano. Tem como prato preferido o churrasco misto, que ele prepara na própria fuça.
O Basilisco – Lagarto nascido de um ovo posto por um galo e chocado por um sapo, o que explica o seu complexo de Édipo tumultuado. Com o auxílio de sua língua bífida, viscosa, ele passa a maior parte do tempo comendo moscas imaginárias. Sabendo-se que ele tem uma dieta sine matéria, o que ninguém explica é como o basilisco consegue eliminar tantos dejetos. Hércules, que já limpou as estrebarias de Áugias, certamente recusaria fazer faxina na jaula dele.
O Licorne – Animal que lembra um pequeno cavalo, embora dele se diferencie por um cavanhaque à la bode, uma cauda no melhor estilo rococó e um longo chifre no meio da testa. Adora ser montado por um pestinha, digo, um garoto em roupa de marinheiro. Demonstrando isso através de corcovos de alegria, dados antes e depois de fraturar o cóccix de seu pequeno cavaleiro. É proibido de participar de competições hípicas por causa de seu enorme chifre: vence todas, mesmo quando termina com um corpo atrás. Por detestar o milho, a sua alimentação é toda à base de pipoca, canjica, munguzá e papa de maizena.
A Esfinge – Alimária que tem cabeça de mulher e corpo de leão. Anda sempre com uma perguntinha enigmática na ponta da língua. Do tipo: o que é, o que é? De manhã está no PTB, de tarde no PMDB e de noite no PDS? Bem rápido, antes que ela abocanhe sua pessoa, responda à queima-guardanapo: Jânio Quadros.

domingo, 25 de janeiro de 2009

O MAIOR ARTILHEIRO

O nosso país é habitado por 125 milhões de técnicos de futebol (1), sendo eu um deles. O que me credencia a emitir palpites e opiniões sobre o esporte bretão que um dia radicou no Brasil. 
Se me perguntam, por exemplo, quem é o maior artilheiro do futebol nacional de todos os tempos, eu não hesito em apontá-lo.
O maior artilheiro de meu país tem uma longa carreira futebolística. Só que, avesso ao estrelismo, ele é menos citado do que na realidade merece. O caso de dizer: vive no chão.
É disciplinado, jamais recebeu cartão amarelo, vermelho ou de outra cor. Não comanda à base do palavrão, não cospe no rosto do adversário e não faz gesto obsceno para a torcida rival.
Não mandinga, não faz cera, não simula contusão. E nem chuta - com raiva - a bola para as laterais. Em súmula, nada faz que comprometa o espetáculo do futebol.
Em campo, posta-se muito bem, a ponto de confundir a defesa antagônica. A forma física é única do primeiro ao nonagésimo minuto; ou, por mais tempo, se houver prorrogação.
Objetivo em tudo, não dá drible desnecessário. Intervém sempre à base do "bate-pronto", que é quando a bola fica dificílima para o goleiro.
E não é mercenário: fora o rendimento em campo não se interessa por mais nenhum. Se todo jogador fosse como ele o futebol brasileiro não estaria tão "estagflacionado".
Respeita ao máximo os princípios do torcedor "doente". O artilheiro jamais foi (nem será) um garoto-propaganda (2) em comercial de televisão para vender saúde (vitaminas) ou doença (cigarros) - cara e coroa do consumismo deslavado.
Explorando o fator surpresa, ele é simplesmente inexcedível na finalização de uma jogada. Sem exagero, ele já balançou as redes de praticamente todos os estádios de futebol do Brasil.
Pois bem! A esta altura do campeonato, presumo que uma coisa já tenha ficado fácil: levantar a identidade dele. É... o montinho-artilheiro (3).

