sexta-feira, 28 de março de 2008

OS TÍQUETES DO TEMPO

Com o propósito de reduzir os sofrimentos causados pelo estado de penúria em que viviam alguns segmentos da sociedade - aposentados, desempregados, deficientes mentais, vagabundos etc. - a prefeitura de Paris decidiu instituir a "carta do tempo". Uma forma legal de restringir o tempo dessas criaturas pouco ou nada produtivas e, com isso, de lhes abrandar o presumivelmente infeliz existir. De maneira que, quanto mais inútil e sofrida era a criatura, menor era a quota de dias em que ela deveria existir no mês. Não esquecendo a prefeitura de Paris, para o controle da nova situação, de mandar imprimir os tíquetes ou cupons do tempo (embora os distribuísse aos interessados de um modo nem sempre justo).
Apenas o cidadão útil e plenamente feliz é que tinha direito a todos os cupons do mês.
Entretanto, aquilo que parecia uma boa medida da prefeitura, em pouco tempo, ensejou todo tipo de corrupção. Porque, por exemplo, os miseráveis passaram a vender os seus tíquetes do tempo aos mais abonados, ficando estes vivos-permanentes - aliás, uma condição já assegurada na lei - e, ainda, a usufruírem meses de até sessenta dias. E também porque possibilitou que, em toda Paris, acontecessem as mais difíceis cenas. Como a da esposa infiel e seu amante que, de tanto turibularem no altar de Vênus... pimba, esqueceram o nihil! E somente retornaram quando o marido, que chegara um pouco antes do limbo existencial, encontrava-se já na alcova. De nada valendo argumentar que os dois não se conheciam (mesmo porque estavam despidos na cama).
Calma aí, leitores. Apenas dei guarida nestas linhas à idéia central de um conto de Marcel Aymé. Mas fico a imaginar se, num desses casos em que a vida imita a ficção, a coisa acontecesse no Brasil.
Logo de cara, o Congresso Nacional daria um jeito de não ser alcançado pelo espírito restritivo da lei. (Apesar de muitos dos nossos congressistas não passarem de uns inúteis, mal se sabendo como houve quorum para votar a lei.) Idem para a Presidência da República, Ministérios e altos escalões da Administração Direta, Fundações, Autarquias e Empresas de Economia Mista...
E idem para a judicatura federal. Após o que outras tantas leis estaduais e municipais repetiriam o privilégio para as autoridades destas duas últimas esferas do Poder.
Enquanto isso, o brasileiro comum - com o rendimento mensal de uma a três salários mínimos - viveria, quando muito, uma semana por mês. Ora, já que ele não tem uma renda digna, por conseguinte, não viva além do que o bolso permita, dirão. E explicarão que, assim, o brasileiro seria poupado das vicisssitudes em uma grande parte do mês. Mas, para não acontecer o que se verificou no conto de Marcel Aymé, será preciso de que a lei o proíba de vender esse seu apoucado direito, claro. Ou, do jeito que a política salarial vai, poderá o brasileiro ser compelido a vender seis dos sete tíquetes para viver... "aquele um", razoavelmente. Que nem a efemérida.
Pois, de uma forma inconfundível não proibindo a lei, os ricos e os poderosos, através da compra de cupons, ficariam a viver mês em dobro, em triplo... E ainda se lamentar de não poder usar o mesmo expediente, em se tratando de adiar a morte verdadeira. Com a troca dos cupons do tempo, eis a chance de o pobre ir morar numa mansão... dos mortos, anunciariam (sem o detalhe constrangedor). Enquanto o astucioso rico tentaria, enfim, alcançar a imortalidade. A propósito, os imortais da Academia Brasileira de Letras estariam fora dos rigores da lei. Ainda que ocioso, o acadêmico teria direito aos trinta tíquetes do mês. Não faria qualquer sentido uma lei que lhe afetasse a imortalidade.
Outrossim, a lei contribuiria para desafogar o sistema carcerário que hoje esta aí, botando gente pelo ladrão. No pressuposto de que, quanto mais apenado estiver, menor será o número de tíquetes que o preso vai receber para o mês. Indo do meio tíquete do tempo para o homicida perigoso até o talonário quase completo dos cupons para o enrolador da prestação do Baú. Sim, é inegável que disso tudo resultaria uma enorme economia na manutenção dos presídios. E, de quebra, acabaria com a razão de existir do Amaral Neto (a cada mês, o preso viver meio dia... é quase uma pena de morte). Agora, a pena capital só seria aplicada em um tipo de criminoso: o falsificador dos tíquetes do tempo. Isso, em sua autodefesa uma lei não deve ser frouxa!
E bem feito! Porque divido a profissão de médico com a de escritor e porque, por causa deste segundo e mal compreendido ofício, as autoridades me subtraiam uns quatro ou cinco cupons dos que tenho direito no mês. Então, que sejam aos domingos os dias em que eu vou soçobrar no não-ser. Que assim me livro, de uma vez e para sempre, das ressacas física e moral das carraspanas dos sábados.

