terça-feira, 17 de novembro de 2009

TUDO SE TRANSFORMA

Sr Editor:
Numa de suas crônicas, andou Luis Fernando Veríssimo preocupado com o que os adesivos de para-brisas dizem, bem como com as situações esquisitas que eles criam para os donos dos automóveis. Como no caso de um cidadão que foi visto a dirigir um carro, em cujo vidro traseiro se lia: "Fofinho". Entretanto, não condizendo o teor do adesivo com a aparência de quem estava ao volante. Um cidadão grave, obviamente não fofo. E que se sujeitava ao vexame apenas para não desagradar algum filho que gostava da curtição. Para, no remate de sua crônica, concluir que... "as cidades estavam cheias deles. Os falsos fofinhos."
"Veja" acertou ao tomar o mestre Luis Fernando como colaborador da revista. Só que - para o azar de seu alunado de humor - o superlativo Veríssimo tem uma pena, dessas de esgotar o assunto. E apenado seja o que o retome depois que o insuperável mestre gracejou! A não ser... a não ser que um fato interessante surja, adubando o assunto para novas reflexões. A exemplo do que aconteceu em Fortaleza, nos meses de outubro e novembro de 88: um ano que terminou (para o olvido da Diaethria meridionalis, a borboleta-propaganda da Mesbla). Veículos veiculando (epa!) através de adesivos nos para-brisas este comunicado: "Cambeba, não!".
O tipo de mensagem que me deixou encucado e os leitores saberão o porquê.
É que eu jamais vira uma manifestação organizada de repúdio a um bairro! E, agravando, repudiavam o bairro em que, há alguns meses, vinha eu morando. "Cambeba, não!". Como se eles pudessem fazer, por ser uma parte ruim, a excisão do bairro do resto da cidade. E não era bairrismo deslavado, não. Mas bem que o antigo Parque Iracema estava a merecer um melhor tratamento da parte desses senhores. Ainda mais que, longe da Aldeota, o rechaçado Cambeba não passava de um bairro em via de desenvolvimento.
Súbito, residir no lugar em questão tinha virado uma rebordosa. Cá se amargava a má administração municipal, como no restante da cidade, e cá se tornava o alvo da indignação coletiva. Ah, me pareceu uma sorte cruel, das que se inscrevem no figurino queda - coice... Por isso, num primeiro instante, me revoltei. Mas, a ter de ficar na "problemática", eu logo busquei a "solucionática" (de que falou Dadá Maravilha). Quando apreciei a ideia de sugerir, a cada cidadão que por mim passasse (cujo sentimento anti-Cambeba estivesse explicitado no para-brisa do carro), um outra opção de protesto. Mudar para "Camberra, não!", "Camboja, não!" ou mesmo para "Camboriú, não!". Nomes de cidades distantes, países longínquos... que não possuíam colônias expressivas em Fortaleza.
Depois, imaginei trocar o Cambeba da expressão por cambará, cambuci, camboatã ou por qualquer outro nome de árvore, as opções eram tantas... Mas, diabos, o que tinha a ver a maltratada flora nacional com esse corrosivo sentimento anti-Cambeba? E também imaginei que mudassem para cambaxirra (ave), cambaleão (variante de camaleão), cambucu (peixe)... Quer dizer, qualquer uma dessas palavras mais o indefectível "não!". No entanto, por depreciar a nossa fauna, seriam providências desacertadas. Nesses tempos em que avulta o ambientalismo...
A propósito, cambeba (ou cambeva) é palavra oriunda do tupi e designa várias espécies de peixes teleósteos.
Pois bem, descartada a possibilidade de empregar os topônimos, os nomes de árvores e animais (pelos motivos já expostos), com o que mais eu poderia contar? Com o que mais... no sentido de ganhar o manifestante anti-Cambeba para a causa do bairro ou, quando nada, de lograr o empate com um "então, esquece"? Algo arrasador, que convencesse, era do que eu precisava. E foi que me brotou esta expressão alternativa: "Cambalacho, não!". A ser usada pelo homem de virtudes, o que é contra a toda e qualquer tramoia. Pelos cambalacheiros, não! Nisso, vi passar um carro com uma vistosa tira de "Cambada, não!".
E outro carro, outro, outro e... outro. Eram os "cambebistas" dando o troco aos, digamos, "cambadistas", coisas de uma refrega eleitoral.
X X X X X
No fim, venceu o candidato apoiado pelo Cambeba, entendendo-se aqui o governo estadual e não o bairro que o sedia. Mesmo porque o bairro votou muito dividido, mas não fazendo, certamente, no nome apresentado pela senhora prefeita. Como fez toda a mui leal e heroica cidade de Fortaleza, e que assim julgou a sua desastrada administração. Quanto a mim, para não voltar à vaca fria que foi para o brejo, evito me alongar em comentários que tais. Agora que a nossa cidade tem novo alcaide e a hora é de reconstrução, pois. Fala mais alto o nome desta cidade, e que cada fortalezense colabore no que for possível.
Um "cambadista" mais renitente, porém, poderá levantar uma questão. "Mas, o que faço com o meu adesivo de 'Cambeba, não!'?" Ora, será bem simples a solução. Lei de Lavoisier nele! O "cambadista" salve da tira a parte ainda útil e que estivera eclipsada pelo calor das paixões políticas. Reduzindo-a, assim, para... "beba, não!". Recoloque-a, em seguida, no para-brisa do automóvel. E passe a circular com o carro perfeitamente integrado na campanha em prol da sobriedade.

Publicado em 22/02/89, na seção "Cartas", do jornal "Diário do Nordeste".

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