(1) em 1982
(2) Pelé e Gerson
(3) in cauda venenum

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

GURGELZIM DA VIOLA

Nos vividos de 1967, Gurgelzim tomou a resolução de aprender violão. Comprou dedeira, pestana (uma espécie de prótese para violão), apito de lá, método do Canhoto (na versão destra, a única que existe, aliás) e, last but not the least, pegou emprestado o instrumento.
Mão direita na boca, mão esquerda no braço (boca e braço do violão, bem entendido, que aqui ninguém está falando de ioga), no começo era aquela luta para sacar do instrumento algum som musical, mesmo por aproximação. Em momentos, a vontade de largar tudo e voltar a soprar pente com papel.
“Felizmentecapto”, Gurgelzim foi conseguindo, com pouca catatonia, dominar as chamadas posições do violão: primeira, segunda, terceira e marcha à ré. Deste estágio para o seguinte, o de tocar “Parabéns pra você”, foi mais rápido do que um apagar de velas de um bolo confeitado.
O repertório, até então menos diversificado do que o de um grilo com insônia, avolumou-se com o tirar as músicas de ouvido. E somente quando faltava cotonete na praça é que acontecia de ele cometer alguma heresia harmônica. Do tipo: “Último desejo”, de Noel Rosa, no tom de... ré maior.
Quanto ao espelho, entrou na fase seguinte – a dos acordes dissonantes – que, para quem não sabe, produzem um tremendo visual. Um acorde maior de sexta com nona, por exemplo, é tão estético para os olhos (daí o espelho) que torna dispensável ferir as cordas. O som é um mero subproduto.
Conforme o ponto de áudio, o som pode também ser um superproduto. Senão, por que Gurgelzim muito ensaiaria o pinho dentro de um guarda-roupa? Por causa da acústica, claro. O fato, entretanto, era motivo de insatisfação para seu pai, que não gostava de andar com o colete reverberando “Abismo de rosas”. O cujo fez inclusive greve de não comer peixe frito com alcaparras até que Gurgelzim demovesse da idéia malsã.
Durou pouco a represália paterna, pois o “dilermandinho” da casa provou, por A menos B, que se estava economizando naftalina.
Percalço nenhum, até hoje, fez Gurgelzim tirar a viola do fundo do sovaco e botar no fundo do saco. Como? Desafinar na vida? Ora, isto acontece com ele e com todos. “Rosa”, do Pixinguinha, em ambiente de feijoada com caipirinha, taí a prova incontestável de que a desafinação é geral.

GURGELZIM E O COMETA HALLEY

Movido a álcool de aniversário, Gurgelzim (que o céu o tenha, mas só depois do ano de 2048) fez uma ligeira modificação em seu programa da noite de sábado: não assistiria mais ao filme de arte na Casa Amarela e, sim, iria a uma churrascaria na Rua Padre Anchieta. Uma moça, indo de carona, espetara-lhe a quente sugestão e ele topou, pensando no que aconteceria depois de destrinchar o churrasco.
A viagem “ideira” foi de uma velocidade “lesmática”. Por dois fatores: 1º) Lendo o odômetro do carro ele viu que era tempo de fazer o rodízio dos pneus (e fez). 2º) A ciclovia da BR-116 não é apropriada para quem está com pressa.
Não era o lugar dos assados mais sórdido do que aqueles freqüentados por Gurgelzim et caterva – uma turma que, às três horas da manhã, muitas vezes já tem derrubado o Governo da República. Agora, quando se trata de derrubar um churrasco com fritas é diferente, e um pouco de nervosismo sempre bate em Gurgelzim, um condenado à dieta hipossódica. E, se o médico da Previdência, que fechou questão sobre a dieta, na 15ª consulta do dia 23/04/80, entra ali e o flagra em ato de desobediência?
Na radiola de ficha, Lindomar Castilho impunemente cantava suas canções feministas. Com os ossículos desarticulados nos ouvidos médios, Gurgelzim não conseguia ouvir “chongas” do que ela propunha (“vamos a um motel?”), até que, “sexapelativa”, a mesma fez um gesto de boa vontade. Ele respondeu que sim.
A seguir, mais rápido do que um peixe pisca o olho, o casal já estava num alta-rotatividade. Desinibida, ela num átimo (“ótimo!”) ficou em trajes mínimos. Apenas com uma calcinha onde se lia: 203. (Que safadeza é esse número?)
Coube a iniciativa subseqüente a Gurgelzim, que passou a falar da obra teofilosófica de Tomás de Aquino. Malgrado o tremor automático da cama (Pavlov explica), por algum tempo, foi possível o diálogo leste-oeste, na base do tomismo de cá com o “tô-na-mesma” de lá.
Pelas tantas, talvez pelo emprego inadequado de um silogismo, ela ficou cismadíssima. E passou a fazer picadinho do travesseiro de espuma enquanto gritava uns palavrões. Daqueles de torcida organizada para cima de juiz de futebol ladrão.
Como desaforo não se leva para casa, Gurgelzim cuidou de desfazer todo o equívoco. E nisso até exorbitou pois, no final, em tom confesso, ela garantiu que, sem contar as estrelas (mais numerosas do que os descendentes de Abraão), só o cometa Halley ela vira aparecer três vezes.
Um gênio do sexo, definiria Glauber Rocha, se ainda vivesse neste vale de "lagrymas e katarros".