domingo, 16 de março de 2008

DA ARTE DE ESCREVER CARTAS

1. CARTA AO LÚCIO OU A PAZ DE CRIANÇA DORMINDO
Habitante da Caio Cid, fui surpreendido pela notícia de que você, Lúcio Brasileiro, o morador mais ilustre desta rua, poderia mudar de endereço. E tudo porque, ultimamente, o cronista amigo vem tendo sérias dificuldades para conciliar o sono. Por conta de uma vizinhança recém-instalada que, entre os membros da família, inclui a presença de um bebê choramingas. Do tipo que, obviamente, ignora onde acaba o "delezinho" direito de chorar e começa o "seuzão" direito de dormir.
Bem, apesar de existir em minha casa uma criança da categoria descrita, prima facie livro a cara da bichinha. Por não atinar como o seu choro, ainda que asas do vento o carreguem, possa atravessar quarteirões até chegar ao 373 da Caio Cid. A guriazinha, acredite, tem choro apenas para acordar a mãe, o pai em segunda instância, e somente. Agora, que o choro é reiterativo "pacas", aí é outra conversa. Mas, que me faz tombar às mãos um tempo adicional, isso faz - e esta carta é uma prova de como ele está sendo utilizado!
Alguém, de um modo absolutamente ferino, já definiu o bebê como um ser com uma buzina em cima e um cano de escapamento embaixo. Quanto à buzina, haja engenho e arte para encontrar o respectivo modus desligandi. Mamadeira, troca de fraldas, chupeta, espasmo-silidron, canções de ninar... E, como a coisa é mesmo aleatória, o jeito é usar o processo das tentativas. Que só chega a um bom resultado quando a criança já chorou um tempão.
Oscar Wilde, que tanto apreciamos, dormia mal (bebê de terceiros na jogada?) e, por conta disso, achava que não devia pagar imposto predial. Eis a forma desabrida com que ele enfrentou o fisco, quando este foi bater á sua porta:
- Imposto? Pagar imposto por quê?
E a réplica do funcionário do fisco, seguida da tréplica do escritor:
- Não é proprietário, Sr. Wilde? Não é aqui que mora? Não é aqui que dorme?
- Sim, mas eu durmo tão mal.
Desanuviados, voltemos agora ao pai do homem, isto é, à criança. Ela chora porque tem fome, sede, cólica, fralda molhada, terror noturno e até... manha. E, como nem tudo a puericultura explica, no choro à brasileira, pode estar a ocorrer entre as causas mais uma, de ordem econômica. A pré-cognição, por parte da criança, de que já nasceu devendo oitocentos dólares aos banqueiros internacionais. Em estado de dívida original, portanto.
Um segredo que trago do berço, amigo Lúcio, cuja revelação em sendo feita agora espero não comprometer a nossa amizade. Eu fui, nos idos de 48, um aficionado do choro. A ponto de não permitir, por um ano inteiro, minha santa mãezinha usar do direito ao sono reparador. Depois de mim, a genitora teve mais doze rebentos, mas vá, pergunte a ela quem na prole mais embalo reivindicou. Valendo inclusive comparar com o ano de 1957, quando a safra filial foi em dobro.
Diria o preceptor de Cândido, o Otimista, que alguém está sempre viver no melhor dos mundos possíveis. Diante do que o destino ainda pode reservar para o ser humano, é óbvio. Um que conheço, por exemplo, discordava de tal assertiva. E, experimenta aqui, experimenta acolá, acabou fixando residência entre uns adeptos do grito primal e uma banda de rock pauleira. Fundos correspondentes com um galpão da Prece Poderosa. Além de uma gataria que, noite alta, céu risonho, teima em promover serenata no telhado da casa dele.
Oh, se eu o apavorei com o último relato, então me desculpe. O que eu sinceramente desejo é que você continue conferindo leveza à Caio Cid. Com a evolução natural dos fatos encarregando-se do resto.
Muita paz de criança dormindo, Lúcio.

