quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A CPI DA PIZZA

São tantas as irregularidades relacionadas com o famoso prato que urge a instalação de uma CPI. Para averiguar até onde, no rol das denúncias surgidas, alguma tem fundamento. A começar de que estaria, depois de tantos anos no Brasil, ainda resistindo ao aportuguesamento do nome. Se bem que a grafia "píteça", como alguém já sugeriu, não seja muito de encorajar a mudança. É sensaborona, com risco de transmitir o indesejável atributo ao prato que pretende designar.
Só flancos, atacam a pizza de todos os lados. Ajudados pelo fato de ela já chegar cortada à mesa de refeição. Agora, por que a dividem em pedaços desiguais, se isso só serve para privilegiar os comensais mais rápidos? Bem, aplicar a lei de Gerson é preciso, pode ser a resposta.
Quem come escargot e caviar é gastrônomo, e quem come pizza? Diz-se que não passa de um reles comedor, equiparado ao farofeiro de praia (cujo nível é o do mar, claro). Pois não há sofisticação alguma em se pedir uma quatro-queijos, besuntá-la de mostarda e ketchup e, na sequência, perpetrar o pior: fazê-la descer, goela abaixo, na companhia de uma coca-cola.
A propósito, como explicar também o não aparecimento, até hoje, de uma pizza na versão "diet"?
É lastimável que o Instituto do Peso e Duas Medidas se mantenha omisso em assunto de sua competência. E não tenha dado a palavra final sobre o tamanho dos discos. Sabendo que estes, deixados ao alvedrio dos donos das pizzarias, tendem ao gradual encolhimento. De sorte (?) a acontecer o seguinte: "gigante" virando "brotinho", "brotinho" virando... canapé - sem que se detecte o menor remorso neles! Enquanto nós, os come-pizzas, espichamos o dinheiro.
A entrega domiciliar é um caso (de polícia) à parte. Não poucas vezes, a pizza vem gelada e a cerveja, quente. Se é isso em obediência à lei da compensação, ora, dispensamos o cumprimento da referida lei. Como também pedimos que, haja o que houver, não vá o entregador além da pizza. Significando isto resistir à provocação de mulher que, na ausência do marido, entende de priorizar o sexo sobre o estômago.
Por essa e anteriores, bem que o mafioso prato está a merecer uma CPI. Mas, se possível, que não acabe em pizza.

Crônica publicada, em 05/04/94, na seção Cartas, do jornal Diário do Nordeste e, em 17/04/94, no Jornal do Leitor, de O Povo.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

REI MORTO, REI POSTO - 2

Hoje se escolhemos os governantes pelo voto é aos gregos que devemos tal prática. Se bem que, no caso do Brasil, o ambiente seja convidativo a se aplicar outra opção. Sabem aquele jogo em que as pessoas formam um círculo em torno de uma garrafa? A qual é posta a girar para que, ao final do movimento, aponte alguém na roda? Eureka, eis aí um novo método de como escolher o presidente da República! Com os candidatos ao cargo, divididos em grupos, e se submetendo ao "veredito" da garrafa. Pensando bem, no caso nacional, a garrafa poderia também ser substituída por um abacaxi.
A verdade é que, quando votamos, nós assinamos uma espécie de cheque em branco. O que o portador vai fazer depois com o cheque só Deus sabe. E o governante que, em princípio, deveria governar em função dos interesses da maioria nem sempre o faz. Começam as dificuldades pelas formas divergentes quanto ao momento certo de partir o bolo (PIB). Uns acham que o bolo deve primeiro crescer para depois ser repartido, enquanto outros... que o bolo deve ser repartido já! Para não dar bolo nem bololô. Mas... o que deixa no ar esta pergunta: quem parte e reparte deve ficar com a melhor parte? E, mais, est'outra: quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é tolo ou não entende dar arte?
Que votemos, tudo bem. Mas parece que o [X] da questão está em controlar o que acontece depois. Os atenienses sabiam-no como. Ao escreverem em peças de barro cozido, com forma de ostra (daí haver surgido o termo ostracismo), o nome do cidadão a ser desterrado. No entanto, por nos acharmos na era da tecnologia, alguém já sugeriu outro método. Implantar no peito do líder, à maneira de um marca-passo cardíaco, um artefato que pudesse implodi-lo - quando esse fosse o desejo dos liderados. Assim, para tanto, cada cidadão disporia de um botão detonador que, em período de insatisfação com o desempenho do líder, pudesse então ser apertado. Aí, quando a soma desses insatisfações alcançasse os cinquenta por cento mais um, o líder seria mandado para o beleléu.
(Na espera do governante seguinte, veríamos na televisão o Carlinhos do Bom-Bril. A limpar o trono com uma esponja de aço Assolan e a recomendar, através de seus trejeitos, juízo ao povo brasileiro.)
Pois bem, mas até que o IBGE nos informe o verdadeiro número de sádicos que existe no país, convém sobrestarmos o tão engenhoso método.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

REI MORTO, REI POSTO - 1

Que o rei não ignore o terrível fato! O que existe, acima de sua cabeça, uma espada - de Dâmocles! - que, sustentada por um mísero fio, mui perigosamente está a pender. Como se fora uma ameaça mortal àquele que está a ocupar o trono. Pois, a qualquer momento, o frágil fio pode romper-se e... fim do ocupante do trono! É claro que, com algum acautelamento por parte dele, pode ir-se a coroa mas ficar a cabeça, o que é razoável. Quando a cabeça coroada tem alguma sensibilidade para identificar o instante imediatamente antes ao de romper o fio.
Com inspeções periódicas das condições em que se encontra o tecido social, eis a astúcia devidamente explicada.
Dizia Napoleão que com uma espada se pode fazer tudo... menos sentar nela. Se o que se busca é conforto, acrescento. Sobre Dâmocles, porém, o que eu tenho a dizer, neste momento, a meus atilados leitores? O seguinte: ele era um cortesão que vivia a bajular um tirano de Siracusa, chamado Dionísio, o Velho. Até que este, certa vez, aborrecido com tanto puxa-saquismo e babação, fez Dâmocles sentar no trono de Siracusa. Depois de haver colocado, acima do mesmo, uma espada nas condições descritas no parágrafo inicial. A fim de que o bajulador, expondo-se ao risco de morrer, entendesse de uma vez por todas o que eram as incertezas e as inquietações do poder.
De saída, por ser impossível agradar a todos os súditos. A exemplo, lembremo-nos do caso da garotinha que, depois de ter o pai, a mãe e os irmãos comidos pelo tigre, ainda assim se recusava a abandonar a aldeia natal. Porque "na cidade, lá está o rei...". Pois é, ser governante (sustentado a imposto etecétera e tal) está cada vez mais em baixa no conceito que lhe dão os governados. E, por isso, o rei que é esperto evita se desgastar com os comezinhos assuntos que os súditos lhe trazem. Ele simplesmente cede o assento real a um dos ministros (a fim de que este fique se maçando) e vai caçar raposa. Embora diga que vai caçar tigre.
Com um olho na caça(da) e outro no poder, é evidente. Para não chorar os dissabores por que passou Ricardo Coração-de-Leão.
Está nisso a esperteza: o rei deve reinar sem governar. Ser como o pássaro que não tem de bater as asas para provar ao reino animal a sua capacidade de voar.
Nos períodos sombrios, saber o rei que ainda poderá abrir três envelopes. Com três estratégicas instruções:
  1. onde se manda culpar o antecessor pela situação;
  2. onde se manda demitir um, vários ou todos os ministros;
  3. onde se manda renunciar após preparar três novos envelopes para o sucessor.
É tolo o soberano que, ao primeiro sinal de crise política, abre logo os três envelopes. Para que os problemas se confraternizem com as soluções é preciso levar algum tempo nessa empreitada. Nunca ser açodado. Porque, uma vez anunciada a renúncia, o passo seguinte será o ostracismo. Outrossim, tolo é o soberano do tipo protelador porque apresenta um grande apego ao poder. Pois a ele, além do destronamento, o destino pode-lhe estar reservando um fim trágico. Simplesmente por ele, em tempo hábil, não ter escolhido ir roçar nas ostras.

Data de publicação: 29/05/94

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

PALANQUE

Finalmente surgiu uma tese que absolve os políticos de uma das acusações que lhe são feitas. A de que prometem, numa campanha eleitoral, coisas que eles não vão cumprir após eleitos. Pois a tese em questão simplesmente lhes tira a responsabilidade sobre as coisas em vão prometidas e, no lugar deles, põe a culpa em algo "novo". Algo que, até há pouco tempo, ninguém sabia que tivesse essa propriedade de desnaturar os homens públicos. A ponto de torná-los levianos da palavra.
Este causador de tudo é o palanque.
Quando um candidato a um cargo eletivo estiver a prometer mundos e fundos seja tolerante com ele. É o palanque que o leva a tanto compromisso. Rede de água, calçamento, escola, hospital, linha de ônibus, creche... Ah, é o palanque. Tanto que bastar retirar o prometedor de cima do estrado para ver como ele se transforma. Fica incapaz de assumir um compromisso que, a seguir, não venha a honrá-lo, mesmo que isso seja inédito. Em suma, fica um Catão o nosso homem (epa!).
Há essa relação, de causa e efeito, entre o palanque e o que sai da boca do homem para só se concretizar no dia de... São Nunca! Se bem que a tese não explicite como o fenômeno exatamente ocorre. Apenas sugira que possa estar relacionado com a perda de contato, por parte do político, com a a mãe Terra - ainda que temporariamente. E que, por via de consequência, ficaria ele - à maneira do que um dia aconteceu a Anteu - grogue e enfraquecido. Quando nada, em seus princípios morais. E como daí para o falatório inconsequente a distância é quase nenhuma...
A propósito, Anteu era um personagem mitológico considerado invencível por conta da energia (epa!) que ele, através dos pés, absorvia da Terra. Até que, pugnando com ele, Hércules o suspendeu do chão, para "desligá-lo" de sua inesgotável fonte de energia, e assim o matou. Outro modo de ação não tem o palanque. Quando deixa o político, ainda que pelo curto tempo de um comício, distanciado do chão da realidade, a prometer o céu na Terra e o seu amor também. E, nesse tresvario todo, também não se ignore a influência a cargo da claque, da música e do foguetório.
É tão avassaladora essa ação do palanque sobre o ser humano que não se tem notícia de resistência natural ou adquirida. Tem mais: mesmo ao pouco imponente caixote de cerveja o homem é também muito sensível, caso suba num... Que ele então fica: palrador, verborrágico e discursivo. Enfim, um utópico de carteirinha! E sabem por qual razão? O afastamento do chão da realidade, embora menos do que quando é o palanque. Nada a ver, portanto, com a cerveja que o homem tenha consumido antes de subir no caixote.
Um (e)leitor arguto pode lembrar que os políticos se comportam do mesmo modo quando estão na rádio e na televisão. O que, por sinal, poderia comprometer a tese vertente. No entanto, convém explicar que um estúdio de rádio ou de televisão assemelha-se a uma gaiola de Faraday. Por isso, isola tão bem quanto um palanque (excetuando-se o caso do palanque do Partido da Juventude que, aqui em Fortaleza, uma vez chocou muita gente, os mais velhos devem estar lembrados). Daí, ao contrário de sofrer qualquer abalo com esse questionamento, a tese sai ainda mais fortalecida.
Vêm aí eleições. Desde já, fiquem todos sabendo que os políticos não terão culpa pelo Canaã que o Brasil não vai ser. Que tem de ser responsabilizado é o palanque, esse (c)réu inconfesso. E, num grau menor, o caixote de cerveja.

Agosto/1994 - Publicada no "JORNAL DO LEITOR"
30/07/94 - Publicada no "DN - CARTAS"
Dezembro/1989 - Publicada no "JAMB"
15/07/89 - Publicada no "POVO CULTURA".

