quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A PREGUIÇA

Tem um bicho que a preguiça chegou ali, parou. A ficha dele: mamífero desdentado, da família dos bradipodídeos e que atende pelo nome de preguiça. Aliás, não atende. Gritar "ei, preguiça" e aguardar que ele dê a mínima... é tempo jogado fora. O bicho, caso um mau movimento o ponha sentado sobre os bagos, vai ter uma enorme dificuldade para se livrar da situação. Mas... conjeturo eu, em vez de chão (que lhe criaria o problema descrito), a preguiça é parada mesmo é numa árvore. Em cujos galhos (onde também encontra as folhas de que se alimenta) deixa-se pender horas e horas, indiferente ao desassossego do mundo.
Um zoológico que se preze tem de ter pelo menos uma preguiça no plantel. E bem tratada, hein, para que nunca bata o prego. Como isso, entretanto, apesar de todos os cuidados nem sempre é possível, então o zoológico tem de ter a alternativa. Um "aspone" (recrute-se da administração pública) que substitua a preguiça até que apareça outra da espécie. Sabem como é, a preguiça é um espetáculo - em slow-motion - que não pode parar. E do "aspone", além de ser um substituto, deve-se ainda exigir que seja um PHD (passa as horas dormindo).
Pois é, a preguiça... vida boa, não quer pressa. Lembro-me agora de alguém que, indagado a respeito de que se ocupava, assim respondeu: "levo algodão nas costas". Esclarecendo, a seguir, de que algodão estava a falar. Era o algodão de "uma boa rede cearense", na qual ele, um homem pouco afeito ao trabalho, gostava de preguiçar nas horas de ócio (que não eram poucas).
E, por falar em rede, tem a história do caipira que estava sendo conduzido num "leito balouçante" desses... para ser enterrado. Vivo e gozando saúde, o caipira escolhera ser enterrado para não ter jamais que encarar o trabalho. O homem era um preguiçoso da marca maior. Esquecido desse detalhe, houve um compadre que, no meio do caminho, quis demovê-lo de tão absurda ideia. Mediante um prometido: dava-lhe uma saca de arroz (o que por certo lhe amenizaria as dificuldades) e não se enterrava mais o caipira. Mas este, com pouco entusiasmo pela proposta, limitou-se a perguntar: "Compadre, é arroz sem casca?". "É com", respondeu o outro. E o indolente: "Então, nada feito". A seguir, dirigindo-se ao cortejo: "Toca esse enterro, pessoal".
Uma outra de preguiçoso - sem a casca de pessimismo da história anterior - merece também ser contada. É sobre um homem que se achava, sentado num pedra, a contemplar sua propriedade (como se não houvesse o que fazer). Nisso, um transeunte lhe perguntou se, em vez de tanta imobilidade, não devia ele amanhar aquelas terras. "Não é preciso", respondeu o homem. "Já veio uma ventania que me derrubou as árvores;depois, um raio que se encarregou de tocar fogo no mato bravio..." E arrematou: "Agora, eu espero um terremoto que me tire as batatas da terra." É, talvez exista essa coisa chamada de "força lavradora da natureza".
Ê, preguiça. Que o dicionário dá como sinônimo de aversão ao trabalho, indolência e mandriice. Mestre Aurélio inclusive aproveita para dar a origem da palavra (do latim prigitia). E registra ser também o nome que recebe a corda do guindaste, acepção por mim considerada um despautério (basta ver o que o guindaste faz). Como também, para o grande e autêntico preguiçoso, deve ser um despautério a expressão "vivendo e colhendo" significar "vivendo e bem". Ora, se é colhendo não pode ser bem... Mesmo porque, além do terremoto (que tira as batatas da terra), não há outro fenômeno na natureza em prol do colher.
Bem faço em não generalizar que o preguiçoso é um inimigo do trabalho. Porque há preguiçoso que se dedica ao trabalho... com uma languidez que só vendo. Sendo inoportuno lhe perguntar se não há nada que ele faça ligeiro, pois já se sabe a resposta que esse preguiçoso vai ter na ponta da língua: "eu me canso ligeiro". É, razão teve Eça quando disse não existir uma profissão mais absorvente que a vadiagem. E, por Eça e outras, é que o preguiçoso é alguém que cuida de descansar... antes de se encontrar cansado.
Um pensamento sob medida para terminar a crônica: "Gosto de trabalhar. O trabalho me fascina. Posso ficar sentado, olhando para ele, durante horas." Gostaram os leitores? É de Jerome K., um pensador que tinha preguiça até para assinar o sobrenome.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DOMURU E EU

