segunda-feira, 30 de junho de 2008

A NOVA LITERATURA BRASILEIRA 1984

Obra viabilizada pelo sistema de cooperativa da Shogun Arte no ano de 1984. Constou de 2 volumes reunindo contos, crônicas e poemas de muitos autores do Brasil.
Participei do segundo volume da coletânea com a crônica INVENTANDO COISAS...

O invento, qualquer invento, é um produto do ócio: sustento isto. Mas, se querem que eu assine embaixo, dêem-me ao menos uma caneta de tinta mágica. Daquelas cuja tinta, ao ser colocada num papiro, volatiliza-se minutos após.
Estou me protegendo, lógico. Quem, como eu, possui um mínimo de responsabilidade sobre os ombros (a lição que aprendi com o mitológico Atlas), não deve jamais sustentar alguma coisa e, ao mesmo tempo, assinar. Porque aí o céu desaba.
R. Taton, com seu "Reason and Chance in Scientific Discovery", vem agora em meu socorro. "A invenção não aparece durante os períodos de trabalho assíduo, mas durante os intervalos de descanso e relaxamento." A tal "Síndrome do Eureka".
Trocando em miúdos: a invenção não aconteceria enquanto o cérebro estivesse trabalhando feito um mata-mouros e, sim, quando ele fizesse uma pausa para o cafezinho. A favor desta teoria o modo como foi inventado o forno a microondas.
Mas... deixemos mister Taton em seu mister e continuemos no ócio, aliás, falando sobre o ócio. Quem nunca inventou algo é porque está no bê-a-bá do ócio. Por favor, não chamei ninguém de beócio, apenas disse que, em não sendo um inventor, estaria longe do zênite da ociosidade.
Cientista, pesquisador, tecnologista, que nome se dê ao inventor, ele é sempre alguém que vai fundo na ociosidade. Para o exercício da vagabundagem criadora, antes de tudo, ele se liberta do jugo do tempo. Ou vocês acham que o relógio do ponto teria sido inventado, se o seu criador fosse alguém preocupado com as horas?
Mas o diabo é que o relógio do ponto foi inventado e, a partir daí, como ficou difícil a gente sair à francesa do trabalho! E, para verem vocês o que é a natureza desumana, o produto do ócio de um relojoeiro-inventor em mãos patronais virou um grande negócio, vale dizer, uma negação do ócio.
Se há inventos para nos atazanar, outros existem para a nossa maior comodidade; separar o joio do trigo importaria uma longa discussão, caso por caso. De qualquer modo, no panorama atual, uma hipotética exclusão deles tornaria a sociedade moderna simplesmente impensável. Desinventar a roda, por exemplo, acabaria com a Era do Gurgel em que vivemos.
Felizmente, aqui repito, felizmente, desinventor de roda nunca tem vida suficiente para levar adiante o famigerado "Projeto Pé-Dois"; morre antes, atropelado. Ei, não estou falando mal dos praticantes de jogging. Eles conhecem a hora e o lugar.
A tal roda como surgiu? Conta-se que das mãos (e dos cérebros) de Og e Ug, dois cientistas das cavernas que, partindo de uma roda-protótipo de quatro lados, percorreram caminhos opostos. Og, optando pela diminuição dos lados e, com isso, obtendo uma roda de três lados, cuja grande vantagem era dar um solavanco a menos por giro, mas aí estacionou. Já Ug, pensando de modo contrário, foi progressivamente aumentando os lados da roda protótipo, até chegar a uma roda de centenas de lados com os contornos arredondados. Na prova decisiva de descer a ribanceira, ganhou a roda de Ug - com a diferença de uma ribanceira sobre a roda de Og. Ug só não pôde comemorar devidamente o feito porque, ao dar o pulo da vitória, foi infeliz e bateu com a cabeça justo no porrete de Og.
Há outros momentos burlescos na história das grandes invenções. Michael Faraday, o genial físico, certa feita mostrava à rainha Vitória I um artefato magnético que ele recém criara, quando Sua Majestade, a Rainha da Grã-Bretanha e da Irlanda, a Imperatriz das Índias não sabendo ficar calada, perguntou: "Para que serve a gerigonça?" Ora, Faraday tinha a consciência da importância de seu rebento no mundo do porvir e devolveu a inquirição: "Senhora, para que servem os bebês?" A rainha saiu tão agastada do episódio, conta-se, que só conseguiu gerir a loura Albion durante 64 anos. Ficou conhecida como Vitória I, a Breve.
Quando Faraday morreu um rapazote norte-americano, de vinte anos, maravilhava o mundo com sua inventividade. Thomas Alva Edison, o inventor da lâmpada incandescente, do fonógrafo para cães e do vibrador (este último tinha um porém, só funcionava na mão de Parkinson). Ao todo, Edison inventou 1.001 engenhocas, o que quase levou à estafa o staff do departamento de Patentes.
Agora, uma colocação derradeira. É possível o invento se voltar contra o inventor? É. Tenho conhecimento disto em pelo menos dois casos: o da guilhotina que decepou a cabeça de Joseph Guillotin, seu imortal inventor, e o do bumerangue.