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ANIVERSÁRIO

Hoje recebo o meu salário, o meu exíguo salário com o qual eu tento não ser defenestrado da classe média. E saio a ver as vitrines em busca de um presente que reafirme o meu amor por ti. É que hoje, minha querida, é o dia de teu aniversário. Mas... está tudo tão caro, tão inacessível a meu bolso, tão... E não dá mesmo para comprar no crediário, os juros estão escorchantes, proibitivos.
Sabes de uma coisa? Presentes são futilidades! Muitas vezes, são eles dados em total desacordo com a personalidade de quem os recebe. Noutras, apenas para preencher uma falsa necessidade que a sociedade de consumo criou. Então, ao invés de te oferecer um mimo cujo desfrute logo acaba, eis-me a te presentear com dinheiro. Sim, com dinheiro que é o modo de não me equivocar jamais.
O fato é que outra vez aniversarias, minha cara. Para a minha indizível felicidade (pois o que é a felicidade senão a soma desses momentos em que te procuro?). Ah, acima do bem e do mal, está o teu regaço amigo, onde encontro proteção contra a dissipação e a esbórnia. Sem que eu, na grande conta em que te tenho, haja um instante sequer chegado a teus limites.
Em ti deposito todas as minhas expectativas. Porque sei que serão depois confirmadas no saldo de nossa amizade. E tudo que te modifica me interessa. És leve, gentil, intimorata. És frasco - ouso fazer a presente comparação - a encerrar o mais ambicionado dos extratos. E, ainda, louvo a tua lealdade e correção, ó aplicada companheira destes tempos difíceis!
Feliz aniversário, minha caderneta de poupança.

Publicado no Diário do Nordeste em 08/03/90

sábado, 28 de novembro de 2009

SANTA LEITURA

Érico e Paulo Gurgel (1)

Eis uma cena do início de minha vida, que se repetia todos os dias e da qual estou hoje a me lembrar: meu pai, sentado no sofá principal da sala, a ler com grande interesse o jornal. Perto dele, este que lhes fala entretido com algum brinquedo, embora de quando em quando desviasse a atenção para o velho (2). E ele, tão absorto em seu ato de ler, que nem atinava com ser o motivo da minha intermitente admiração. Naqueles fugidios instantes em que eu relaxava na atenção ao brinquedo, obviamente.
Sempre que possível eu evitava interrompê-lo em sua santa leitura (3). Ao contrário do que fazia minha mãe, a matraquear um assunto atrás do outro, sem ao menos se tocar para a inconveniência da hora. E bem feito porque ele sempre a desouvia!
Ainda pouco me entendia por gente, mas recordo também que aquilo me perturbava. Meu pai dedicar parte de seu tempo a um punhado de folhas impressas, ainda por cima capazes de manchar o sofá novo, como se queixava minha mãe. E, mais: ao fazer aquilo ele se comportava, para os meus tenros olhos, feito um estranho. Um ser sob alguma ação hipnótica porque, naquelas horas, podia o teto vir abaixo. Que o velho, certamente, não ia levantar a vista do seu jornal. Nem para apreciar o novo teto solar com que a casa acabara de ser contemplada.
Intrigava-me saber que força misteriosa possuía o jornal. A ponto de um ser humano, muita vez de forte personalidade, entregar-se a ele como um escravo. Com o tempo, porém, identifiquei existir no ser humano uma especial fragilidade, que é a carência orgânica de informação. Exatamente o que o jornal tem de sobra. E que, para que aconteça a consentida dominação jornal-leitor, não hesita em nos passar diariamente. O seu produto informação, sob as suas mais diversas apresentações: editorial, reportagens, colunismo social, charges, publicidade etc.
Uma vez sonhei com papai sendo levado, contra a vontade, a uma redação de jornal. E o desfecho dessa experiência onírica, se alguém quer saber, foi a redação ficar só escombros. Porque papai, qual um bíblico Sansão (4), no fim derrubou as colunas (5).
No entanto, nem tudo acontece como a gente sonha. E, sem haver sofrido arranhões nesse meu sonhar, papai continuou... vida boa não quer pressa. A ler o seu jornalzinho no sofá (por vezes, à mesa da sala de jantar), apenas lhe faltando um cachimbo na boca para compor a cena clássica. E, quando me formei em "doutor do ABC", papai me deu a ler um suplemento infantil do jornal. Que eu li com grande satisfação, bem na frente de um muito enciumado aparelho de televisão.
Pronto, naquele momento estava inaugurado o meu novo hábito!
É um hábito que me abre diariamente as fronteiras do conhecimento. Graças a ele, não mais permanecem sem respostas as minhas inúmeras perguntas. Exceto estas: quem somos? de onde viemos? o que aqui fazemos? aonde vamos? Por mais que eu me esbalde nessas difíceis perguntas, Sísifo é testemunha! Talvez porque, nas chamadas questões existenciais, não baste a gente só extrapolar os limites do suplemento infantil, daí o insucesso verificado. No mais, jornal é massa. Enquanto o dinheiro do velho não se manifesta, colecioná-lo com afinco vale uma enciclopédia.
Brincadeira! O fato é que, na aurora da minha vida, ao me tornar um leitor assíduo de jornal, posso ambicionar a ser, quando adulto, um grande escritor. Com um estilo apurado e desenvolto (em que "aurora da minha vida" e expressões que tais não tenham vez). E uma menção honrosa que agora me deem, eu saberei que estou no caminho certo. Ah, imaginem então se eu ganho esse prêmio maior (6) que está em jogo!... Aos oito anos de idade e já haver obtido o que papai não conseguiu nunca! Com todos esses anos de cupões recortados dos jornais e por ele enviados para sorteios que não lhe sorriem jamais!...

(1) filho e pai, respectivamente, reunidos na primeira psicografia intervivos do mundo; (2) tratamento carinhoso, porém em desacordo com a idade paterna; (3) apesar do que possa parecer o título não foi escolhido por Robin, que faz dupla dinâmica com Batman; (4) sem Dalila; (5) as colunas do prédio, bem entendido; (6) viagem a Disney, com direito a levar acompanhante, oferecido pela Associação Nacional de Jornais.

Publicado em 26/06/94 no Jornal do Leitor de O Povo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

TUDO SE TRANSFORMA

Sr Editor:
Numa de suas crônicas, andou Luis Fernando Veríssimo preocupado com o que os adesivos de para-brisas dizem, bem como com as situações esquisitas que eles criam para os donos dos automóveis. Como no caso de um cidadão que foi visto a dirigir um carro, em cujo vidro traseiro se lia: "Fofinho". Entretanto, não condizendo o teor do adesivo com a aparência de quem estava ao volante. Um cidadão grave, obviamente não fofo. E que se sujeitava ao vexame apenas para não desagradar algum filho que gostava da curtição. Para, no remate de sua crônica, concluir que... "as cidades estavam cheias deles. Os falsos fofinhos."
"Veja" acertou ao tomar o mestre Luis Fernando como colaborador da revista. Só que - para o azar de seu alunado de humor - o superlativo Veríssimo tem uma pena, dessas de esgotar o assunto. E apenado seja o que o retome depois que o insuperável mestre gracejou! A não ser... a não ser que um fato interessante surja, adubando o assunto para novas reflexões. A exemplo do que aconteceu em Fortaleza, nos meses de outubro e novembro de 88: um ano que terminou (para o olvido da Diaethria meridionalis, a borboleta-propaganda da Mesbla). Veículos veiculando (epa!) através de adesivos nos para-brisas este comunicado: "Cambeba, não!".
O tipo de mensagem que me deixou encucado e os leitores saberão o porquê.
É que eu jamais vira uma manifestação organizada de repúdio a um bairro! E, agravando, repudiavam o bairro em que, há alguns meses, vinha eu morando. "Cambeba, não!". Como se eles pudessem fazer, por ser uma parte ruim, a excisão do bairro do resto da cidade. E não era bairrismo deslavado, não. Mas bem que o antigo Parque Iracema estava a merecer um melhor tratamento da parte desses senhores. Ainda mais que, longe da Aldeota, o rechaçado Cambeba não passava de um bairro em via de desenvolvimento.
Súbito, residir no lugar em questão tinha virado uma rebordosa. Cá se amargava a má administração municipal, como no restante da cidade, e cá se tornava o alvo da indignação coletiva. Ah, me pareceu uma sorte cruel, das que se inscrevem no figurino queda - coice... Por isso, num primeiro instante, me revoltei. Mas, a ter de ficar na "problemática", eu logo busquei a "solucionática" (de que falou Dadá Maravilha). Quando apreciei a ideia de sugerir, a cada cidadão que por mim passasse (cujo sentimento anti-Cambeba estivesse explicitado no para-brisa do carro), um outra opção de protesto. Mudar para "Camberra, não!", "Camboja, não!" ou mesmo para "Camboriú, não!". Nomes de cidades distantes, países longínquos... que não possuíam colônias expressivas em Fortaleza.
Depois, imaginei trocar o Cambeba da expressão por cambará, cambuci, camboatã ou por qualquer outro nome de árvore, as opções eram tantas... Mas, diabos, o que tinha a ver a maltratada flora nacional com esse corrosivo sentimento anti-Cambeba? E também imaginei que mudassem para cambaxirra (ave), cambaleão (variante de camaleão), cambucu (peixe)... Quer dizer, qualquer uma dessas palavras mais o indefectível "não!". No entanto, por depreciar a nossa fauna, seriam providências desacertadas. Nesses tempos em que avulta o ambientalismo...
A propósito, cambeba (ou cambeva) é palavra oriunda do tupi e designa várias espécies de peixes teleósteos.
Pois bem, descartada a possibilidade de empregar os topônimos, os nomes de árvores e animais (pelos motivos já expostos), com o que mais eu poderia contar? Com o que mais... no sentido de ganhar o manifestante anti-Cambeba para a causa do bairro ou, quando nada, de lograr o empate com um "então, esquece"? Algo arrasador, que convencesse, era do que eu precisava. E foi que me brotou esta expressão alternativa: "Cambalacho, não!". A ser usada pelo homem de virtudes, o que é contra a toda e qualquer tramoia. Pelos cambalacheiros, não! Nisso, vi passar um carro com uma vistosa tira de "Cambada, não!".
E outro carro, outro, outro e... outro. Eram os "cambebistas" dando o troco aos, digamos, "cambadistas", coisas de uma refrega eleitoral.
X X X X X
No fim, venceu o candidato apoiado pelo Cambeba, entendendo-se aqui o governo estadual e não o bairro que o sedia. Mesmo porque o bairro votou muito dividido, mas não fazendo, certamente, no nome apresentado pela senhora prefeita. Como fez toda a mui leal e heroica cidade de Fortaleza, e que assim julgou a sua desastrada administração. Quanto a mim, para não voltar à vaca fria que foi para o brejo, evito me alongar em comentários que tais. Agora que a nossa cidade tem novo alcaide e a hora é de reconstrução, pois. Fala mais alto o nome desta cidade, e que cada fortalezense colabore no que for possível.
Um "cambadista" mais renitente, porém, poderá levantar uma questão. "Mas, o que faço com o meu adesivo de 'Cambeba, não!'?" Ora, será bem simples a solução. Lei de Lavoisier nele! O "cambadista" salve da tira a parte ainda útil e que estivera eclipsada pelo calor das paixões políticas. Reduzindo-a, assim, para... "beba, não!". Recoloque-a, em seguida, no para-brisa do automóvel. E passe a circular com o carro perfeitamente integrado na campanha em prol da sobriedade.

Publicado em 22/02/89, na seção "Cartas", do jornal "Diário do Nordeste".