Em minhas poucas horas em Kobe, Japão, afastei-me de meu animado grupo de excursão para ir visitar Enryba Domuru, o famoso monge Zen. Encontrei-o no jardim de seu mosteiro, a passear solito, os pés miúdos pisando em folhas secas caídas das amoreiras. Enquanto alguém, que eu não via mas adivinho que seria um discípulo seu, tocava num shamnisen (alaúde japonês de três cordas) cujos silêncios eram belíssimos. Já havendo assistido no Brasil, durante alguns anos, Domuru falava um português razoável - daí haver sido possível o nosso diálogo. E, embora eu fizesse por onde, em momento algum ele perdeu o equilíbrio que o fazia merecedor da boa reputação.

- Como fizeste para alcançar o Nirvana?
- A ti pode parecer estranho, mas foi pela evasão... de mim mesmo.
- E imitando-te... posso eu também chegar a esse estado de paz, plenitude e ausência de todo e qualquer sofrimento?
- Sim, porém aí terás feito... bem, digamos que...
- Pô! Domuru. Sem rodeios.
- Uma besteira. Uma daquelas besteiras... sem tirar nem pôr!
- Espera. Atingiste o Nirvana e agora és contra?
- Nem contra nem a favor, muito pelo contrário. Apenas digo que há tolice no agir de quem, a pretexto de querer chegar ao Nirvana, ignora o Sansara.
- Explica-me o que é isto.
- Não é Zen explicar algo. Todavia... Sansara é a instabilidade das coisas, a transitoriedade da vida, a agitação do mundo. É o que se contrapõe ao Nirvana para que ocorra o equilíbrio.
- E há como resumir tal ensinamento?
- Sim, numa frase. Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
- Puxa! Domuru. É... anfíbio o que acabas de dizer. E suponho que tu tens outras coisas a me ensinar.
- O amor à natureza! Medita sobre o seu equilíbrio de formas, cores... Não há beleza que se compare à de uma rosa entrefechada.
- A beleza de um botão entreaberto, talvez.
- Ora, vejo que estás progredindo... E, para o contato com a natureza, não te eximas jamais das cavalgadas no campo.
- Devo eu mesmo ferrar o animal?
- Sim, conquanto dês uma no cravo e outra na ferradura.
- De acordo.
- E jejua, meu jovem. Pois muito terás de jejuar.
- Sem limites?
- Com. Se não deves matar o cabrito, tampouco deves deixar o tigre morrer de fome.
- Mas... devo apenas meditar, jejuar, maravilhar-me com a natureza?
- Exercita-te também nos trabalhos manuais. Como no ofício da tecelagem, por exemplo.
- Está bem. Serei o que tece as próprias vestes.
- Sem atar nem desatar, prometes?
- Esquece, esquece.
- Então, aprende que o grande Daruma, para alcançar o autoconhecimento, nove anos meditou em frente a uma parede branca.
- Bem, às vezes, eu assisto à missa com um olho no culto, outro no padre. Eu sei que é pouco...
- Ora, é um belo e edificante exemplo, dentre os muitos que encontramos no cristianismo. Esta religião, por sinal da cruz, é a única que oferece a solução para um importante dilema. Imagina que um homem seja colocado entre a cruz e a espada...
- Pode esse homem eleger ambas as alternativas?
- É o que acontece. Ele vira padre-capelão.
- Calma aí, Domuru. Aonde queres chegar?
- Com a ajuda do sin-cre-tis-mo, eu quero chegar ao homem exemplar. Aquele que não é carne nem é peixe.

Nisso, pareceu-me ter ouvido um apito familiar. Do cargueiro, fundeado em Kobe, no qual eu vinha viajando (sem lavar o porão). Ora, longe que eu me achava do porto, nem sei como escutei aquele apito, mas se era real (era!), o navio estava prestes a zarpar. Então, premido pelo pouco tempo que me restava, em mim berrou uma fera imediatista.
- Anda lá, Domuru. Quero agora o teu infalível preceito para desenvolver a personalidade.
- Ó jovem. Quando conseguires não ser boi nem ferrão, não ser vidraça nem estilingue, não ser sândalo nem machado...
Demais! Aí, tomei o meu caminho de volta. Assim: nem tão lento que parecesse provocação, nem tão rápido que parecesse covardia. E penso que Enryba Domuru deve ter gostado desse meu jeito de sair de cena.