2. CARTA AO NENO OU A CONVENÇÃO DA FAMÍLIA SILVA
Dias atrás, você, Neno, formulou esta pergunta: "Onde será realizada a Convenção da Família Silva?" De fato, no tocante à escolha de um local adequado, face ao gigantismo da família não há muitas opções. E se é que a convenção vai realmente ser realizada, coisa que eu ponho em grande dúvida. Pois, na qualidade de membro nato desta família, não fui até o momento avisado a respeito do inaudito encontro. Nem qualquer Silva que eu conheça.
Mas... vamos e venhamos que a convenção possa acontecer. No Maracanã, Praça da Apoteose, Parque do Anhembi, em qualquer desses locais... Ora, é piada! O Maracanã, por exemplo, só dá para abrigar - mal e mal - a "Convenção das Ovelhas Negras da Família Silva". E não me parece boa idéia um encontro que prestigie apenas o segmento recessivo da família. Por ser este parte que não representa bem o todo.
Pois é, há mais Silva no país do que supõe a vã demografia, ó Neno. Mesmo não contando os ricos, os doidos e os mortos da Silva, porque aí já passa a ser exagero. Tenho a certeza de que Deus, quando andou animando Abraão com aquela história de que o patriarca hebreu ia deixar uma grande descendência, era na família Silva que Ele estava pensando. E, agora, está aí a mega-família ajudando o Brasil a crescer... um Uruguai a cada ano. Em termos populacionais, bem entendido.
Em nosso país, nenhum programa de controle populacional funciona sem a adesão da família Silva.
E, ainda, sobre a convenção: mais difícil do que "onde?" é ... "como?". Alguém aí não vai querer reunir toda a família Silva... com um único silvo. Antes, deve existir toda uma logística de planejamento e realização, que é de assustar a quem se meta a tanto. Programação, cartazes, divulgação através da mídia, convites, passagens aéreas, reservas em hotéis, correspondências pastas, crachás... Uma convenção não é, como direi, uma mera convenção. É também a oportunidade de gente conhecer gente, de gente trocar experiência com gente e, no caso da família em questão, de aprender a não fazer... gente.
Embora a convenção, num primeiro momento, possa favorecer o contrário. Por conta de sua programação social.
É... parafraseando Huxley, eu diria que a family is alone with its problem. E que se o problema é fazer uma convenção a família Silva arranjou o seu. Por isso, talvez seja o caso de comprar um pacote completo da família Smith que, em passado recente, fez a sua convenção nos Estados Unidos. Em vez de cair no erro da família Souza Leão que, tentando realizar o seu encontro, acabou - mercê da pouca experiência no assunto - dando o maior bolo.
Fundo Musical - Devo dizer que, enquanto escrevi estas considerações, houve um. O antigo sucesso musical "Menina da Ladeira", do compositor João Só. Que, a propósito, integra uma família, a qual não tem grandes dificuldades para realizar a sua convenção. A menos que Só seja só... um nome artístico, e João realmente pertença à família Souza.