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

GURGELZIM E A ARTE DO DESENCONTRO

Cês se recordam de Gurgelzim, o desventurado, que, tempos atrás, se entreteve com uma beldade na Praia dos Diários?
Jogando uma onda fria na memória de todos, lembro que houve um flerte – unilateral, é verdade – mas não de todo encerrado, pois ficou para o nosso herói trapalhão um número de telefone do mais alto significado: o do telefone dela.
A ligação mil vezes tentada, mil vezes não conseguida. Nosso herói bufo, horas a fio, enrodilhado em outro fio, o do telefone, numa patética busca da voz amada.
Pessoas cariteiras (caridosas+palpiteiras) chamaram-lhe a atenção. Talvez houvesse algum engano na ordem dos números. Então, Gurgelzim, novamente horas a fio (de alta tensão), combinando e recombinando os números ao telefone. Também nada.
Pensou contratar um detetive particular: fez; planejou consultar uma cartomante: também fez. Mas, esses profissionais pareciam trabalhar em sentidos opostos, pois enquanto o detetive seguia uma pista que ia dar na filha de um açougueiro na Serrinha, a cartomante decifrava nas cartas a viúva de um pescador no Mucuripe. No final, não era carne nem era peixe.
Nessa altura, Gurgelzim era a própria imagem da desolação. De vestes em “desaseda”, barba de doze-horas-sem-fazer, já andava para lá de “píssico”. E passou a ter insônia. Uma insônia rebelde a todo medicamento, colírio de Dienpax inclusive.
Gurgelzim tinha querenças: um espelhinho com o escudo do Flamengo de muita utilidade para o pentear-se e uma esparramada samambaia de plástico que oxigenava seu quarto-e-sala de solteiro. Pois bem, as coisas andavam tão às canhas que o primeiro, como que prenunciando sete anos de azar, havia se quebrado e a segunda fazia um tempão que não levava água.
Pessoas palpidosas (palpiteiras+caridosas), temendo que sua vida estivesse por um triz (ou por um trim), aconselharam-no a ler Khalil Gibran, Lobsang Rampa e outros bálsamos para o espírito. Valeram, pois o nosso herói truão saiu depressinha de uma depressão, daquelas que levam o ser humano ao coquetel Jim Jones (fanta+cianureto).
Além de sair do pântano do baixo astral puxando-se pelos próprios cabelos, Gurgelzim, de forças retemperadas, mudou de mentalidade no plano sentimental. Entendeu que, se não deveria renunciar a tudo feito um “janinho” qualquer, também não deveria se obstinar por causa de uma quimera. Cabeça desaquecida, fosse o que os orixás quisessem.
Não é que deu quase certo. Fez o acaso com que eles, numa rua estórica, se cruzassem. Ela, num vistoso vestido amarelo, a passar esplendorosa quase roçando nele, na direita dele. Numa ocasião em que Gurgelzim" olhava com fixidez para a esquerda, por causa de um maldito torcicolo.