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

RESSONÂNCIAS LITERÁRIAS

Antologia de prosa e poesia publicada em 2009 por SOBRAMES, Regional do Ceará.
Autores: Airton Fontenele Sampaio Xavier, Airton Ferro Marinho, Antero Coelho Neto, Antônio Sílvio de Araújo, Antonio Vicente de Alencar (convidado), Celina Côrte Pinheiro, Christiane Araujo Chaves Leite, Dalgimar Beserra de Menezes, Dimas Macedo (convidado), Emanuel de Carvalho Melo, Fernando Antônio Siqueira Pinheiro, Francisco Antônio Tomaz Ribeiro Ramos, Francisco das Chagas Dias Monteiro (Chico Passeata), Francisco Flávio Leitão de Carvalho, Francisco José Pessoa de Andrade Reis, Geraldo Beserra da Silva, Maria Ilnah Soares e Silva, Jesus Irajacy Fernandes da Costa, João de Deus Pereira da Silva, José Luciano Sidney Marques, José Maria Bonfim, José Maria Chaves, José Teúnes Ferreira de Andrade Filho, Josué Viana de Castro Filho, Luciano Nunes Maia (convidado), Luiz de Araujo Barbosa, Luiz Gonzaga de Moura Júnior, Luiz Luciano Menezes de Arruda, Luiz Teixeira Neto, Marcelo Gurgel Carlos da Silva, Martinho Rodrigues Fernando, Nilson de Moura Fé, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Sebastião Diógenes Pinheiro, Vladimir Távora Fontoura Cruz, Walter Gomes de Miranda Filho, Wellington Alves e William Moffitt Harris
Apresentação: José Maria Chaves
Prefácio: Giselda de Medeiros Albuquerque (da Academia Cearense de Letras)
Dedicatória: "À memória do Prof. Eilson: saudades sobramistas" por Marcelo Gurgel
Projeto Gráfico e Arte Final: Júlio Amadeu
Coordenação: Marcelo Gurgel
Organização e Revisão: Marcelo Gurgel e Walter Miranda
Imagem da Capa: Glauco Sobreira
Editoração e Impressão: Expressão Gráfica e Editora Ltda
Tiragem: 1.000 exemplares
Livro com 224 páginas.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

JAMB (1986-1990)

Abaixo relaciono minhas colaborações ao Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB) durante o período de 1986 a 1990:
  1. COMO EU VEJO - Fev/86
  2. AOS QUE RONCAM - Fev/87
  3. (À PROCURA DE) FÓSFOROS - Abr/87
  4. O SEGUNDO - Jun/87
  5. EM CARTAZ (I) - Ago/87
  6. SALVE A INFLAÇÃO BRASILEIRA! - Nov/87
  7. DOMURU E EU - Jan/89
  8. BRASIL, MOSTRA TUA TARA - Mai/89
  9. ESTAMOS GRÁVIDOS! - Abr/90
  10. O CAMINHO DO MEIO - Mai/90
  11. A SENHORITA E. - NI
  12. ESCOLA DE SAMBA? DEIXA EU FALAR... - NI
Todos esses textos já estão publicados no Preblog.

sábado, 31 de outubro de 2009

BRASIL, MOSTRA TUA TARA

A Constituinte não topou este desafio
Garantir a estabilidade no emprego para técnico de futebol.
Salomão Rei
Se ele houvesse possuído apenas um terço das concubinas, ainda assim teria sido um sábio.
Bilaquiana
Abri a janela pálido de espanto... Outra parada militar em minha homenagem!
Subornar uma autoridade pode dar cana
E está custando os olhos da cara o suborno para não acabar preso.
Feito gente
As tarifas públicas crescem à noite.
Puxa, como você adivinhou o meu pensamento?
Ora, foi fácil. Você tem poucos.
Só com dinheiro vivo
O crime pago com cheque não compensa.
Os mortos governam os vivos
Será por que em muitos lugares do Brasil ainda não perderam o direito de votar?
Uma lágrima autêntica como é
tem gosto de soro caseiro.
Música
Essa coisa divina que aumenta a produção das vacas leiteiras.
Caetano (dando Bandeira)
Irene preta / Irene boa / Irene sempre de bom humor / Quero ver Irene dar sua risada.
Para não revidar uma agressão
Conte até dez. Ou até cinco, se você for pavio curto.
Filosofia Zen
Ficando de pé numa perna só, pode alguém suportar a fadiga da outra perna?
Uma comparação
Apodrecendo feito manga que a gente precisava vender.
Outra, estilo Faustão
Sou do tempo em que tio não era o motorista do ônibus escolar.
Engoma, engoma
O que tem o nu a ver com as calças?
Receita antibanquete canibal
Mijar no caldeirão. Dizer que fez isso.
É muita indignação... faltando
Outro aumento no preço dos combustíveis e o cidadão fingir que não é com ele. Só porque está de tanque cheio.
Bateau Mouche IV - a explicação de uma tragédia
Gente demais. Antes de partir não esvaziaram os cinzeiros de bordo.
E o que vai mudar depois
Os nomes dos Bateau Mouche I, II e III.
Má ideia
Homem correr atrás de um rabo de saia... Escócia a dentro.
Dos males do Brasil
O maior - demonstrável por A mais B - é o analfabetismo.
Afora, é claro
Esse contínuo "estado de não come".

terça-feira, 27 de outubro de 2009

GOTEIRA NOVA

Quando fiz reforma na moradia
Acabei com a minha economia.
- Olha a porta emperrada.
- Cuida da fechadura.
- Quando for pra pintura
Quero a mão caprichada,
--------------------------------seu pintor.
Mas que há com o barracão
Quando me respinga na moleira?
Um chuvisco de verão.
- Que aflição!
Pode ter nova goteira.
Pode ter nova goteira.
Pode ter goteira nova.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

ESCOLA DE SAMBA? DEIXA EU FALAR...

Você talvez ainda esteja rememorando com prazer o recente desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. Um espetáculo de encher os olhos. Quer pela garra dos passistas e ritmistas - o samba dito no pé - quer pelo luxo e esplendor das fantasias, carros alegóricos e adereços. A isso, acrescente-se também a harmonia, a criatividade dos enredos, a cenografia etc. Sem favor algum, o maior espetáculo da Terra. Haja vista, entre outras coisas, a afluência de turistas do mundo inteiro para assistir ao desfile. E... como saem eles embasbacados do sambódromo.
Nessa empolgação, você talvez não tenha dado conta de um fenômeno. A cada ano, as escolas de samba vêm se afastando mais e mais dos princípios que nortearam a criação. Em parte, justificada a mudança por terem as agremiações, na medida em que os tempos são outros, se transformado em função de uma nova realidade. Agora, que ficaram diferentes, ficaram. Irreconhecíveis até, quando se recorre - para efeito de comparação - ao referencial de um passado meio cá. E, sobre compará-las com a "Escola de Samba Deixa Eu Falar", dos saudosos Ismael Silva e Heitor dos Prazeres, ah, então nem falar...


Mas, continua possível uma escola de samba retornar às origens. E eis, quesito a quesito, como ela ficaria.
Bateria - Nada de pessoas com surdos, taróis, reco-recos, pandeiros, cuícas e... que sei eu! Voltaria a ser um conjunto de pilhas eletroquímicas, associadas em série ou em paralelo, para se obter uma maior diferença de potencial ou durabilidade. Uma solução, com o pedido de desculpa pela ambiguidade da palavra, bem a gosto do Dr. Batérico.
Carros alegóricos - Andariam empurrados. Mas aí já não seria por problema de bateria.
Porta-bandeira - Uma base de metal, plástico ou madeira, com um orifício central, no qual se pode enfiar a haste de uma bandeira.
Mestre-sala - Não mais sassaricaria na Marquês de Sapucaí. Lugar de mestre é em casa. E, para ser exato, na dependência onde as refeições são servidas e as visitas recebidas.
Ala das baianas - Só pessoas do sexo feminino e nascidas na Bahia.
Outras alas - À la carte.
Concentração - O momento em que todos os participantes meditariam profundamente pelo Método Silva. Em vez de ficar empostando a voz, afinando algum instrumento, ajeitando adereço ou dando um arremate de última hora na fantasia.
Fogos - Artifício suprimido a fim de não papocar o espetáculo.
Carnavalesco - Novamente equiparado a papa e rei. Joãozinho XXX reabriu o processo.
Comissão de frente - O júri sendo corrompido de maneira clara na frente de todos.
Enredo - Ficaria sob a responsabilidade de quem sabe mexericar, dedurar, futricar etc
Destaques - O sujo falando do mal lavado. E com que folga, hein!
Puxador - O ladrão de automóveis, o viciado em maconha. Para testar o método sincopado da ressocialização pelo samba.
Fantasia - Nenhuma vestimenta. Apenas imaginação, devaneio... Remember o rei que desfilou nu. E, no tocante a isso, já tem o mulherio que entra na avenida só de tapa-sexo.
Adereços - Ampla utilização dos arreios de cavalo. O que, aliás, é bem melhor do que pegar em rabo de ginete.
Evolução - Sem essa! E, por já ter causado problema bastante, fique a evolução restrita às Ciências Naturais.
Bicheiro - Um frasco cheio de bichas (sanguessugas, no sentido antigo). Já que as bichas de hoje não podem ser assim contidas, ainda mais durante o período da folia.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

OUVIR AS BASES

PGCS
"Ora (direis) ouvir as bases! Trouxa,
Desaprumaste!" E eu vos direi, porém
Que não tenho uma liderança frouxa
Nem que sozinho decido também...

Quando o impasse é descomunal, e atrozes
conflitos me cercam, busco eu - de dia
E de noite - ouvir atiladas vozes:
Naipe de uma como que sinfonia!...

Direis agora: "Deputado esperto!
O que aprontas com elas? Qual é
O ganho dessa oitiva a céu aberto?"

E eu vos direi: "Não são elas capazes
De só falar o que a gente ouvir quer?
Pois se assim não fosse, ó... danem-se as bases."

OUVIR ESTRELAS

Olavo Bilac
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

AOS QUE RONCAM

-
Não se pode roncar impunemente,
A noite toda, feito um caititu
A morgar no bem-bom. Ou julgas tu
Que cá, nesta casa, não mora gente?

Ressonando, não dás nenhuma trégua
Ao sossego daqui. Pô, Roncador!
Lembras um carro de bois gemedor
Cuja bulha tem o alcance da légua.

Queres roncar? Busca um novo endereço
Distante de ouvido cristão, ó Anta!
(Nesse afã, talvez te ajude Morfeu.)

Pois, se aqui te quedas, eu não apreço
Um reles tostão por tua garganta,
Já que te acham o próprio Asmodeu.

Foi publicado no Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB nº. 1157), de fevereiro de 1987. É uma paródia do soneto AOS QUE SONHAM, de Raul de Leoni (a seguir).

AOS QUE SONHAM

Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente.

Olhando no alto a árvore excelente
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora
O Sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da serpente.

Queres sonhar? Defende-te em segredo
E lembra, a cada instante e a cada dia
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O Calvário do Filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

OUTROS TEXTOS PUBLICADOS NO DN - CULTURA

Além dos 23 textos ultimamente aqui inseridos com o marcador DN - CULTURA, há outros 21 deles que foram publicados no caderno de cultura do "Diário do Nordeste" e que já estão no Preblog (por vezes sob títulos diferentes).
Estes 21 textos são os seguintes:
FÓSFOROS
O SEGUNDO
AS COROAS DE APOLO
EM CARTAZ - I
BANCA DAS NEVES
HOMEM & MULHER
MINHA HISTÓRIA
A BOMBA
O VENDEDOR DE ESTRELAS
PONTO E VÍRGULA
JORGE, SUAS PAQUERAÇÕES (SOL, PRAIA... AÇÃO)
A PROPOSTA DO DR. CARTA PÁCIO
O CAMINHO DO MEIO
JORGE, SUA LUTA ANTI-SOLIDÃO (GURGELZIM E A ARTE DO DESENCONTRO)
A SENHORA E.
JORGE, SEU VIOLÃO DE OURO (GURGELZIM DA VIOLA)
INVENTANDO COISAS
DR. CARTA PÁCIO E O LOTEAMENTO HUMANO
OS TÍQUETES DO TEMPO
JORGE, SUA VIDA SEXUAL (GURGELZIM E O COMETA HALLEY)
O FAROL

