domingo, 16 de março de 2008

DA ARTE DE ESCREVER CARTAS

1. CARTA AO LÚCIO OU A PAZ DE CRIANÇA DORMINDO
Habitante da Caio Cid, fui surpreendido pela notícia de que você, Lúcio Brasileiro, o morador mais ilustre desta rua, poderia mudar de endereço. E tudo porque, ultimamente, o cronista amigo vem tendo sérias dificuldades para conciliar o sono. Por conta de uma vizinhança recém-instalada que, entre os membros da família, inclui a presença de um bebê choramingas. Do tipo que, obviamente, ignora onde acaba o "delezinho" direito de chorar e começa o "seuzão" direito de dormir.
Bem, apesar de existir em minha casa uma criança da categoria descrita, prima facie livro a cara da bichinha. Por não atinar como o seu choro, ainda que asas do vento o carreguem, possa atravessar quarteirões até chegar ao 373 da Caio Cid. A guriazinha, acredite, tem choro apenas para acordar a mãe, o pai em segunda instância, e somente. Agora, que o choro é reiterativo "pacas", aí é outra conversa. Mas, que me faz tombar às mãos um tempo adicional, isso faz - e esta carta é uma prova de como ele está sendo utilizado!
Alguém, de um modo absolutamente ferino, já definiu o bebê como um ser com uma buzina em cima e um cano de escapamento embaixo. Quanto à buzina, haja engenho e arte para encontrar o respectivo modus desligandi. Mamadeira, troca de fraldas, chupeta, espasmo-silidron, canções de ninar... E, como a coisa é mesmo aleatória, o jeito é usar o processo das tentativas. Que só chega a um bom resultado quando a criança já chorou um tempão.
Oscar Wilde, que tanto apreciamos, dormia mal (bebê de terceiros na jogada?) e, por conta disso, achava que não devia pagar imposto predial. Eis a forma desabrida com que ele enfrentou o fisco, quando este foi bater á sua porta:
- Imposto? Pagar imposto por quê?
E a réplica do funcionário do fisco, seguida da tréplica do escritor:
- Não é proprietário, Sr. Wilde? Não é aqui que mora? Não é aqui que dorme?
- Sim, mas eu durmo tão mal.
Desanuviados, voltemos agora ao pai do homem, isto é, à criança. Ela chora porque tem fome, sede, cólica, fralda molhada, terror noturno e até... manha. E, como nem tudo a puericultura explica, no choro à brasileira, pode estar a ocorrer entre as causas mais uma, de ordem econômica. A pré-cognição, por parte da criança, de que já nasceu devendo oitocentos dólares aos banqueiros internacionais. Em estado de dívida original, portanto.
Um segredo que trago do berço, amigo Lúcio, cuja revelação em sendo feita agora espero não comprometer a nossa amizade. Eu fui, nos idos de 48, um aficionado do choro. A ponto de não permitir, por um ano inteiro, minha santa mãezinha usar do direito ao sono reparador. Depois de mim, a genitora teve mais doze rebentos, mas vá, pergunte a ela quem na prole mais embalo reivindicou. Valendo inclusive comparar com o ano de 1957, quando a safra filial foi em dobro.
Diria o preceptor de Cândido, o Otimista, que alguém está sempre viver no melhor dos mundos possíveis. Diante do que o destino ainda pode reservar para o ser humano, é óbvio. Um que conheço, por exemplo, discordava de tal assertiva. E, experimenta aqui, experimenta acolá, acabou fixando residência entre uns adeptos do grito primal e uma banda de rock pauleira. Fundos correspondentes com um galpão da Prece Poderosa. Além de uma gataria que, noite alta, céu risonho, teima em promover serenata no telhado da casa dele.
Oh, se eu o apavorei com o último relato, então me desculpe. O que eu sinceramente desejo é que você continue conferindo leveza à Caio Cid. Com a evolução natural dos fatos encarregando-se do resto.
Muita paz de criança dormindo, Lúcio.

2. CARTA AO NENO OU A CONVENÇÃO DA FAMÍLIA SILVA
Dias atrás, você, Neno, formulou esta pergunta: "Onde será realizada a Convenção da Família Silva?" De fato, no tocante à escolha de um local adequado, face ao gigantismo da família não há muitas opções. E se é que a convenção vai realmente ser realizada, coisa que eu ponho em grande dúvida. Pois, na qualidade de membro nato desta família, não fui até o momento avisado a respeito do inaudito encontro. Nem qualquer Silva que eu conheça.
Mas... vamos e venhamos que a convenção possa acontecer. No Maracanã, Praça da Apoteose, Parque do Anhembi, em qualquer desses locais... Ora, é piada! O Maracanã, por exemplo, só dá para abrigar - mal e mal - a "Convenção das Ovelhas Negras da Família Silva". E não me parece boa idéia um encontro que prestigie apenas o segmento recessivo da família. Por ser este parte que não representa bem o todo.
Pois é, há mais Silva no país do que supõe a vã demografia, ó Neno. Mesmo não contando os ricos, os doidos e os mortos da Silva, porque aí já passa a ser exagero. Tenho a certeza de que Deus, quando andou animando Abraão com aquela história de que o patriarca hebreu ia deixar uma grande descendência, era na família Silva que Ele estava pensando. E, agora, está aí a mega-família ajudando o Brasil a crescer... um Uruguai a cada ano. Em termos populacionais, bem entendido.
Em nosso país, nenhum programa de controle populacional funciona sem a adesão da família Silva.
E, ainda, sobre a convenção: mais difícil do que "onde?" é ... "como?". Alguém aí não vai querer reunir toda a família Silva... com um único silvo. Antes, deve existir toda uma logística de planejamento e realização, que é de assustar a quem se meta a tanto. Programação, cartazes, divulgação através da mídia, convites, passagens aéreas, reservas em hotéis, correspondências pastas, crachás... Uma convenção não é, como direi, uma mera convenção. É também a oportunidade de gente conhecer gente, de gente trocar experiência com gente e, no caso da família em questão, de aprender a não fazer... gente.
Embora a convenção, num primeiro momento, possa favorecer o contrário. Por conta de sua programação social.
É... parafraseando Huxley, eu diria que a family is alone with its problem. E que se o problema é fazer uma convenção a família Silva arranjou o seu. Por isso, talvez seja o caso de comprar um pacote completo da família Smith que, em passado recente, fez a sua convenção nos Estados Unidos. Em vez de cair no erro da família Souza Leão que, tentando realizar o seu encontro, acabou - mercê da pouca experiência no assunto - dando o maior bolo.
Fundo Musical - Devo dizer que, enquanto escrevi estas considerações, houve um. O antigo sucesso musical "Menina da Ladeira", do compositor João Só. Que, a propósito, integra uma família, a qual não tem grandes dificuldades para realizar a sua convenção. A menos que Só seja só... um nome artístico, e João realmente pertença à família Souza.

Publicado no DN - CARTAS em 08/02/90

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