Publicado no DN - CARTAS em 08/02/90

sexta-feira, 7 de março de 2008

O AZAR DE BALTASAR

Acostumado a deitar a mão nas gangues de pichadores da cidade, o inspetor Pierre G. desta vez havia conseguido capturar "algo" novo. Novo, por não constar da lista dos contraventores que ele conhecia, bem entendido. Pois, a julgar pelos sinais denunciadores da idade, tratava-se de alguém avançado em anos. Olhando-lhe o semblante, a barba branca, a veste talar, as rústicas sandálias, Pierre G. admitiu também que ele, o detido para averigüações, tinha o aspecto messiânico. Em nada lembrando fisicamente os contumazes praticantes da grafitagem, muitos deles ainda na menoridade.
No interrogatório não respondera a nenhuma das perguntas. Mesmo assim, pego com uma lata de spray na mão - a arma provável do crime - havia fortes indícios de ser ele o pichador que vinha sendo procurado. Como o responsável pelos transtornos acontecidos no banquete de Baltasar, o manda-chuva da cidade. E a polícia técnica, nesse momento examinando o material apreendido, encarregar-se-ia de fazer a confirmação. Entrementes, o danado do velho bem que podia facilitar as coisas confessando a autoria. Mas qual! Permaneceu em silêncio durante todo o interrogatório, para a irritação do inspetor que não via a hora de ter o caso solucionado. É nisso que dá conceder ao preso o direito de... ficar calado.
Ainda decidido a interpelar o velho um pouco mais, o inspetor Pierre G. entrou na cela. Encontrando-o deitado no "colchão de molas de cimento", o ar de nenhum interesse com o que se passava ao redor. Mudou de idéia. E, lembrando-se das pressões que vinha recebendo para resolver o caso, a própria carreira em jogo, o inspetor sentiu-se enervado. Lá ia pode penetrar o pensamento do velho arredio!... Entretanto, se fora ele o causador da marotice, não restava então dúvida de que se tratava de um peixe graúdo da grafitagem. Quem conhece a mansão de Baltasar sabe da sua impenetrabilidade a estranhos. Muro alto com arame farpado, vigilância armada, alarmes eletrônicos, cães e gansos... Contudo, o velho... sim, devia ter sido ele, conseguira entrar, escrever na parede do salão de festa uma mensagem críptica (que causara grande apreeensão em Baltasar). E, em seguida, retirar-se sem ser visto.
É difícil entender o que se passa na cabeça de um grafiteiro. O sujeito perde as noites de sono, arriscando a própria pele nesse... digamos, alpinismo dos pobres, que é escalar muros, prédios e monumentos. Aí, sob a debilóide alegação de que está fazendo um protesto anti-burguês, grafita umas garatujas insondáveis e de mau gosto. Sem falar, naturalmente, do que ele ainda se priva para poder adquirir o seu insumo básico, a lata de spray. Ao fim de tudo, para não passar de um ególatra, um rebelde sem causa, um reles poluidor urbano. E que, por isso, além da "cialipo" (polícia, em gíria de grafiteiro) no encalço, tem merecidamente a repulsa da comunidade.
Nesse refletir, enquanto contemplava o provecto senhor em seu mutismo, mas do qual poderia sair para lançar um anátema (Pierre G. pensou em tal hipótese), aconteceu de o inspetor chegar à seguinte conclusão: daquele mato não ia sair coelho. O coelho, aqui entendido, como a revelação do motivo que levara o velho a grafitar na parede de Baltasar. A despeito do grande risco corrido... ou será que ele, em nenhum momento, sabia disso? Outro ponto importante, já que o detido não colaborava: qual era mesmo o significado daquelas estranhas palavras que tiraram Baltasar da serenidade?
Então, por achar que elas soariam de modo agradável, o inspetor Pierre G., à saída da cela, passou a pronunciá-las:
- Mane, Tecel, Fares.

*****


Transcorreu algum tempo para o inspetor Pierre G. decifrar o enigma. Já Baltasar se encontrava reduzido a uma pessoa sem importância, por quebra em seus negócios e mudanças no jogo político. E o velho, após uma misteriosa evasão, com o paradeiro ignorado e com tudo levando a crer que não mais tornara à pichação. No entanto, o significado tão procurado daquela enigmática mensagem estivera, o tempo todo, em lugar alcançável (Livro de Daniel, capítulo 5, versículos 25 - 28).