domingo, 11 de janeiro de 2009

VOO BALDEADO

Paris, um ano qualquer. Via-me dentro de um avião que me levaria de volta ao Rio.
Naquela manhã úmida, enquanto aguardava a decolagem, distraía-me olhando as pessoas que, numa das laterais da pista, punham vapores pela boca: falavam. Antevendo o tipo de viagem que eu faria um frisson percorreu-me a espinha. Eu, passageiro único de um longo vôo internacional Paris-Rio.
Desejei ter alguma companhia durante a viagem: nem que fosse um palestino com granadas no cinto ou, então, Allien, o oitavo passageiro. Melhor do que curtir uma solidão que já se prenunciava troposférica.
Subiu um tipo no avião. Franzino, usava um chapelão que me pareceu démodé. Mastigou um bonjour qualquer quando passou por mim e dirigiu-se à cabina de comando: era o piloto. Pôs-se a mexer chaves, botões e manivelas de modo a estremecer toda a aeronave. E a cuja foi ganhando velocidade, ganhando velocidade até que... se desgrudou do chão. No ato, fui transferido para duas poltronas atrás por meio de um salto simples mortal.
A equipagem do avião era constituída apenas pelo piloto e, por conseguinte, não havia aeromoças com acepipes para a gente duplamente beliscar. Ele, sozinho, não podia também se dar ao luxo de ir até o michel, se necessidade tivesse. Anotei outras dificuldades a bordo: ruído da pesada ao invés de uma música leve; inexistência de jornais para a leitura do horóscopo; sacos que vomitavam no próprio freguês etc.
Fui suportando. De antemão eu sabia (desde que comprara a passagem a um agente de viagens por um preço bem camarada) que o voo seria na classe econômica. E tomara algumas precauções, como a de levar uma lata de galinha com farofa.
O avião devia estar voando bastante baixo pois, num curto intervalo de tempo, foram de encontro a meus óculos um mané-magro e um besouro-do-cão.
Houve um instante em que cambaleei até a cabina de comando para oferecer ao piloto uma asa da galinha. Recusou. Quieto, caladão, ele mais parecia um mineiro. Pude então ver quão sub-utilizado era o painel do avião: o único instrumento que o pilotinho consultava, o tempo todo, era um curioso aparelho de dois (ou três?) ponteiros, o qual estava no pulso dele, lembro-me agora.
Surpresa das surpresas! O (meu) avião, com um accomplissement de fazer inveja aos concordes da vida, já estava pousando em sua primeira escala. Presumi ser Lisboa. Mas, não, era solo francês ainda. Saint-Cloud, um dos arredores de Paris, como mais tarde vim a saber.
A máquina-voadora parou, mas a estória é que não. Baixou um santo serelepe no “aeromaquinista” a ponto de ele, transfigurado, saltar do avião para os braços de um povinho que se formava no descampado, perdão, no aeroporto econômico. Levado com “hurras”, qual um técnico de time campeão, nunca mais tive notícias dele.
Começar de novo a viagem. Com a diferença que agora eu não tinha mais l’argent. Na França, pior de tudo, não existe como no Brasil uma “Lei dos Estrangeiros”. Dessas que, após uma declaração política, brindam o cidadão estrangeiro com uma passagem aérea de volta a seu país.
Então, procurei a Embaixada do Brasil. (Com os pobres de Paris aprendi essa lição.)
O embaixador, um cara legal, que considerava o Brasil a sua segunda pátria, valeu-me na dificuldade. E despachou-me para o Rio, a tempo de pegar a feijoada do sábado, num voo de outra empresa. Bem diferente da primeira que operava somente com um 14-bis.
(escrito em 1981, revisado em 2009)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