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A PREGUIÇA

Tem um bicho que a preguiça chegou ali, parou. A ficha dele: mamífero desdentado, da família dos bradipodídeos e que atende pelo nome de preguiça. Aliás, não atende. Gritar "ei, preguiça" e aguardar que ele dê a mínima... é tempo jogado fora. O bicho, caso um mau movimento o ponha sentado sobre os bagos, vai ter uma enorme dificuldade para se livrar da situação. Mas... conjeturo eu, em vez de chão (que lhe criaria o problema descrito), a preguiça é parada mesmo é numa árvore. Em cujos galhos (onde também encontra as folhas de que se alimenta) deixa-se pender horas e horas, indiferente ao desassossego do mundo.
Um zoológico que se preze tem de ter pelo menos uma preguiça no plantel. E bem tratada, hein, para que nunca bata o prego. Como isso, entretanto, apesar de todos os cuidados nem sempre é possível, então o zoológico tem de ter a alternativa. Um "aspone" (recrute-se da administração pública) que substitua a preguiça até que apareça outra da espécie. Sabem como é, a preguiça é um espetáculo - em slow-motion - que não pode parar. E do "aspone", além de ser um substituto, deve-se ainda exigir que seja um PHD (passa as horas dormindo).
Pois é, a preguiça... vida boa, não quer pressa. Lembro-me agora de alguém que, indagado a respeito de que se ocupava, assim respondeu: "levo algodão nas costas". Esclarecendo, a seguir, de que algodão estava a falar. Era o algodão de "uma boa rede cearense", na qual ele, um homem pouco afeito ao trabalho, gostava de preguiçar nas horas de ócio (que não eram poucas).
E, por falar em rede, tem a história do caipira que estava sendo conduzido num "leito balouçante" desses... para ser enterrado. Vivo e gozando saúde, o caipira escolhera ser enterrado para não ter jamais que encarar o trabalho. O homem era um preguiçoso da marca maior. Esquecido desse detalhe, houve um compadre que, no meio do caminho, quis demovê-lo de tão absurda ideia. Mediante um prometido: dava-lhe uma saca de arroz (o que por certo lhe amenizaria as dificuldades) e não se enterrava mais o caipira. Mas este, com pouco entusiasmo pela proposta, limitou-se a perguntar: "Compadre, é arroz sem casca?". "É com", respondeu o outro. E o indolente: "Então, nada feito". A seguir, dirigindo-se ao cortejo: "Toca esse enterro, pessoal".
Uma outra de preguiçoso - sem a casca de pessimismo da história anterior - merece também ser contada. É sobre um homem que se achava, sentado num pedra, a contemplar sua propriedade (como se não houvesse o que fazer). Nisso, um transeunte lhe perguntou se, em vez de tanta imobilidade, não devia ele amanhar aquelas terras. "Não é preciso", respondeu o homem. "Já veio uma ventania que me derrubou as árvores;depois, um raio que se encarregou de tocar fogo no mato bravio..." E arrematou: "Agora, eu espero um terremoto que me tire as batatas da terra." É, talvez exista essa coisa chamada de "força lavradora da natureza".
Ê, preguiça. Que o dicionário dá como sinônimo de aversão ao trabalho, indolência e mandriice. Mestre Aurélio inclusive aproveita para dar a origem da palavra (do latim prigitia). E registra ser também o nome que recebe a corda do guindaste, acepção por mim considerada um despautério (basta ver o que o guindaste faz). Como também, para o grande e autêntico preguiçoso, deve ser um despautério a expressão "vivendo e colhendo" significar "vivendo e bem". Ora, se é colhendo não pode ser bem... Mesmo porque, além do terremoto (que tira as batatas da terra), não há outro fenômeno na natureza em prol do colher.
Bem faço em não generalizar que o preguiçoso é um inimigo do trabalho. Porque há preguiçoso que se dedica ao trabalho... com uma languidez que só vendo. Sendo inoportuno lhe perguntar se não há nada que ele faça ligeiro, pois já se sabe a resposta que esse preguiçoso vai ter na ponta da língua: "eu me canso ligeiro". É, razão teve Eça quando disse não existir uma profissão mais absorvente que a vadiagem. E, por Eça e outras, é que o preguiçoso é alguém que cuida de descansar... antes de se encontrar cansado.
Um pensamento sob medida para terminar a crônica: "Gosto de trabalhar. O trabalho me fascina. Posso ficar sentado, olhando para ele, durante horas." Gostaram os leitores? É de Jerome K., um pensador que tinha preguiça até para assinar o sobrenome.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DOMURU E EU

Em minhas poucas horas em Kobe, Japão, afastei-me de meu animado grupo de excursão para ir visitar Enryba Domuru, o famoso monge Zen. Encontrei-o no jardim de seu mosteiro, a passear solito, os pés miúdos pisando em folhas secas caídas das amoreiras. Enquanto alguém, que eu não via mas adivinho que seria um discípulo seu, tocava num shamnisen (alaúde japonês de três cordas) cujos silêncios eram belíssimos. Já havendo assistido no Brasil, durante alguns anos, Domuru falava um português razoável - daí haver sido possível o nosso diálogo. E, embora eu fizesse por onde, em momento algum ele perdeu o equilíbrio que o fazia merecedor da boa reputação.

- Como fizeste para alcançar o Nirvana?
- A ti pode parecer estranho, mas foi pela evasão... de mim mesmo.
- E imitando-te... posso eu também chegar a esse estado de paz, plenitude e ausência de todo e qualquer sofrimento?
- Sim, porém aí terás feito... bem, digamos que...
- Pô! Domuru. Sem rodeios.
- Uma besteira. Uma daquelas besteiras... sem tirar nem pôr!
- Espera. Atingiste o Nirvana e agora és contra?
- Nem contra nem a favor, muito pelo contrário. Apenas digo que há tolice no agir de quem, a pretexto de querer chegar ao Nirvana, ignora o Sansara.
- Explica-me o que é isto.
- Não é Zen explicar algo. Todavia... Sansara é a instabilidade das coisas, a transitoriedade da vida, a agitação do mundo. É o que se contrapõe ao Nirvana para que ocorra o equilíbrio.
- E há como resumir tal ensinamento?
- Sim, numa frase. Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
- Puxa! Domuru. É... anfíbio o que acabas de dizer. E suponho que tu tens outras coisas a me ensinar.
- O amor à natureza! Medita sobre o seu equilíbrio de formas, cores... Não há beleza que se compare à de uma rosa entrefechada.
- A beleza de um botão entreaberto, talvez.
- Ora, vejo que estás progredindo... E, para o contato com a natureza, não te eximas jamais das cavalgadas no campo.
- Devo eu mesmo ferrar o animal?
- Sim, conquanto dês uma no cravo e outra na ferradura.
- De acordo.
- E jejua, meu jovem. Pois muito terás de jejuar.
- Sem limites?
- Com. Se não deves matar o cabrito, tampouco deves deixar o tigre morrer de fome.
- Mas... devo apenas meditar, jejuar, maravilhar-me com a natureza?
- Exercita-te também nos trabalhos manuais. Como no ofício da tecelagem, por exemplo.
- Está bem. Serei o que tece as próprias vestes.
- Sem atar nem desatar, prometes?
- Esquece, esquece.
- Então, aprende que o grande Daruma, para alcançar o autoconhecimento, nove anos meditou em frente a uma parede branca.
- Bem, às vezes, eu assisto à missa com um olho no culto, outro no padre. Eu sei que é pouco...
- Ora, é um belo e edificante exemplo, dentre os muitos que encontramos no cristianismo. Esta religião, por sinal da cruz, é a única que oferece a solução para um importante dilema. Imagina que um homem seja colocado entre a cruz e a espada...
- Pode esse homem eleger ambas as alternativas?
- É o que acontece. Ele vira padre-capelão.
- Calma aí, Domuru. Aonde queres chegar?
- Com a ajuda do sin-cre-tis-mo, eu quero chegar ao homem exemplar. Aquele que não é carne nem é peixe.

Nisso, pareceu-me ter ouvido um apito familiar. Do cargueiro, fundeado em Kobe, no qual eu vinha viajando (sem lavar o porão). Ora, longe que eu me achava do porto, nem sei como escutei aquele apito, mas se era real (era!), o navio estava prestes a zarpar. Então, premido pelo pouco tempo que me restava, em mim berrou uma fera imediatista.
- Anda lá, Domuru. Quero agora o teu infalível preceito para desenvolver a personalidade.
- Ó jovem. Quando conseguires não ser boi nem ferrão, não ser vidraça nem estilingue, não ser sândalo nem machado...
Demais! Aí, tomei o meu caminho de volta. Assim: nem tão lento que parecesse provocação, nem tão rápido que parecesse covardia. E penso que Enryba Domuru deve ter gostado desse meu jeito de sair de cena.

sábado, 5 de setembro de 2009

A FLOR DO ABORRECIMENTO

"A melhor crônica a gente não a escreve. Ela nos escreve,
pronta que já estava na sensibilidade comum." - Artur da Távola

Fortaleza, seis horas. À base do sacolejo, eu desperto a manhã de seu sono pesado. Ato contínuo, meus velhos chinelos me arrastam até o banheiro. Neste lugar, reflito: o espelho... por que ele tem de fazer as mesmas coisa todos os dias? Lavar os olhos, esvaziar a bexiga, banhar-se, escovar os dentes. Etc.
De volta ao quarto. Minhas roupas escolhem o corpo que pretendem usar durante o dia. A camisa social, um tórax espadaúdo, as meias (que estão furadas), dois pés de incontidos dedões, a gravata, um pescoço que a não sufoque, assim por diante. E cá estou produzido (no sentido que os estilistas dão a esta última palavra).
"Que horas são?", pergunta o meu relógio de pulso outrora pontual. "Sou quinze pras sete", respondo secamente. Pois acabo de me lembrar de outro relógio, o do ponto, que, para meu especial desagrado, repetirá esta pergunta logo mais. Ah, eu devia ter troçado dele: "Oração? Só na igreja."
Chove aos potes. A caminho do trabalho, eu finjo que não vejo os táxis. Os táxis, todos no desespero, acenando para mim. Passo (ao) largo: estou ocupado com a minha pressa ou apressado com a minha ocupação, sei lá, não quero ser mais um a chover no molhado.
O fato é que, após ter cruzado por alguns barquinhos de papel, eu encalho. Enquanto o sol, disposto a espiar minhas íris, começa a abrir uma imensa clareira nas nuvens. E, como que por desencanto, algo acontece a meu superportátil guarda-chuva (até então oculto sob a camisa). Ele, triunfante, abre o seu amarfanhado náilon. Ao sentir, porém, um pingo de chuva retardatário, ele se recolhe... por precaução.
"Por quanto tempo serei ainda um quarador ambulante?", indago. O astro diurno, "firmamentão" acima de minha cabeça, dissipa os cúmulos dessa dúvida: "Por um tempo inferior ao que se gasta contando até dez". E eu constato que sim, por volta do número 9,756.
"O quê?" Um sabiá-laranjeira agora escuta os sons maviosos que saem dos meus ouvidos - a natureza é bela! A cena seguinte, a de um gato subindo na laranjeira, ardilosamente, demonstra que a a natureza também precisa fazer uma revisão em sua dialética. Enquanto isso, na defesa de seu existir, seja o sabiá menos ingênuo, menos laranja.
O saguão do edifício em que trabalho. À porta do elevador, como sempre, encontro-me com o Sr. Cunegundes que pressiona meu nariz. Ele, invariavelmente, faz isso quando quer subir ao quarto andar. Agora, detestável é o Sr. Coriolano que, para ir ao sexto, tem que dar um chute em minha panturrilha esquerda. Mas hoje vou chiar. "Por que não perta só o meu nariz, como faz o bom, afável e simpático Sr. Cunegundes, e sobe o resto pela escada?" E tomara que não dê zorra. É inominável onde tenho o botão de emergência.
Chego, enfim, a meu escritório. O local em que cultivo, dia após dia, a flor do aborrecimento. Sim, é correto o que disse Alain Rémond: "Um escritório é uma microsociedade governada por códigos que dão origem a incontáveis fofocas, neuroses, paixões". Como é também correto eu desabar, digo, desabafar: "Ai de ti, Homo burocraticus!" Fofocas, neuroses, paixões... estou mesmo encalacrado. Eu, Homo burocraticus.
Eis os sinais: a escrivaninha se fecha para mim, os cafezinhos me consideram um cara frio, fraco e fedorento, a cadeira não aprecia meu estofo e a máquina de escrever, os meus mindinhos emperrados; para o arquivo de fichas sou fichinha; os cigarros se irritam com meus brônquios, o telefone não quer papo comigo, o bebedouro não me engole, o ventilador de teto me põe para circular e resmas de papel ofício mofam... de mim.
Pois é, acho que estou me coisificando. Não escapo nem mesmo de uma cesta de plástico barato da seção. A qual, na fatuidade de seus papeizinhos amassados, a toda hora me joga na cara um... "tá me enchendo, pô!"

