sexta-feira, 31 de agosto de 2012

NO ESPINHEIRO DA REALIDADE

Numa certa época, o Brasil era um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. O celeiro do mundo, onde se plantando tudo dava. Nossos bosques tinham mais vida, nossa vida, mais amores.
Dava gosto ser brasileiro!
Um dia, entusiasmado com a exuberância da Terra brasilis, Stefan Zweig a chamou de... País do Futuro. Aquilo foi uma ducha gelada em nosso coração febril. Então, não éramos o violino di spalla no concerto entre as nações?
Ficaram assim adiadas as comemorações do ufanismo nacional.
Depois de atirados no espinheiro da realidade mudamos um pouco. Passamos a aceitar que o país não estava bem, mas tínhamos uma "ilha de prosperidade". E essa ilha, pasmem os senhores, era o Ceará velho de guerra. Quando a gente olhava em torno e não via por onde... Víamos apenas a propaganda oficial que, martelando a todo instante, tentava dar a impressão de aqui ter o corno da abundância (duplo epa!). Até que uma instituição, analisando taxas econômicas e vitais, colocou o Estado em seu devido lugar: o terceiro mais estropiado do país.
Tentou-se, então, deslocar o foco para Fortaleza, apesar do reducionismo desta nova proposta. Porém, eram tantas as favelas na capital cearense (cerca de 250) que, ao cabo das exclusões, só sobrou a Aldeota. O bairro que abriga mansões, apartamentos de luxo, flats etc. Mas... olhando bem: riqueza e pobreza também convivem nesta parte da cidade. Não, não pode ser a Aldeota em sua totalidade.
Talvez... uma rua do bairro, um quarteirão ou, para não me alongar muito, uma casa.
A residência de um barão no exato momento que ele está a receber um grupo de socialites.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CONVERSA AO PÉ DO TELEFONE

Ao pé, sim, de pé é que nunca. Gosto de estirar-me no sofá, os pés para cima, porque é assim que um cristão deve telefonar. O fio do aparelho - que é "esticável" - suporta bem tais descontrações.
Lembro-me daquela propaganda na televisão em que os dedos representavam as pernas das pessoas à procura de bens e serviços. Como a propor que o cansativo trabalho das pernas fosse substituído - com economia de tempo e esforço - pelo leve trabalho dos dedos no disco do telefone.
Além disso, andar pouco evita o jet lag.
As linhas cruzadas eram uma diversão à parte. Perdeu a graça quando a brincadeira foi institucionalizada, recebendo o nome de disque-amizade.
Descubro em minha secretária eletrônica que uma amiga me ligara em três oportunidades deixando recados. Vai, eu ligo três vezes para ela (que, como sempre, não está em casa) e deixo recados na secretária eletrônica dela (epa!). Nunca conversamos em tempo real.
Com a vida por um "trim", ocorre-me procurar meu psiquiatra. Ele tem sido um porto seguro em todas minhas situações de naufrágio iminente. Mas, agora, ele  só atende os clientes na portaria de seu edifício... pelo interfone.
Saio a me divertir no fliperama. Bato o recorde de um jogo... sem ter conhecido meus adversários passados. Os nomes deles aparecem no vídeo, com os respectivos pontos marcados, mas eu nunca os vi mais gordos, mais frustrados.
Retorno para casa. É onde eu posso fazer um eletrocardiograma pelo telefone. Não, não estou tendo arritmia, é tudo angústia.
Então, ligo para o Centro de Valorização da Vida. que é uma forma de continuar tudo como antes.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

UMA PROPOSTA INDECOROSA

Brasileiras e brasileiros assistiram pela televisão a última fala do presidente José Sarney, durante a qual ele anunciou que aceitaria abrir mão de um ano do mandato. Ele trocaria, de bom grado, os seis anos na Presidência por cinco, conquanto não se falasse mais em quatro ou três. É compreensível o beau geste presidencial: Sarney perde no boi para não perder o boi.
Aí entra em cena o Sr. Júlio Marcondes de Moura, prefeito de Garça, uma cidade do interior paulista, que resolve ganhar no boi. Reúne algumas centenas de colegas prefeitos e vereadores em sua cidade para pedir uma prorrogação de dois anos em seus mandatos. Passariam de seis para oito anos. Porque seria irracional promover eleições municipais em 1988, se haverá outras eleições em 1990.
Pois é, o Sr. Moura, que é prefeito de Garça, agora quer ser prefeito de graça. Ele ambiciona um mandato maior sem precisar gastar um cruzado em campanha eleitoral (em que pode inclusive se dar mal).
Verifica-se uma ampla adesão à tese do prorrogacionismo. Além do conspirador de Garça, um bom número deles, residentes em Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, já passaram telegramas de apoio. O que me faz lembrar que pode reproduzir o resultado de uma pesquisa realizada no Congo Belga (Macaco, você quer banana?).
Como cidadão brasileiro (em dia com os impostos) eu aproveito para protestar. Senadorzinho Moura, permita-me que assim o chame em consideração ao que pretende, depois de seis anos de sacrifícios não é justo que a Nação cobre mais tempo de seus representantes municipais. Já se vão seis anos de meias semanas com três meses de férias anuais de grande labor. Para que continuar se matando nesse esquema de "oito e oitenta"? Oito anos de mandato a oitenta salários mínimos ao mês (o que ganha, por exemplo, um vereador em Fortaleza)?
Ora, vá ter o seu merecido descanso, Senadorzinho.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CRISTÓVAO

