Érico e Paulo Gurgel (1)
Sempre que possível eu evitava interrompê-lo em sua santa leitura (3). Ao contrário do que fazia minha mãe, a matraquear um assunto atrás do outro, sem ao menos se tocar para a inconveniência da hora. E bem feito porque ele sempre a desouvia!
Ainda pouco me entendia por gente, mas recordo também que aquilo me perturbava. Meu pai dedicar parte de seu tempo a um punhado de folhas impressas, ainda por cima capazes de manchar o sofá novo, como se queixava minha mãe. E, mais: ao fazer aquilo ele se comportava, para os meus tenros olhos, feito um estranho. Um ser sob alguma ação hipnótica porque, naquelas horas, podia o teto vir abaixo. Que o velho, certamente, não ia levantar a vista do seu jornal. Nem para apreciar o novo teto solar com que a casa acabara de ser contemplada.
Intrigava-me saber que força misteriosa possuía o jornal. A ponto de um ser humano, muita vez de forte personalidade, entregar-se a ele como um escravo. Com o tempo, porém, identifiquei existir no ser humano uma especial fragilidade, que é a carência orgânica de informação. Exatamente o que o jornal tem de sobra. E que, para que aconteça a consentida dominação jornal-leitor, não hesita em nos passar diariamente. O seu produto informação, sob as suas mais diversas apresentações: editorial, reportagens, colunismo social, charges, publicidade etc.
Uma vez sonhei com papai sendo levado, contra a vontade, a uma redação de jornal. E o desfecho dessa experiência onírica, se alguém quer saber, foi a redação ficar só escombros. Porque papai, qual um bíblico Sansão (4), no fim derrubou as colunas (5).
No entanto, nem tudo acontece como a gente sonha. E, sem haver sofrido arranhões nesse meu sonhar, papai continuou... vida boa não quer pressa. A ler o seu jornalzinho no sofá (por vezes, à mesa da sala de jantar), apenas lhe faltando um cachimbo na boca para compor a cena clássica. E, quando me formei em "doutor do ABC", papai me deu a ler um suplemento infantil do jornal. Que eu li com grande satisfação, bem na frente de um muito enciumado aparelho de televisão.
Pronto, naquele momento estava inaugurado o meu novo hábito!
É um hábito que me abre diariamente as fronteiras do conhecimento. Graças a ele, não mais permanecem sem respostas as minhas inúmeras perguntas. Exceto estas: quem somos? de onde viemos? o que aqui fazemos? aonde vamos? Por mais que eu me esbalde nessas difíceis perguntas, Sísifo é testemunha! Talvez porque, nas chamadas questões existenciais, não baste a gente só extrapolar os limites do suplemento infantil, daí o insucesso verificado. No mais, jornal é massa. Enquanto o dinheiro do velho não se manifesta, colecioná-lo com afinco vale uma enciclopédia.
Brincadeira! O fato é que, na aurora da minha vida, ao me tornar um leitor assíduo de jornal, posso ambicionar a ser, quando adulto, um grande escritor. Com um estilo apurado e desenvolto (em que "aurora da minha vida" e expressões que tais não tenham vez). E uma menção honrosa que agora me deem, eu saberei que estou no caminho certo. Ah, imaginem então se eu ganho esse prêmio maior (6) que está em jogo!... Aos oito anos de idade e já haver obtido o que papai não conseguiu nunca! Com todos esses anos de cupões recortados dos jornais e por ele enviados para sorteios que não lhe sorriem jamais!...
(1) filho e pai, respectivamente, reunidos na primeira psicografia intervivos do mundo; (2) tratamento carinhoso, porém em desacordo com a idade paterna; (3) apesar do que possa parecer o título não foi escolhido por Robin, que faz dupla dinâmica com Batman; (4) sem Dalila; (5) as colunas do prédio, bem entendido; (6) viagem a Disney, com direito a levar acompanhante, oferecido pela Associação Nacional de Jornais.
Publicado em 26/06/94 no Jornal do Leitor de O Povo.
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