terça-feira, 24 de junho de 2008

HETERÓCLITO, SUAS CASAS DE PASTO

Heteróclito, a namorada a reboque, fez um ar de desânimo. Todas as mesas do restaurante Half Star estavam ocupadas. A não ser que o maître... Lembrou-se de que o maître do Half Star tinha para com ele uma dívida eterna. Certa vez, Heteróclito lhe tirara um espinho da mão e o maître reconhecido lhe dissera: "Por você sou capaz de matar ou morrer, de preferência a primeira hipótese."
Não é só o chef que faz das tripas coração, em se tratando de amigos o maître também faz:
- Senhor Heteróclito, há uma mesa por enquanto desocupada.
- Qual?
- Aquela da tábua verde.
- A mesa da tábua verde? Mas... por que tem ela uma redinha estendida no meio?
- Dois chineses, logo mais, vão jogar uma final de tênis de mesa. Se o senhor não se incomoda...
- Não me incomodo. A mesa é bastante espaçosa.
Fizeram os pedidos. Petúnia, a namorada, um prato de quatro dígitos, e Clitinho, outro de três (para evitar que, no final, surgisse uma conta de cinco dígitos). Para beber, ambos concordaram com uma mineral. Uma mineral com gás "porque tem gosto de pé dormente".
Estavam sendo servidos quando, senão quando, os dois chineses chegaram. Estabeleceu-se um clima de tensão. Com os dois "chinas" considerando Heteróclito e a namorada intrujões. Pingue-pongueia, não pingue-pongueia, quando Clitinho teve a idéia de bancar o brasileiro cordial. Levantou-se e, em posição de sentido, cantou o Hino Nacional de Hong Kong. Na voz dele, ficou tão irreconhecível o hino que a confusão nem aumentou. Pelo contrário, acalmou os chineses que eles, pacificados, resolveram desembainhar as raquetes.
Deu-se a partida, com a bolinha quicando por entre pratos, taças e saleiro. Pensando bem, Clitinho e a namorada jantavam, mas com sobressaltos.
Pelas tantas, Petúnia não se conteve:
- Diacho! Por que não fomos ao restaurante vegetariano Ruminant Is Beautiful?...
Ele sorriu amarelo (sorriso desta cor fica melhor na cara dos orientais, sei disso).
Sem dar mostras de fádiga do plástico, a bolinha prosseguia em sua estratégia de mesa arrasada. Nos 3 a 2, fez salpicar o salpicão de galinha, nos 4 a 3, quebrou o pires das azeitonas, nos 5 a 4, tirou a milanesa de um trecho do filé, nos 6 a 5, fez subir uma cortina de farofa até que, nos 7 a 6, a bolinha foi sustada... para ser devidamente trichada por Clitinho.
Ah, a lição de uma tia de Heteróclito, nos tempos de antanho, quando a bola de couro dos moleques caía em seu canteiro de gerânios...