- O tempo frio e chuvoso
nos reterá, Divindade.
- Ah, se fosses mais zeloso
co'a tua pontualidade!...
- Atendo, como de praxe,
mas longe fica a outra margem.
- Cristóvão, meu santo táxi,
por que remanchas na viagem?
- Subestimei, Deus Menino,
em tua augusta pesagem.
- Cristóvão, santo mofino,
não denigras tua imagem.
- O tempo passa... e a gente
esmorece, fica gasta...
- Por que és contigo exigente?
Labutas sem ter um basta!
- Talvez por me opor ao ócio
de uma aposentadoria.
- Então, um outro negócio
ameno te serviria?
- Já pensei noutros ofícios,
em tarefas mais suaves...
- Entretanto, os sacrifícios
arrostas. Quais os entraves?
- Aos irmãos, na correnteza,
quem vai prestar valimento?
- Louvo-te por tua grandeza.
Não tens um emolumento?
- Queres Tu saber? Explico:
Pagam-me com ingratidão.
- Paciência... que eu te indico
pr'uma canonização.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

PAPO FURADO

Sr, Redator,
Desde que o comércio, com a venda de bonés, camisetas, chaveiros e outros badulaques, deitou e rolou nos carpetes estendidos para o Papa, eu tinha me convencido de que nada mais faltava para ser mercadejado. Puro engano. Pois logo tomei conhecimento de um fato que me desmentiria: a Telesiará vai cobrar pelo papo furado (Aqui não confundir com a Teleceará que não tem nada a ver.)  Minha primeira reação foi olhar para o calendário. Não, não era ainda 1984, o temível ano em que a privacidade do cidadão morrerá - de vez - de hemoptise. Além do mais, a Telesiará não conseguiria realizar uma ampla escuta em nossos telefones sem entrar em linha cruzada com o SNI. Então, qual seria seu modus operandi? No próximo parágrafo.
Num rasgo de objetividade a Telesiará deu uma de "conceituadora": o papo furado é o que leva quatro (ou mais) minutos. Não me interessa aqui discutir a entrada dela nas águas territoriais do Instituto de Pesos e Medidas e sim como ela agiu para chegar à tal conclusão? Talvez, com a ajuda de algum calculista saído dos contos de Malba Tahan. (Todo mundo sabe que prosa se mede em dedos, ora.) Mas, o fato é que ela não cuidou de que já existe um processo mais simples, o qual consiste em cobrar a "conversação informal" aos usuários, de um modo semelhante ao que acontece com a iluminação pública. E por que assim não procedeu? No próximo parágrafo.
Simples: a Telesiará optou pela imagem do bom-mocismo. Passa a combater os perdulários da palavra (o que todo mundo vê) quando, no fundo, no fundo do bolso os estima (o que ninguém vê). Dá nitidez às primeiras intenções para que as segundas, ofuscadas, não sejam percebidas pelos usuários mais impertinentes. Aqueles que vivem a escrever às redações dos jornais "protestando contra tal estado de coisas etc." Mas eu, não. Não participo dessas passeatas postais. Se, por um lado, estou sendo ácido em meus comentários, por outro, até terço com o público para que colabore com a Telesiará (em suas primeiras intenções, evidentemente). A lei anti-miolo-de-pote não mais se discute, já é uma realidade. Agora, o que fazer? No próximo parágrafo.
Adaptar-se aos novos tempos. Coisa que se consegue fácil, fácil, com a adoção de algumas medidas pelo interessado leitor que, como eu, não quer viver ao arrepio da lei:
1) Procurar a orientação de fonólogo competente para corrigir qualquer vestígio de gagueira.
2) Reciclar os conhecimentos sobre siglas (o tempo que se economiza ao chamar o Departamento Nacional de Obras contra as Secas simplesmente de DNOCS, só para dar um exemplo).
3) Restringir-se no pernicioso hábito de ouvir as transmissões radiofônicas de futebol para não se impregnar daquele linguagem hiperredudante.
4) Abastecer-se de gírias (a expressão "tá ruço" é mais eloquente do que um discurso inteiro do Chico Pinto), não dispensando nem mesmo as que estão fora de uso, tais como "ai da base", "castigou legal" etc.
5) Tentar, enfim, haja o que houver, conservar o pânico toda a vez em que estiver ao aparelho de Bell.
Em tempo
O assunto que aí vai pode ser lido em 3 minutos e 17 segundos, não sendo, portanto, um papo furado.

Cartas do Povo, 28 de setembro de 1980