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

EM CARTAZ - II

CHICAGO VICE
Estados Unidos, 1954. Rip Altman é um dos homens de ouro da polícia de Chicago. Logo no início da história, ele aparece desmantelando uma rede de prostituição - sem tocar nas camas! Em razão disso, é promovido em periculosidade de trabalho. E recebe a incumbência de vigiar, noite e dia, os passos de Carmine. O mafioso Carmine que, com mãos de ferro e pés de barro, controla toda a famiglia Gambino. Altman nisso é inexcedível. Gruda. Segue Carmine em todos os passos, só o perdendo de vista nos momentos em que o chefão mafioso planta bananeira. Pelas tantas, o homem da lei surpreende Carmine num descampado, encosta-o num canto de parede... É quando o mafioso se confessa arrependido da vida de lenocínio, pistolagem, tráfico de drogas etc. E diz que vai largar tudo para ficar apenas na extorsão. Convencido da regeneração de Carmine, Altman fica seu amigo e até aceita comer com ele uma pizza de cogumelos, decerto alucinógenos. E que tem efeitos inclusive sobre o cérebro do roteirista pois, daí para frente, o filme se mostra pouco compreensível. Fosse projetado ao contrário, talvez as coisas fizessem sentido, se encaixassem...
MORTE NO TONEL
Mercado Comum Europeu, 1985. Drama baseado na vida real de Joachim B., um cidadão português de ascendência materna alemã. Em face da recessão econômica em seu país, Joachim B. emigra, indo fixar residência na Baviera, Alemanha. Após algumas dificuldades, ele arranja emprego numa fábrica de cerveja. De função em função, chega à mais ambicionada delas. A função de primeiro-amassador de lúpulo da fábrica, a qual exige pés escrupulosamente limpos. Em contrapartida, dá-lhe renda suficiente para fazer generosas remessas de dinheiro à esposa que ficou em Portugal. Um mês a remessa não se materializa, e a mulher recebe uma má notícia. Joachim teria morrido afogado num grande tonel de cerveja. Ela viaja às pressas para a Baviera, os diretores da fábrica acodem ao aeroporto da região para recebê-la e... a má notícia é confirmada. Inclusive circunstanciada: Joachim tivera uma morte terrível, porém rápida (apesar de seu vaivém final entre o tonel e o mictório). Em prantos, a viúva toma o primeiro avião de volta para Portugal. Não sem antes apanhar, a modo reparatório, duas malas alheias na esteira do aeroporto.
O EREMITA
Grã-Bretanha, 1978. Apesar do título é o filme que apresenta as cenas com os maiores ajuntamentos humanos da filmografia mundial. São as pessoas que povoam os pesadelos do eremita. E, na pele deste, acha-se Daniel O'Brega, um ator irlandês que dispensa apresentação (pelo menos neste papel). O eremita é um desiludido com o mundo dos homens, mas não com o dos morcegos. Vive numa totalmente escura furna, de onde só sai para comprar gelo redondo. Certa manhã, a sua faxineira o encontra com febre e agonizante. Internado á força no Hospital de Base de Wakefield, eis o diagnóstico que lhe dão: histoplasmose. Uma doença da qual ele fica bom, só por pirraça com os médicos e o padre da extrema-unção. De volta à vidinha boa de antes, dessa vez desiludido com o mundo dos morcegos - transmissores da histoplasmose - o eremita vai morar num poço artesiano que secara. Mas que, no primeiro inverno, reenche de água, afogando-o. É um filme que até hoje não foi exibido no condado de Yorkshire, o local da filmagem. Depredariam o cinema. Por conta do calote que o veterano diretor Paul Hunter, 18, passou nos figurantes por lá recrutados.
NUNCA TE VI
Brasil, 1986. Com Paulo César Aperreio, no melhor papel de sua carreira. Ele é Macondo Ferraz, um bem-sucedido homem de negócios paulista (entre suas atividades, está a de dirigir uma carteira de investimentos com a qual ajuda as pessoas até que elas fiquem falidas). E que, entediado com o trabalho, resolve passar umas férias na Europa e na França, com conexão na Bahia. O mau tempo, porém, obriga o avião em que ele vai a fazer um pouso de emergência no Dedo de Deus, em Teresópolis. E, quando melhoram as condições meteorológicas, uma surpresa desagradável: o avião não pega nem com empurrão. Com o sistema de comunicação avariado, resta a passageiros e tripulantes a espera pelas equipes de busca e salvamento. Elas chegam dias após, e todos são resgatados com vida. Todos, menos Ferraz cuja ausência é diminuída por uma ossada que as equipes descobrem no local. Detalhe crucial: uma trempe, com as cinzas ainda quentes, parecem apontar na direção de um canibalismo por parte dos sobreviventes. Mas, ao fim dos interrogatórios policiais, são todos inocentados. Sob protestos de um detetor de mentiras importado dos Estados Unidos (mentira, importado do Japão). Rodado com o nome provisório de "Nunca te vi, sempre te comi", por sugestão do distribuidor o filme teve o título encurtado. Para não confundir o cinemeiro pornô.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A CRÍTICA INÉDITA SOBRE A OBRA LITERÁRIA DE PAULO GURGEL

PAULO GURGEL: HUMORISTA E POETA
O médico, poeta e humorista Paulo Gurgel é também ficcionista nas horas vagas. E horas vagas para ele é o tempo disponível entre a profissão, a poesia e o violão. Que me desculpem a rima. Mas o ritmo poético e o acorde acordam nesse homem o humor, que o pratica com grande sobriedade e agudo senso crítico. Sensível à beleza artística, é um expert da criatividade.
Vez por outra, nos mostra nos suplementos literários a dimensão de seu talento inventivo numa simples crônica ou estória engraçada. Diríamos, mas propriamente, de fino humor, onde a ironia desponta aguda, ferina, insinuante, inusitada. É este o poeta que temos agora em mãos, participante de duas antologias, a primeira datada de 1981, VERDEVERSOS, e a segunda com o título ENCONTRAM-SE, do ano em curso.
A publicação dos livros mencionados é da responsabilidade do Centro Médico Cearense, e na primeira antologia nada menos de dez figurantes são encontrados. Na segunda, a lista estica para quatorze. E isto prova que, se a coisa pega, vamos longe. Médicos escrevendo poesia? - ora direis os tolos! E nós respondemos que é o que de melhor pode acontecer nos dias de hoje. Há os males do corpo e os da alma. Os nossos médicos-poetas cuidam dos dois. E em nosso meio já temos cultores das musas de alto nível, de nome nacional, como Airton Monte e Caetano Ximenes Aragão, para citar apenas dois do VERDEVERSOS, sem contar com Pedro Henrique Saraiva Leão, que saiu do movimento concreto do Ceará, lançado em 1957, e que não está incluído entre aqueles poetas.
Mas, o que vem a ser a poesia de Paulo Gurgel? O humor estaria ausente? Não. E até isto se nota em sua minibiografia. Vejamos: "Detesto ser levado a sério; o contrário, também." Em outra passagem o temos assim: "Amante dos livros, dois deles marcariam-lhe profundamente a juventude: 'Os Lusíadas', de Homero, e 'Ilíada", de Camões." (O grifo é nosso, mas a afirmação é dele.) "Abriram-lhe tanto a visão que fez um exame de vista sem que o oculista lhe dilatasse a pupila."
Isso são trechos esparsos de sua minibiografia (que não é tão mínima assim). O humor também invade a prosa desse cartunista da palavra e da imagem poética, que nos deu apenas o espaço do quarto minguante para redigir estas palavras: "Quero só quatro linhas para botar num livro". E aí estão mais que "quatro palavras" que, contudo, não dão ainda para fazer um juízo crítico de seus trabalhos inseridos nas publicações já referidas. Mas não podemos fechar esta nota sem antes dar ao público uma demonstração de sua criatividade poética:
"Que anjos são esses
Que se nutrem da celestial ambrósia
Mas que não diligenciam
Quando mastigo cogumelos venenosos?"
Humor cáustico, mas humor, também aqui se vê. E só ele, entre nós, o faz com tanta autenticidade assim. Vamos à frente, poeta; não há retorno para nada. O que está morto está perdido. Às bruxas o passado e o louro dos herois.

José Alcides Pinto fez essa apreciação em 1983, a respeito do trabalho literário de Paulo Gurgel, entregando a este uma cópia para a publicação, o que só acontece agora.

PECULIAR APRECIAÇÃO DO LIVRO "SOBRE TODAS AS COISAS" EDITADO PELA SOBRAMES - CEARÁ
Chegou-me às mãos, por gentileza de Geraldo Bezerra (45), o livro SOBRE TODAS AS COISAS - EDIÇÃO CONJUNTA - SOBRAMES/CE (1). Então, eu li Celina Pinheiro(5), Francisco Medeiros(37), Helvécio Feitosa(67), Luiz Alberto(99), Marigélbio Lucena(119), Hamilton Monteiro(55), Emanuel Carvalho(27), João Wilson(91), Luiz Moura(107), Dalgimar Meneses(17), Ícaro Meton(83) e Paulo Gurgel(129).
Foi então que, dando asas à imaginação, eu, fugindo do QUOTIDIANO(101), agarrei um COMPANHEIRO(102) e dizendo É PRECISO VIVER(52), fomos ver o NOTURNO DA CIDADE GRANDE(60). Antes de relatar esta CRÔNICA DA NOITE(93), digo: - nós, TORCEDORES DE FUTEBOL(125), separados do CARTOLA DO FUTEBOL(127), fomos ver MEU TIME DE FUTEBOL(126) que estava EM CARTAZ(135) elevado. MEU CORAÇÃO I(85), sem REFLEXÃO(103), sentiu o jogo CUMBUCO(55).
Deixei-o lá, saí, só, procurando BILACA(40), com a INQUIETUDE(63) e o INDISCIPLINADO(113) e ADMIRÁVEL MUNDO LOUCO...(91) cheio de MUTAÇÕES(48). Então, HOMO FALLUS ERECTUS(42), apertei o SEGUNDO(131) MEU CORAÇÃO II(86) cheio de DESEJO(85) e FEITIÇARIA(64). Era uma TARDE ABSURDA(62), véspera de CARNAVAL(105) e o CARNAVALESCO(14) em TEMPO REDESCOBERTO(65) aguardava o DESENLACE(12), sim, UM ESTRANHO ENTERRO(71), CICATRIZ(117) de O INFORTÚNIO DE JUCA(75), vítima de O MAL-DO-ZECA(79). Era como um NATAL VENDIDO(95) e eu, sentindo INSÔNIA(59) e cheiro de DERROTA(28), lembrando os REFLEXOS DO NEGRO(30), onde SER OU NÃO SER... HONESTO(5) era MAGRA FANTASIA(32), propus á ROSA(49), sim, a VOCÊ(58): - SEJAMOS NÓS(44).
Realizamos então A PRIMEIRA FUGA(17): era O DIA DE SÂO SARUÊ(83) e deixamos "O SERTÃO EM POLVOROSA(67). PERDÃO... ERA UMA VEZ UM PAJEÚ(84). Mas MARIA CLARA(103), a BRANCA DAS NEVES(137), aproveitando AS COROAS DE APOLO(133), disse-me: escreve a ELEGIA EM VIDA A JOSÉ DE AGUIAR RAMOS,VAMOS CONSTRUIR O HOSPITAL DO CÂNCER(119), pois CADA MOMENTO, A VIDA(46) é AMOR NA CONCEPÇÃO DO POETA(37).
Eu, com FEBRE(33), compus este CANTO ENIGMÁTICO(105), autêntica SÚPLICA DE NATAL(61), endereçando A VOCÊ, MEU FILHO, MINHAS ESPERANÇAS(97) pois, APESAR DE TUDO(34), NINGUÉM SE LEMBROU DE TI...(53), mas AINDA PRESTA O TEU AMOR(45).
Rumei então para NOVA IORQUE(31) onde daria a AULA DE 14 DE MAIO DE 1975(21) sobre O QUE PODE HAVER DE COMUM ENTRE: INVERSÃO UTERINA TOTAL, O REDEMOINHO MARÍTIMO DE MAELSTROM E A MANOBRA DE GUAXINIM(122) e soltei THE ATOMIS BOMB(43) e TAU SALOMONIS(25) com as MEMóRIAS DE UM ATESTADO MÉDICO(107).
Com A MARCHA DO TEMPO(50), olhando OS OLHOS DA MULHER AMADA(99), UMA SEMANA MAIS TARDE(43), entre REFLEXÕES(35), à hora d'O JANTAR(9), uma CONCEPÇÃO(38): - SER POETA(29), é UMA ESTÓRIA DE EMERGÊNCIA(89) NO UMBRAL DO ANÍSIO(27), cresce como BOLA DE NEVE(51) da INFÂNCIA(87), após a BALADA DO POETA SEM NOME(100), dedicada à MÃE(10).
Em ANTÍTESE(104), após o EXAME PRÉ-NUPCIAL(11) e consultar RELÓGIOS(7), resolvi escrever UM POEMA PRA VOCÊ(96). Era a VISITA DA POESIA(56): - O CURIOSO CURIÓ(116) desprendeu uma FORTUITA LÁGRIMA(39), sequei-a com FÓSFOROS(129).