sábado, 5 de setembro de 2009

A FLOR DO ABORRECIMENTO

"A melhor crônica a gente não a escreve. Ela nos escreve,
pronta que já estava na sensibilidade comum." - Artur da Távola

Fortaleza, seis horas. À base do sacolejo, eu desperto a manhã de seu sono pesado. Ato contínuo, meus velhos chinelos me arrastam até o banheiro. Neste lugar, reflito: o espelho... por que ele tem de fazer as mesmas coisa todos os dias? Lavar os olhos, esvaziar a bexiga, banhar-se, escovar os dentes. Etc.
De volta ao quarto. Minhas roupas escolhem o corpo que pretendem usar durante o dia. A camisa social, um tórax espadaúdo, as meias (que estão furadas), dois pés de incontidos dedões, a gravata, um pescoço que a não sufoque, assim por diante. E cá estou produzido (no sentido que os estilistas dão a esta última palavra).
"Que horas são?", pergunta o meu relógio de pulso outrora pontual. "Sou quinze pras sete", respondo secamente. Pois acabo de me lembrar de outro relógio, o do ponto, que, para meu especial desagrado, repetirá esta pergunta logo mais. Ah, eu devia ter troçado dele: "Oração? Só na igreja."
Chove aos potes. A caminho do trabalho, eu finjo que não vejo os táxis. Os táxis, todos no desespero, acenando para mim. Passo (ao) largo: estou ocupado com a minha pressa ou apressado com a minha ocupação, sei lá, não quero ser mais um a chover no molhado.
O fato é que, após ter cruzado por alguns barquinhos de papel, eu encalho. Enquanto o sol, disposto a espiar minhas íris, começa a abrir uma imensa clareira nas nuvens. E, como que por desencanto, algo acontece a meu superportátil guarda-chuva (até então oculto sob a camisa). Ele, triunfante, abre o seu amarfanhado náilon. Ao sentir, porém, um pingo de chuva retardatário, ele se recolhe... por precaução.
"Por quanto tempo serei ainda um quarador ambulante?", indago. O astro diurno, "firmamentão" acima de minha cabeça, dissipa os cúmulos dessa dúvida: "Por um tempo inferior ao que se gasta contando até dez". E eu constato que sim, por volta do número 9,756.
"O quê?" Um sabiá-laranjeira agora escuta os sons maviosos que saem dos meus ouvidos - a natureza é bela! A cena seguinte, a de um gato subindo na laranjeira, ardilosamente, demonstra que a a natureza também precisa fazer uma revisão em sua dialética. Enquanto isso, na defesa de seu existir, seja o sabiá menos ingênuo, menos laranja.
O saguão do edifício em que trabalho. À porta do elevador, como sempre, encontro-me com o Sr. Cunegundes que pressiona meu nariz. Ele, invariavelmente, faz isso quando quer subir ao quarto andar. Agora, detestável é o Sr. Coriolano que, para ir ao sexto, tem que dar um chute em minha panturrilha esquerda. Mas hoje vou chiar. "Por que não perta só o meu nariz, como faz o bom, afável e simpático Sr. Cunegundes, e sobe o resto pela escada?" E tomara que não dê zorra. É inominável onde tenho o botão de emergência.
Chego, enfim, a meu escritório. O local em que cultivo, dia após dia, a flor do aborrecimento. Sim, é correto o que disse Alain Rémond: "Um escritório é uma microsociedade governada por códigos que dão origem a incontáveis fofocas, neuroses, paixões". Como é também correto eu desabar, digo, desabafar: "Ai de ti, Homo burocraticus!" Fofocas, neuroses, paixões... estou mesmo encalacrado. Eu, Homo burocraticus.
Eis os sinais: a escrivaninha se fecha para mim, os cafezinhos me consideram um cara frio, fraco e fedorento, a cadeira não aprecia meu estofo e a máquina de escrever, os meus mindinhos emperrados; para o arquivo de fichas sou fichinha; os cigarros se irritam com meus brônquios, o telefone não quer papo comigo, o bebedouro não me engole, o ventilador de teto me põe para circular e resmas de papel ofício mofam... de mim.
Pois é, acho que estou me coisificando. Não escapo nem mesmo de uma cesta de plástico barato da seção. A qual, na fatuidade de seus papeizinhos amassados, a toda hora me joga na cara um... "tá me enchendo, pô!"