Com o propósito de reduzir os sofrimentos causados pelo estado de penúria em que viviam alguns segmentos da sociedade - aposentados, desempregados, deficientes mentais, vagabundos etc. - a prefeitura de Paris decidiu instituir a "carta do tempo". Uma forma legal de restringir o tempo dessas criaturas pouco ou nada produtivas e, com isso, de lhes abrandar o presumivelmente infeliz existir. De maneira que, quanto mais inútil e sofrida era a criatura, menor era a quota de dias em que ela deveria existir no mês. Não esquecendo a prefeitura de Paris, para o controle da nova situação, de mandar imprimir os tíquetes ou cupons do tempo (embora os distribuísse aos interessados de um modo nem sempre justo).
Apenas o cidadão útil e plenamente feliz é que tinha direito a todos os cupons do mês.
Entretanto, aquilo que parecia uma boa medida da prefeitura, em pouco tempo, ensejou todo tipo de corrupção. Porque, por exemplo, os miseráveis passaram a vender os seus tíquetes do tempo aos mais abonados, ficando estes vivos-permanentes - aliás, uma condição já assegurada na lei - e, ainda, a usufruírem meses de até sessenta dias. E também porque possibilitou que, em toda Paris, acontecessem as mais difíceis cenas. Como a da esposa infiel e seu amante que, de tanto turibularem no altar de Vênus... pimba, esqueceram o nihil! E somente retornaram quando o marido, que chegara um pouco antes do limbo existencial, encontrava-se já na alcova. De nada valendo argumentar que os dois não se conheciam (mesmo porque estavam despidos na cama).
Calma aí, leitores. Apenas dei guarida nestas linhas à idéia central de um conto de Marcel Aymé. Mas fico a imaginar se, num desses casos em que a vida imita a ficção, a coisa acontecesse no Brasil.
Logo de cara, o Congresso Nacional daria um jeito de não ser alcançado pelo espírito restritivo da lei. (Apesar de muitos dos nossos congressistas não passarem de uns inúteis, mal se sabendo como houve quorum para votar a lei.) Idem para a Presidência da República, Ministérios e altos escalões da Administração Direta, Fundações, Autarquias e Empresas de Economia Mista...
E idem para a judicatura federal. Após o que outras tantas leis estaduais e municipais repetiriam o privilégio para as autoridades destas duas últimas esferas do Poder.
Enquanto isso, o brasileiro comum - com o rendimento mensal de uma a três salários mínimos - viveria, quando muito, uma semana por mês. Ora, já que ele não tem uma renda digna, por conseguinte, não viva além do que o bolso permita, dirão. E explicarão que, assim, o brasileiro seria poupado das vicisssitudes em uma grande parte do mês. Mas, para não acontecer o que se verificou no conto de Marcel Aymé, será preciso de que a lei o proíba de vender esse seu apoucado direito, claro. Ou, do jeito que a política salarial vai, poderá o brasileiro ser compelido a vender seis dos sete tíquetes para viver... "aquele um", razoavelmente. Que nem a efemérida.
Pois, de uma forma inconfundível não proibindo a lei, os ricos e os poderosos, através da compra de cupons, ficariam a viver mês em dobro, em triplo... E ainda se lamentar de não poder usar o mesmo expediente, em se tratando de adiar a morte verdadeira. Com a troca dos cupons do tempo, eis a chance de o pobre ir morar numa mansão... dos mortos, anunciariam (sem o detalhe constrangedor). Enquanto o astucioso rico tentaria, enfim, alcançar a imortalidade. A propósito, os imortais da Academia Brasileira de Letras estariam fora dos rigores da lei. Ainda que ocioso, o acadêmico teria direito aos trinta tíquetes do mês. Não faria qualquer sentido uma lei que lhe afetasse a imortalidade.
Outrossim, a lei contribuiria para desafogar o sistema carcerário que hoje esta aí, botando gente pelo ladrão. No pressuposto de que, quanto mais apenado estiver, menor será o número de tíquetes que o preso vai receber para o mês. Indo do meio tíquete do tempo para o homicida perigoso até o talonário quase completo dos cupons para o enrolador da prestação do Baú. Sim, é inegável que disso tudo resultaria uma enorme economia na manutenção dos presídios. E, de quebra, acabaria com a razão de existir do Amaral Neto (a cada mês, o preso viver meio dia... é quase uma pena de morte). Agora, a pena capital só seria aplicada em um tipo de criminoso: o falsificador dos tíquetes do tempo. Isso, em sua autodefesa uma lei não deve ser frouxa!
E bem feito! Porque divido a profissão de médico com a de escritor e porque, por causa deste segundo e mal compreendido ofício, as autoridades me subtraiam uns quatro ou cinco cupons dos que tenho direito no mês. Então, que sejam aos domingos os dias em que eu vou soçobrar no não-ser. Que assim me livro, de uma vez e para sempre, das ressacas física e moral das carraspanas dos sábados.
sexta-feira, 28 de março de 2008
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