Texto escrito no Rio, em 11 de abril de 1988, por Tito de Abreu Fialho, então presidente da SOBRAMES - Nacional, e enviado ao Ceará para os participantes do citado livro.

LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA "EFEITOS COLATERAIS"
Minhas senhoras; meus senhores; meus colegas.
O caro, preclaro, e raro colega Luiz Gonzaga de Moura Júnior, presidente desta entidade médico-literária, solicitou-me apresentar a vocês os demais colegas presentes nesta antologia. Mormente para cumprir um protocolo, eis que são todos conhecidos e apreciados.
Permitam-me - contudo - de início nomear outros, os quais nesta crestomatia não figuram: Francisco de Castro / AfrânioPeixoto / Oswaldo Cruz / Miguel Couto / Clementino Fraga, pai e filho / Fernando Magalhães / Maurício de Medeiros / Aloysio de Castro / Deolindo Couto / Peregrino Junior / Carlos Chagas Filho / Pedro Nava / Ivo Pitanguy / o nosso Airton Monte, todos figuras de truz da Medicina e da Literatura brasileiras.
Como são, igualmente - quiçá com a mesma proficiência - os colegas hoje e agora reunidos nesta coletânea, a demonstrar, mais uma vez, que "letra de médico" não é tão ilegível, como apregoam alguns: (...)
PAULO GURGEL, verdeversejando desde 1981, terça com a mesma destreza a crônica, o humor, e o conto, de maneira fluida, condensando-se ao sabor do ar expirado por seus temas prediletos. Pneumologista de escol, não padece daquela dispneia intelectual, tão encontradiça, a qual nem os médicos conseguem tratar.

Discurso proferido por Pedro Henrique Saraiva Leão (um dos participantes da antologia), em 14 de dezembro de 1990, na noite de lançamento do livro "Efeitos Colaterais".

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A CRÍTICA PUBLICADA SOBRE A OBRA LITERÁRIA DE PAULO GURGEL

UMA ANTOLOGIA DE POETAS MÉDICOS
I
São oitenta e três poemas e dez poetas médicos reunidos numa antologia ("Verdeversos"), numa bem apresentada edição do Centro Médico Cearense, com os respectivos cuidados de edição, paginação e ilustração. (...)
II
Finalmente, Joâo Bosco Sobreira e Paulo Gurgel Carlos da Silva. O primeiro participou da antologia "Queda de Braço" e tem um livro de poemas inédito "A Pedra e a Fala". Do segundo há uma curiosa e irreverente minibiografia que antecede os seus dez poemas. (...)
Humor e irreverência , talvez um toque de non sense, encontramos nos poemas de Paulo Gurgel "Vesperal" e "Profética". Bem anda o poeta, em tempos "reaganianos" - como escreve Millôr - em aludir ao mito do caubói invencível John Wayne. A preocupação social nos poemas "Desfazenda" e "Auto do Compadecido". No final deste poema, o entretexto cresce na medida em que o poeta escreve: "As minhas mãos / Uma sabia da outra". Um momento de evocação da infância recuperada aparece no sugestivo poema "Quintal de Infância".
Carlos D'Alge
In: Jornal "O Povo", fevereiro de 1981.

ESTANTE DE LIVROS
Dez médicos puseram as mangas de fora e reuniram em "Verdeversos" as suas poesias: Airton Monte, Alarico Leite, Caetano Ximenes, Emanuel de Carvalho Melo, João Bosco Sobreira, José Jackson Sampaio, Maria Irene Nobre, Lucíola Rabelo, Paulo Gurgel e Winston de Castro Graça.
Os poemas de Paulo Gurgel, quase todos, trazem a marca do grande poeta. (...)
Paulo Gurgel é, para mim, uma revelação poética admirável. O poema "Quintal de Infância" é um quadro estético, e espelho de uma sensibilidade artística incontestável: (...)
A Paulo Gurgel, que se ocupa aqui de cousas triviais, pode-se aplicar as palavras de Otto Maria Carpeaux: "A arte é um dom do Céu, mas tem que servir à Terra".
"Oriental" é um poema que mostra a radiografia do homem: (...)
Estou certo de que Paulo Gurgel ainda nos vai fazer surpresas maravilhosas no campo da poesia.
Abdias Lima
In: "Tribuna do Ceará", 18 de março de 1981.

LIVROS
"Encontram-se" neste livro quatorze luminares da medicina brasileira: Beto Bezerra, Dalgimar Meneses, Emanuel Carvalho, Francisco Nóbrega, Francisco Sampaio, Heitor Catunda, Jackson Sampaio, Lucíola Rabello, Paulo Gurgel, Ricardo Augusto R. Pinto, Rose Mary M. da Silveira, Sérgio Macedo, Wilson Medeiros e Winston Graça.
Encontram-se para, em verso e em prosa de claridade lunar ou solar, nos dar conselhos sobre a saúde, falar sobre o mistério da vida, sobre os problemas da carne, as saudades dos cais, para protestar contra um mondo robotizado ou rir (Paulo Gurgel) de tudo, inclusive de si próprio.
PAULIFICANTE
PAULO, não é que nasci? Tinha um grande projeto,
-----fluvial, de atravessar caudaloso o
PAUL da humana existência, mas
-----represo-me, estagno-me - sorte
PAU - termino por saber que me espreita uma
PÁ de terra e que, dia qualquer,
-----eu morro
P... da vida.
Paulo Gurgel é um humorista à Leon Eliachar. É pena que não esteja enriquecendo as revistas do Sul.
Abdias Lima
In: "Tribuna do Ceará", 15 de junho de 1983.

CRIAÇÕES
"Criações", a nova antologia que o Centro Médico Cearense acaba de publicar, é um livro que mesmo não se destinando à realização de uma ambicionada carreira literária, enfeixa em suas páginas a virtude de provocar outras reflexões. No geral, trata-se de um projeto que, se por um lado peca pela falta de unidade estética e mundividencial, por outro assombra pela qualidade de alguns textos que apresenta, assaltando, muitas vezes de surpresa, a sensibilidade literária do próprio leitor. (...)
Sobre a irreverência do discurso de Paulo Gurgel, eu teria muita coisa a dizer, mas, contraditoriamente, eu diria que nada tenho a acrescentar. Gostaria que os seus textos fossem assimilados tal como ele os concebeu, assim de forma tão irrecusavelmente metafórica que parecem espreitar a sua própria decodificação.
No mais, gostaria de aqui registrar a importância dessa iniciativa do Centro Médico Cearense, no sentido de divulgar, através de sucessivas edições, a produção literária de seus associados, erguendo um empreendimento inquestionavelmente pioneiro no âmbito das associações profissionais existentes no Ceará.
A Editora do Centro Médico Cearense, portanto, está de parabéns, como de parabéns estão os seus articuladores, especialmente os médicos Emanuel Carvalho e Paulo Gurgel, responsáveis pelo seu programa editorial. E se mesmo, como insinuei, ainda não atingiu um estágio capaz de polarizar a ambivalência por mim reclamada, no início desta apresentação, isto se deve ao fato de o Centro Médico Cearense, antes de ser uma sociedade de escritores, se constituir numa escola que apreende a vida exatamente ao contrário daquilo que aprendemos na escola, dando-nos, assim, a lição de que literatura é vida e de que viver nem sempre representa uma opção pelos descaminhos da realidade.
Dimas Macedo
In: "Diário do Nordeste", 28 de fevereiro de 1986, e nas páginas 40-42 do livro "Ossos do Ofício", publicado pela Editora Oficina, em Fortaleza, 1992.

DIAGNÓSTICO POÉTICO E FICCIONAL
Paulo Gurgel e Emanuel de Carvalho reuniram-se com médicos seus amigos e, através da Editora Centro Médico Cearense, publicaram "Criações" - um belo e sugestivo título para a antologia que ora apresentam ao público cearense. Cearense, dizemos nós, porque dificilmente esta equipe de poetas ultrapassará as fronteiras do Estado, não pela qualidade dos poemas, que são bons, mas por falta de distribuição, que é esse, ainda, o maior problema para quem escreve e reside na província. (...)
Voltemos, agora, ao livro - "Criações". Há um fato de muita singularidade neste livro: são as "biografias" dos autores apresentadas (e animadas) pelo poeta Paulo Gurgel - um homem muito inteligente e portador de um espírito de observação fora do comum, dotado de um senso de humor raro entre escritores, mesmo ao nível nacional. O livro não faria sentido algum se o leitor não começasse pelas orelhas - orelhas de bom sinal, por sinal, diga-se de passagem.
Os antologiados - nove ao todo - estão reunidos aqui, neste volume de prosa e poesia, cada qual dando a dimensão de seu talento, de sua criatividade, de sua veia poética ou ficcional. É um grupo da pesada e que pesa muito nas letras de nosso Estado. Pela ordem de entrada no florilégio: Dalgimar Meneses, Emanuel Carvalho, Geraldo Bezerra, Hamilton Monteiro, Hugo Barros, Luís Teixeira, Paulo Gurgel, Pedro Henrique S. Leão e Sérgio Macedo.
José Alcides Pinto
In: "Tribuna do Ceará", 24 de maio de 1986.

SOBRE TODAS AS COISAS E ALGO MAIS
I
Esses médicos do Ceará são fogo. Além de bons, em muitos casos ótimos, excelentes profissionais, muitos deles se destacam também em outras atividades, notadamente no campo da Cultura, da Literatura em particular. Existe aqui inclusive uma seção da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, que há vários anos vem atuando com muita garra na edição de livros, oito ao todo até o momento, prosa e poesia, contando com este interessantíssimo "Sobre Todas as Coisas", saído recentemente. A exemplo de cinco já publicados, este agora reúne um bom número de médicos escritores, explorando (no bom sentido) mais de um gênero literário, com destaques para o conto e a poesia. (...)
VIII
Dizer que Paulo Gurgel é um dos sujeitos mais inteligentes aqui da terrinha, criativo (e engenhoso) como poucos é repetir o óbvio. Quem lê o que sai dele em nossa imprensa sabe disso, daí o número de leitores (futuros eleitores?) que ele tem, atentos sem tirar nem pôr à sua prosa, sempre gostosa e bem humorada, sem esquecer, é claro, o seu estilo escorreito e muito bem servido, em termos de língua... brasileira. Sim, ele escreve como o povo fala, sem arrebites digamos gramaticoides, o que seria realmente uma besteira. A parte dele encerra este "Sobre Todas as Coisas" e encerra otimamente, com a gente podendo falar, por isso mesmo, num final feliz. São crônicas e estórias, numa delas ( "Em Cartaz") fazendo brincadeiras com filmes (?) - tudo muito engraçado, à maneira do autor. Médico, está certo, dos bons de nossa cidade, com uma excelente folha de serviços, mas para mim, que ainda não o procurei para uma consultinha, um escritor de mão cheia, legibilíssimo, mesmo quando se está assistindo a uma novela tipo "Sassaricando".
Antônio Girão Barroso
In: "Revista", coluna do "Tribuna do Ceará", 30 de janeiro de 1987.

O CANTAR E O CONTAR SOBRE TODAS AS COISAS
Neste entardecer de fim de milênio, onde as ameaças à raça humana são inúmeras e insondáveis, a palavra parece ser revisitada e recuperada por alguns grupos atentos à integridade do homem. Neste sentido, o verbo se faz remédio e a Literatura se faz milagre. (...)
"Sobre Todas as Coisas" traz variadas texturas e variadas sensorialidades onde o leitor, feito beija-flor, parte por diferentes texturas e variadas paisagens. Alguns dos construtores desta antologia, já conheço de outras tramas literárias e pude viajar através das reafirmações do estilo de pensar e vestir a palavra de cada um; é o caso de Paulo Gurgel, Hamilton Monteiro e Celina Pinheiro.
Paulo Gurgel recria a palavra dentro de uma imagística cinematográfica e hemorrágica, onde a realidade é sempre mais inédita que a fantasia e o espanto afoga sempre o leitor aturdido e perplexo. Deste modo, Paulo Gurgel é escritor engenhoso e iluminado por soluções, individualíssimas e insuspeitas.
Diogo Fontenelle
In: "Tribuna do Ceará", 21 de novembro de 1987.