SOL, PRAIA... AÇÃO

Ir à praia é uma das formas de combater a solidão. Há uma impressão – errônea! – de que é o contrário, quando se observa o comportamento dos primeiros banhistas da manhã. Cada um, tacitamente, demarca uma espécie de lote de terreno particular. Entretanto, com o passar das horas, ninguém se constrange de ver o lotezinho repartido com mais e mais banhistas que vão afluindo. Até que, por volta do meio-dia, cada qual cuida de um minifúndio que só dá para plantar o próprio traseiro. Essa falta de espaço, longe de incomodar, é motivo de regozijo geral pois, onde há pessoas apinhadas, há condições favoráveis para o atamento de novas amizades. E todos blefam a solidão: tal é a confraria balneária.
Gurgelzim, assim que entendeu esse fenômeno psicossocial, vestiu um calção de banho e foi à prática. Chegou cedo – ainda com pouca gente por lá – à Praia dos Diários. Atraído por um biquíni amarelo com cadarços nas laterais, procurou se posicionar bem naquela manhã praiana. Querendo ser discreto, mas não ignorado, foi quedar perto da moça do biquíni, numa pontinha da esteira dela. Uma aproximação entre desconhecidos costuma requerer certo timing, menos para Gurgelzim que sabe ser, como ninguém, agradável. Capaz de soltar as amarras de qualquer pessoa, empregando tão somente o papo espirituoso e, além disso, originalíssimo.
1ª ação
“Já nos conhecemos de algum lugar?”
“Não”, respondeu a de biquíni.
“Acho que sim... de uma fila do INAMPS.”
“Nunca estive doente.”
“Nem eu”, troçou (com cedilha) o de calção, enquanto apertava a barriga para dissipar uma cólica de momento.
Como a beldade fizesse a menção de ir a um mergulho, Gurgelzim ofereceu-se para ir junto. Mas, ante um pedido dela, aquiesceu ficar no local tomando de conta de uma escova de cabelos. Demorou só uma hora.  
2ª ação
Gurgelzim falou sobre violência urbana, bebê de proveta, caça à baleia, plenilúnio, Triângulo das Bermudas, Cachoeira de Paulo Afonso e outras cascatas. Foi notado o interesse dela quando a “conversa” descambou para pneumotórax espontâneo, pois, na ocasião, ela disse “Hum...” e foi para um novo mergulho. Gurgelzim continuou sentado, apreciando uma pesca de arrastão. À distância... porque tinha de cuidar da escova de cabelos. (Ah! A Natureza sempre tão pródiga, enchendo a rede dos pescadores de latas de cerveja, copos de plástico e frascos de bronzeador...) Demorou só duas horas. 
3ª ação
Gurgelzim falou sobre cultivo de samambaias, metrô do Rio, Guerra dos Mascates, ritos de cremação, Ionesco, Besta do Apocalipse e outras coisas bestas. Ela participou vivamente do “interlóquio”, à maneira própria, coçando o nariz descascado pelo sol da praia. Justamente quando Gurgelzim contava uma anedota bem picante (fonte: revista Família Cristã), ela o interrompeu com a notícia de que ia mudar de ponto na praia. “Por causa dos raios solares, como eles estão incidindo aqui”, explicou. Pegou seus pertences, a escova de cabelos inclusive, e despediu-se com um beijo a apenas 15 cm (quinze centímetros) do rosto de Gurgelzim. Afastou-se, lindona, em seu biquíni amarelo que combinava com os sapatos altos da mesma cor.
Ação Final
Uma garota de conversa tão aberta, amistosa, não é de se esquecer facilmente. E Gurgelzim, um sentimental, ficou (re)mexido. Princípio de paixão? Talvez. O fato é que, desde então, Gurgelzim tem sentido uma dor no peito que nem com emplastro Sabiá passa. Se, ao menos, para um pouco de fetichismo, houvesse retido alguma lembrancinha dela... A escova de cabelos? Que nada! Ele ficou apenas com um número de telefone, que “num” ajuda, pois anda eternamente fora do gancho. Feito alguém.

A RUA GURGELZIM

Tipo interessante o Paula Ney. Fez muita boemia, alguma poesia e... virou nome de rua na Aldeota. Na Aldeota Leste. Há quem credite o fato à coquetterie da expressão “loura desposada do sol” que cunhou para Fortaleza, numa ocasião em que estava acometido do Sonetococcus brasiliensis.
Não vou, entretanto, generalizar. Muita gente também pegou o tal germe e não emplacou. Talvez por falta de febre e de delírio. Ou de sorte, como Gurgelzim, um azarão (por enquanto).
Antes que eu esqueça: Gurgelzim, apesar do que o nome possa sugerir, não é meu parente: fomos apresentados num espelho casual. Mas, conheço-o bem. Sei dos seus sonhos (desvirtuados), dos seus projetos (irrealizados) e, por conseguinte, do que mais precisa: de solidariedade humana. Uma qualidade, por sinal, que eu tenho bastante quando (me) reflito.
Assim, se Gurgelzim tem o desejo de virar nome de avenida, rua, travessa ou beco (nesta ordem de prioridade), diligencio para que ele seja atendido. Nem que eu tenha de fazer uma campanha do tipo RECONHECIMENTO URBANO PARA GURGELZIM!
Aliás, um reconhecimento desses já andou perto. No tempo em que Gurgelzim freqüentava o Rhuinas, um bar na Praia do Futuro, que lisonjeava seus clientes – os mais madrugadores – pondo os nomes deles em placas, que eram colocadas em suas paredes como se ruas fossem. Infelizmente não deu, pois o Rhuinas, antes do que se previa, teve o destino do próprio nome. Uma Pompéia irresgatável... para sempre.
Dia virá em que a coisa muda: confio nele. Desprende-se-lhe um pino qualquer e ele “estoura” em Fortaleza. Pode ser muito bem através de um soneto, feito em dia de sol crescente, com alumbramento comparável ao de Paula Ney.
A sorte está lançada. Ou melhor, laçada; com ela nas mãos a campanha ganhará a rua (em/de dois sentidos). Gurgelzim não pode continuar na lista telefônica como um mero assinante.
E tem mais: os vereadores de nossa cidade não faltarão com o indispensável apoio, acredito. Eles são tão eficientes nessas amenidades...