MÉDICOS ESCRITORES
I
Com um título geral e significativo (para o texto leia-se significante) chega-nos às mãos a antologia "Sobre Todas as Coisas", da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional do Ceará, num total de treze participantes - poetas e ficcionistas - já com o nome firme nas letras, todos demonstrando sensibilidade e dom para a literatura e as artes. (...)
II
As últimas páginas de "Sobre Todas as Coisas" são preenchidas por Paulo Gurgel, um homem de letras dos mais completos de sua geração. É um artista nato. Talento vasando por todos os poros. Mergulhado no absurdo existencial, na vanguarda criativa, tira de tudo isso os efeitos mais surpreendentes. É um idealista. Seu estilo é inconfundível. Sabe lidar com o reino das palavras e seus encantos. Dono de um potencial de fabulação imenso, com alguns contos já premiados, é um dos pontos altos desta antologia. Suas estórias (crônicas, poemas, fábulas?) oscilam entre o picaresco e a prosa de costumes (confidencial). Trabalha com os signos e os signos eróticos. É o desenhista e o escultor da palavra. O cotidiano é a menina de seus olhos. A condição humana está por inteiro em seus escritos.
José Alcides Pinto
In: "Tribuna do Ceará", 16 de abril de 1988.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

COISANDO INVENTOS

O homem enquanto espécie, ao longo dos milênios, tem progressivamente atulhado os locais onde mora, estuda, trabalha e se diverte de uma infinidade de objetos. São objetos que ele criou, está a criar, para o seu conforto, adestramento, exercício das profissões e entretenimento. À satisfação, portanto, de suas enormes necessidades de espécie mais evoluída do planeta. Antes disso, quando ainda não havia chegado a Homo habilis, e suas exigências era bem menores, ele apenas se cercava de uns poucos objetos. Os trecos que ele ia achando "pelaí" e botando neles as devidas serventias.
Foi somente quando o homem se fez artesão que a coisa deslanchou. Pois, em virtude da habilidade conseguida, ele passou a criar os objetos de que necessitava. A cadeira, por exemplo, para atender ao corpo que pedia o "de-sentar". E cada artefato que ele criava tinha uma só utilidade, mas não por muito tempo. Pois, adiante, aparecerem os sofisticadores dos inventos. No caso da cadeira: 1) quem a colocou entre varais para transformá-la numa liteira; 2) quem a pôs no guincho para cinematografar; 3) quem lhe acrescentou armações curvas para que pudesse balançar; 4) quem a equipou de fios elétricos para ser capaz de eletrocutar...
(Não, a sela não é cadeira; constitui um invento à parte.)
Assim como há os sofisticadores, há os subvertedores dos inventos. Aqueles que encontram para a coisa inventada a sua utilização num contexto, digamos, não familiar. Ora, se por um lado, todo e qualquer invento integra o plano da realidade, por outro, existe nele o germe do suprarreal. E os subvertedores sacam bem isso. Quando, por exemplo, descobrem (Chicago, anos 30) que o estojo do violino é bom também para carregar metralhadora. E, a propósito de ambos os grupos, o leitor me permita esta síntese: são os sofisticadores que aprimoram os inventos (o canivete suíço é a obra-prima deles!), mas são os subvertedores que conferem às coisas inventadas as mais surpreendentes funções.
Para ilustrar o que acabo de dizer, apreciemos as cenas seguintes: o operário da construção civil a trinchar o bife do almoço com a colher de pedreiro / o malandro a marcar o samba tamborilando numa caixa de fósforos / o médico a pesquisar o reflexo de Babinski por intermédio da chave do carro / o molecote que fui a soprar guarânia no pente com papel / e você aí a limpar o cabeçote do gravador com o auxílio de um cotonete... As provas de que, em tempo integral, somos mesmos uns subvertedores dos inventos. Na razão direta em que os objetos todos - do cotidiano - estão aí a pedir algum uso surreal.
Já houve quem reduzisse luxação de ombro com as manobras preconizadas, mais bola de bilhar (número 7) - com esta colocada no oco axilar do paciente, no momento da redução. Cirurgião que inserisse bolas de pingue-pongue em tórax de enfermo para fechamento do espaço extrapleural. E, certa vez, um colega que, acometido de feroz tendinite, a qual não melhorava com os medicamentos auto-receitados, ainda assim não se dar por vencido. Apelando para o calor, esse eficaz meio físico da fisioterapia. Aí, desprovido de melhor equipamento, botou o ferro de engomar a aquecer e... passou a tendinite a ferro.
Ah, são tantos os usos possíveis para os objetos que o mais possante dos computadores, caso se metesse a registrá-los, queimaria os circuitos integrados já na segunda letra do alfabeto. No "B" de Bom-Bril. E dou novos exemplos, agora no campo da música. Pode-se tirar som de violino (violin-like) de um serrote ferido por um arco. Som de xilofone de um jogo de garrafas com escalonados níveis de água. E som de porco, ora bolas, açulando porco (como Hermeto fez numa gravação). Contudo, eu já deixei de comprar uma flauta de segunda mão, baratíssima, porque o proprietário tinha o hábito de restaurar as chaves do instrumento com um inusitado produto biológico. Casulo de aranhas.
Marcel Duchamp, artista plástico francês dos mais inovadores, usava muito das associações surrealistas nos objetos do cotidiano. Colocando-os fora do contexto habitual, o que fazia deles obras artísticas designadas de ready made. Aqui, aproveito para chamar a atenção do leitor a um fato que acontece nas enfermarias de nossos hospitais. Durante as horas de solidão, os pacientes mais hábeis que reprocessam determinados componentes do lixo hospitalar (frascos e equipos de soro, por exemplo), transformando-os em singelas obras de arte. De arte hospitalar, dou o meu aval a tais criações, mesmo não sendo um crítico de artes plásticas.
Imaginação criadora é também o que não falta aos habitantes do sistema carcerário. Daí, os "cossocos" (armas brancas fabricadas de um quase impossível material), as "teresas" (cordas improvisadas para a escapada geral) etc. Numa de suas fugas da ilha-prisão, Papillon lançou-se ao mar em cima de um saco de aniagem recheado de cocos (um objeto flutuante, pois não). Porém, o mais astucioso engenho para a fuga fê-lo o cirurgião plástico Osmani Ramos, de quem fui amigo em fase pré-criminosa (dele, bem entendido). Utilizando-se de material especializado existente na enfermaria do presídio onde, na qualidade de médico, tinha fácil acesso, ele montou uma escada... de gesso. Sem que chegasse a usá-la, pois que os agentes prisionais a descobriram antes. Mas vai para ele o primeiro prêmio na categoria originalidade.
E a citação de uma mancada histórica. Da parte do cidadão Charles Duell, então diretor do Departamento de Patentes dos Estados Unidos da América, que enviou carta ao presidente William McKinley, no fim da qual pedia exoneração e extinção do cargo. Com a justificativa: "Tudo o que tinha de ser inventado já foi inventado". Em 1889, isso. Quando ainda hoje, um século depois, inventando coisas - e coisando as já inventadas - o homem não dá o menor sinal de que vai arrefecer.

COISANDO INVENTOS
é uma espécie de "resposta" a INVENTANDO COISAS
(que já foi publicado no Preblog, em junho de 2008).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA

No existir monótono do ser humano, e tornado ainda infeliz pelos projetos não realizados, tudo seria bem mais venturoso se súbito um deus aparecesse. Eu não falo de um deus bíblico, muito poderoso, mas de um deus em carne e osso, não preocupado com a espiritualidade. Apenas capaz de transformar algum sonho em realidade, porque instrumentalizado se achasse para isso. Embora coubesse também ao eleito: abrir a porta, recebê-lo cordialmente (não se desleixando nos detalhes de cada situação) e indicar-lhe o quarto de dormir.
Eis a experiência - inesquecível - vivida por quatro eleitos.

Beto, 23, aficionado por automóveis - "A vida toda eu quis ter um carro, mas cadê a grana para isso? Sou franco. Por diversas vezes, cheguei a pensar em puxar um, sair rodando por aí... Mas, seria uma fria, meu irmão. Chega a polícia, me engaveta e, o que é pior, daí para frente sou um cara marcado. Por isso, meu consolo era imaginar que um dia a coisa ia mudar. E como foi que mudou. No dia em que eu estava folheando a 'Quatro Rodas', me babando todo de um Comodoro 88 com opcionais. Entrou um cara meio parrudo, cabelo curtinho, em minha casa. Todo sujo de graxa, me pediu água para beber e lavar as mãos. Dei-lhe água para uma e outra coisa, e disse-lhe também que sentasse um pouco. O homem era cegonheiro, desses sujeitos que transportam veículos das fábricas para as revendedoras. Na porta tava lá o 'caminhãozinho' que não me deixava mentir. Parara por causa de prego. Como eu sempre guardo em casa uma pinga da boa, indo com o jeitão dele ofereci-lhe uma dose... no capricho. O homem ficou doido. Me disse que nunca havia provado cachaça igual. Aí, mandei ver outra, outra e outra. E ficamos amigos. Pelas tantas, sabendo da minha fissura ele me ofereceu a chave de um Monza, para que eu desse umas voltinhas. Saí no carro, né? E ele ficou em casa bebendo da 'branquinha'. E cada dia eu saía num carro diferente, que o gente boa me facilitava. Desde que não faltasse a 'maldita'. Enquanto ele lá mamava, eu rodava com a minha gata. Oito dias, oito carros, até que a polícia apareceu para estragar... a mando dos patrões dele. Mas não peguei cana, né? Não havia roubado nada. Pois é, deus dormiu lá em casa um... não, oito dias, mas para ver que nem ele é perfeito. Eu tinha que pagar o combustível que botava nos carros."
Tony, 45, bicheiro - "Em verdade, foi uma deusa que dormiu lá em casa. Eu me achava num astral mais baixo que poleiro de pato... Tinha levado o fora duma 'mina', numa circunstância que não interessa contar agora, quando a deusa apareceu. Na graça de uma loura - de cinema, meus queridos - que bateu à minha porta. Perguntando por uma pessoa que eu nem conhecia, e depois pedindo para usar o telefone. Ligou várias vezes, porém, do outro lado ninguém atendia. Aí, entre uma ligação e outra, eu puxei conversa. Depois, preparei-lhe um drinque que ela bebeu. E, como o programa dela havia mixado, topou o meu convite para sair na noite. Fizemos um circuito de bar, restaurante e danceteria, nessa ordem. Ao fim da noite, como pessoas civilizadas, fomos pra cama. Perdi a conta do número de minhas cavalgadas até que o dia amanhecesse. Foi safadeza, daquelas que o garoto aqui via nas revistinhas do Zéfiro... a loura topava. Só houve um senão, já no fim. Quando, apesar do imenso prazer que eu tivera, me dei conta do seguinte fato. Não havia visto, nem uma vez só, sombra de orgasmo em seu rosto, corpo... Era grilo com relação a mim? Dela quis uma explicação, meus queridos. E ela, que já estava de saída, foi, me atirou esta: 'Acaso você é Édipo?'" (*)
Juvenal, 56, leitor inveterado - "Bem, eu sou agnóstico. Mas um dia deus dormiu lá em casa. Na pessoa de um vendedor de enciclopédia que bateu à minha porta, com a proposta de vender uma coleção por um plano especial. Não tem ninguém mais bibliomaníaco que eu, mas, ultimamente, eu vinha me privando do hábito. Sem dinheiro para comprar livros e, por vezes, até o jornal. Os tempos bicudos... Aí, eu disse ao vendedor que desculpe mas não dá... Ele até não insistiu muito. E desabafou que fizera uma rota enorme, achava-se naquele momento longe de casa... Já era noite, e eu entendi aquela conversa mole como um pedido de hospedagem. Então, mandei que ele arriasse os livros num canto da sala, e mostrei-lhe o quarto onde ele podia descansar o corpo afadigado. E, noite adentro, enquanto ele ressonava, fiz meu serviço esperto na enciclopédia. Bendita a hora em que fiz meu curso de leitura dinâmica! De modo que, quando o homem despertou pela manhã, eu já estava no verbete 'zwinglianismo'. Depois disso, voltei à realidade só que mais instruído."
Lucas, 38, ufólogo - "Tenho lido tudo sobre o assunto, participado de inúmeros congressos... A ufologia é uma ciência e os ufos são naves espaciais que transportam seres alienígenas, acredito nisso. No tempo de que disponho, chova ou faça sol, armado de luneta posto-me no terraço de minha casa a perscrutar o céu. Certa vez, no terraço... eu ia até me recolher mais cedo, não estava com o aspecto de que ia aparecer algum ufo... Pois bem, mas surgiu algo que me encheu a vista. Não, eu não tinha bebido nem estava tomado de uma ilusão. No descampado, ao fundo da residência, vi que pousava um disco voador. E dele, minutos após, vi que descia um ser indiscutivelmente extraterrestre. Verde, presumíveis dois metros, a cabeça desproporcional ao corpo e com anteninhas, olhos bovinos, os braços finos, longos, com os dedos rentes ao chão... Caminhava arqueado. Um ufólogo tem de estar preparado para o grande momento, recebi o estranho com naturalidade. E graças ao tradutor de línguas - ele estava equipado de um - foi possível a comunicação verbal, de lá para cá e vice-versa. De maneira que, a noite toda, trocamos informações sobre coisas e fatos da Terra e de Cloros, o planeta dele. Clima, fauna, flora, sistemas de governo, esportes, religiões, Plano Cruzado, de tudo um pouco. Fui interlocutor desse deus, porém não o deixei dormir. E não relaxei em meu papel nem quando amanhecia, com ela já a partir... Porque aproveitei para lhe fazer minha última pergunta, uma curiosidade que eu tinha... Perguntei-lhe: 'Como é que vocês transam sexo, lá?' E ele me respondeu: 'Assim, ao mesmo tempo em que os seus dedos agilmente sacolejavam os lóbulos das minhas orelhas.' Por sinal, fizera isso comigo muitas vezes durante a noite. Antes de ele partir, imaginei fotos, vídeo e tal, mas o habitante de Cloros me proibiu de fazer tais registros. Entretanto, eu tenho como provar esse contato de, digamos, quarto grau. Peço apenas que aguardem nove meses, talvez menos. Que a futura mamãe aqui vai deslumbrar o mundo, ora se vai..."

(*) No blog EntreMentes este item foi publicado com uma nova versão:
Tony, 45, bicheiro - "Em verdade, foi uma deusa que dormiu lá em casa. Eu me achava num astral mais baixo que poleiro de pato... Tinha levado o fora duma 'mina', numa circunstância que não interessa contar agora, quando a deusa apareceu. Na graça de uma loura - de fechar o comércio 24 horas, meus queridos - que bateu à minha porta. Perguntando por uma pessoa que eu nem conhecia, e depois pedindo para usar o telefone. Ligou várias vezes, porém, do outro lado ninguém atendia. Aí, entre uma ligação e outra, eu puxei conversa. Depois, preparei-lhe um drinque que ela bebeu. E, como o programa dela havia mixado, topou o meu convite para sair na noite. Fizemos um circuito de bar, restaurante e danceteria, nessa ordem. Ao fim da noite, como pessoas civilizadas, fomos pra cama. Entorpecido pelo álcool, caí em sono profundo até por volta de meio-dia. E, ao despertar, constatei que a deusa, talvez decepcionada pelo meu apagão, tinha ido embora. No espelho do banheiro, havia deixado escrito a batom um número: 1985. Uma charada que, de imediato, eu não decifrei. Mas um bicheiro experiente como eu devia ter entendido o aviso e mandado 'cotar' o malfadado número. Que foi a milhar do tigre que deu, naquele dia, e me quebrou a banca."

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

UMA IDADE DIFÍCIL

Nasci no cabalístico 6 de 6 de 48 (ano com números equidistantes de 6), mas não me tomem pelo anticristo. (Arreda para lá feioso 666, bem sei que quando o espúrio reino estiver para começar, tu antes mostrarás os sinais.) E esse blablablá numérico, de interesse nenhum para quem lê o tablóide, tem de fato o intuito seguinte. Mostrar, com a implacabilidade dos números, a quem quiser conferir na ponta do lápis, que hei chegado aos 40 anos. Uma idade especialmente difícil.
Sim, eu poderia ter pisado no umbral dos meus 40 anos numa festa entre amigos, família... mas que faço eu? Na data natalícia, refugio-me com a mulher e filho numa cidade potiguar. Mossoró, onde Virgulino não entrou e eu escapo - pelo fator distância inclusive - do "parabenizador-pra-você". Preto no branco, petróleo no sal, raciocínio analógico. Eu não falei que 40 anos seria uma idade especialmente difícil? Agora, quanto ao uísque amigo (a curriola merece), eis minha justificação: devo, não nego, mas pago quando puder.
Na véspera, o mar de Majorlândia fazia pano de fundo à latomia da minha Olivetti portátil. Eu tentava furiosamente um intróito para esta crônica. Nesse sentido, em vão tentei. Mas, da solidão e talvez por reflexionar sobre um "farol do fim do mundo" (Julio Verne), arranquei ideia para um conto pequenino. Apenas uma ideia. A musa que preside as letras ainda não se modernizou. E, até hoje, ao ouvido do poeta, continua soprando palavras, fragmentos de frases... quando já poderia trazer o texto completo num teleprompter. Para, aí, o poeta só copiar.
Alguém que completa anos é um pouco como aquele homem da anedota. A cair de um altíssimo edifício e, enquanto a queda não termina, não obstante o previsível desfecho, a dizer "até aqui tudo bem". Ah, seguramente eu não terei mais catapora, papeira, sarampo alemão, essas mazelas infantis. E bexiga também não terei, que esta foi varrida da face da Terra (e da face de seus moradores) pela medicina moderna. Em compensação, devo me preocupar com o colesterol, os triglicerídios, o ácido úrico... ou, preferivelmente, não devo; apenas com os esforços físicos extenuantes, para os quais (esforços sexuais, à parte) decidi que contrato dublê.
E eis-me aqui, quarentão, a driblar a morte. Como no passado, mas ela (epa!) cada vez mais a "manjar" minhas firulas - para um dia, por inevitável, me derrubar feio no gramado. Assim, não adianta mesmo andar de trancinhas, se tem dia que la está a fim de um rastafári. Nem de não jogar gamão. Até lá, é aproveitar as pequenas alegrias da vida de que falou Hesse. Prazer comedido é prazer dobrado, além de mais em conta. E, quando a morte vier, disto me lembrar: ficarei sem boca para rir, sem olhos para chorar.
Finalmente, aos 40 anos, não tenho vocação para ser Paulo, Paulo, no caminho de Damasco. Nenhuma voz, de fonte mal identificada, tem força bastante para promover mudanças bruscas em minha vida. Não caio do cavalo. E mais: vou continuar adubando (com o estrume do animal) os meus pequenos vícios, a ver se bem no meio deles floresce uma grande virtude. "Eras!" Tudo depende de el prisma con que se mira. Por isso, tem sido e não tem sido uma grande jornada esses 40 anos. Tornei a bailar "La bamba" (de novo nas paradas) e ainda não sei o que é votar para presidente (por que será, meu bom José?).
Pois é, 40 anos. Até aqui tudo bem.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O BINGO DAS PEDRAS FRIAS

Os três comparsas estavam reunidos na casa de pasto do Bucho de Lama. Os três eram Armandinho, Honorato e Claudionor, figuras por demais conhecidas no bairro pelas peças que viviam aprontando. E Bucho de Lama , que com eles parolava, acabara de lhes dar o sinal verde. Na noite de sexta, o grupo pudesse contar com as dependências do restaurante para o evento. Eles não se afastassem, porém, daquilo que tinha sido esquematizado num guardanapo de papel, ali no balcão.
Com um balcão, onze ou doze mesas de fórmica com as respectivas cadeiras, o restaurante nos últimos tempos vinha se despovoando. E, nos fins de semana, oh, dor maior! Ao se constatar que a frequência ao mesmo não passava de uns gatos pingados bebericando no balcão, algum grupo em torno de um violão na mesa embaixo da castanholeira... ("Peraí", restaurante ao ar livre na periferia desta cidade sem um pé de castanhola não existe.) E todos bebendo, bebendo, mas indiferentes aos odores da mão-de-vaca que fervilhava num panelão da cozinha.
O plano consistia do seguinte: os três organizariam o bingo de um peru assado, ficando eles com a renda dos cartões vendidos. E Bucho de Lama, com a renda - que se antevia considerável - das bebidas, dos tira-gostos... Mas, porque o chamassem à cozinha, o proprietário não ouviu o resto da conversa. O capítulo em que os cupinchas planejaram: 1) furtar o peru (comprá-lo, estreitaria bastante a margem de lucro); 2) fraudar o bingo (para que a papação da ave fosse feita por eles, naturalmente). E, daí, a dúvida histórica: acaso tivesse tomado conhecimento de tais nefandas intenções, o velho Bucho teria ainda cedido a casa para a promoção? Seja como for, estás dispensado da peruação, leitor.
O lance de furtar o peru. Encarregar-se-ia do furto o Honorato, mas devidamente alertado para não reincidir em erro anterior. Um erro relacionado com a expropriação de uma galinha do quintal de D. Maju, quando ele então deu bobeira. Por ter deixado, depois que comeu a ave, as penas cadavéricas em seu lixo pessoal, e este, ao ser revolvido pelas mãos indignadas de D. Maju, revelar a seguir o que acontecera. E aí, embora pudesse ainda negar o crime, Honorato, diante de uma conta apresentada pela vetusta senhora, novamente bobear. Ao sair-se com esta: "O quê?! Quinhentos cruzados por aquela galinha velha e dura?!" Quer dizer, sujou.
O lance de fraudar o bingo. Nenhum deles poderia aparecer como promotor do evento, muito menos dizer o bingo. Ia aparecer marmelada explícita. Aí, Armandinho ficou de abordar Amiltão, o dono de um fusca adaptado para divulgações sonoras; Claudionor, de convidar Moleza para mestre de cerimônias do sorteio. O Moleza podia. Integrava a turma, mas não bebia do licor de pera e, por isso, não tinha uma imagem desgastada perante o grande público. Agora, como seria a burla. Um pouco antes de ser chamado o bingo, um grupo muito especial de pedras se submeteria a um processo de resfriamento num depósito de isopor com gelo. Exatamente as pedras que, quando fossem retiradas do saco pelos dedos termossensíveis do Moleza, fariam bater um cartão também muito especial - em poder da trinca.
E chega a sexta-feira. Com o velho Bucho a correr de uma mesa para outra, bamboleando o grande e mole abdome (que justificava o apelido). A limpar, a todo instante, as entradas da fronte (ainda não era calvo) de um farto suor, resultante este do grande trabalho que o movimento da casa estava a exigir dele. Enquanto, no palco improvisado, através de um sistema de som (do tempo em que a casa oferecia seresta), Moleza ia dando o recado. De raro em raro, sacando uma pedra que não tinha nada a ver, mas só... para não dar na vista. A seu lado, à contemplação de todos, e envolto em papel celofane vermelho, achava-se o assado e por suposto bem temperado peru.
De olho no prêmio, a trinca marcava o cartão. Sob a copa da castanholeira, numa mesa já abarrotada de cascos da cerveja consumida. E, ainda, a fazer gracinhas do tipo:
- Balança o saco, pô.
- Ei, esse não...
E riam-se dos chistes proferidos. Até que souberam de um fato pouco animador: o Amiltão recém se mandara depois de embolsar o apurado com a venda dos cartões. O estipêndio da Amiltão Divulgadora, deixara recibo. E, agora, Armandinho, Honorato e Claudionor? Na pindaíba em que se achavam, era tentar junto ao velho Bucho a "pendura" de mais uma cervejada - mas, isso, só depois. Porque o cartão, que estava prestes a ser batido, iria certamente lhes dar ensejo a uma grande "deglu-glutição".
Era apenas o Moleza pegar a última pedra fria, e pronto! Mas, diabos, lá estava ele a sacar toda uma sequência de números que não constavam do cartão. E, ainda, a desperdiçar o tempo com derivações: "22, dois patinhos na lagoa... 1, ronco do porco... 33, idade de Cristo... 90, nas ventas... 44, quaquaquá..." Tudo bem que se quebre a monotonia do sorteio, mas desafiar a Termodinâmica, com suas leis implacáveis, é que não! E, como exemplar lição, ofereça-se à vista de todos o caso vertente, em cujo final se deu a" melódia". Assim que o Moleza gritou: "18, dos outros..."
Bateu o cartão J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.