quinta-feira, 19 de junho de 2008

HETERÓCLITO, SEUS INIMIGOS

Como pode uma pessoa tão boa (no julgamento materno) como Heteróclito ter inimigos? Mas ele os tem: inimigos figadais e baçais, conforme o órgão visado. Se bem que, com o passar do tempo, a diferença se acabe, pois os baçais evoluem para figadais. Sempre. E os figadais de uma figa, todos eles, estão no encalço do nosso herói. Temo, porém, que não haja resposta para a pergunta inicial. Ou que haja: Judas, que era Judas, tinha inimigos, por que Heteróclito não haveria de tê-los?
Só que Heteróclito não precisa ter inimigos com os amigos que tem. Como, por exemplo, o Toinho Valha Couto que, pelo hábito de bater velozmente as abas do nariz, é também chamado de Narinas Frenéticas. Se a doutrina da transmigração da alma estiver correta, esse Toinho em outra encarnação foi coelho. Ou Coelho. No entanto, para não derivar muito, deixo a descrição completa do calhorda para outra oportunidade. Fiquem só com este conceito: Toinho Valha Couto é dos que apertam os outros fora do abraço.
Ah... Ah... Matar Heteróclito numa quarta-feira normal de trabalho é simplesmente uma piada. Ele não tem existência real na azáfama da semana, no ruge-ruge leonino do dia-a-dia. Alguém, por acaso, já matou um espectro de homem? Um zumbi? Assim é Heteróclito. Um Jó-vivente que trabalha mais do que o permitido pela "Lei de Saúde dos Aprendizes", do parlamento britânico de 1802. Querido pistoleiro: conseguirás no máximo fazer alguns buracos em Clitinho. Não haverá a homologação divina para o teu nefando ato.
Clitinho hás que matá-lo no ludismo de um fim de semana, que é quando ele segrega pelos poros vida. Para facilitar, nossa vítima durante o "uiquende" tem um roteiro necessário. Começa sexta-feira à noite, no Estoril; mas, oh!... não o mates agora. Não são três horas da manhã, e Heteróclito et caterva ainda não derrubaram o governo da República. Se o fizeres darás "preju" ao povo, de onde emana todo o poder inclusive o de fogo.
Sábado à tarde, poderás encontrá-lo no Capacete Branco, uma barraca de beira-praia. Lá, banhistas e proprietário respiram um clima de mútua confiança. Heteróclito gosta. Invariavelmente, ele toma quatro cervejas e tenta pagar duas. Vem o proprietário da barraca, passa o ciscador na areia, e ele é obrigado a pagar seis. São as regras do jogo. Estás disposto a pagar a exorbitante conta dele? Não? Esperemos então a noite chegar.
Heteróclito está na casa de serestas do Santiago. A casa encontra-se lotada, pensa nisto um par e meio de horas antes de perpetrares o "cliticídio". São pessoas sensíveis que não tolerarão, jamais, que um estampido fira a suave música. Se, ao menos, o regional estivesse tocando aquela peça de Tchaikovski que tem ribombar de canhões, aí sim aproveitarias a circunstância. Mas não. Estás cheio de dedos, pistoleiro, percebo. E não aparece um cristão de senso prático que te traga uma harpa.
Na manhã de domingo Clitinho entra numa edipiana. Acarinhado pelas três tias solteiras de Jacarecanga que tentam, a poder de caldos de carne e limonada, tirá-lo de uma tremenda ressaca. Uma ressaca maior do que a do mar de Jacarecanga. Tem dor de cabeça terebrante, matéria ígnea no estômago... Meu Deus, Heteróclito promete não beber de hoje para trás. Nessas horas, ele tem vontade de ir passear no barco de Caronte. Por precaução, as cuidadosas tias escondem de Clitinho todas as armas potenciais da casa inclusive o cortador de unhas. Trucidá-lo agora é um ato de solidariedade, não condiz com a tua mal-querença. À tarde, então.
Pena que, à tarde de domingo, ele não possa ser interrompido. É quando ele dá prosseguimento ao "Queda e Coice do III Reich", um livro que espera editar pela Nação Ybiapaba. Os pensamentos voam, as palavras andam, a língua de Heteróclito vez por outra se engancha no rolo da máquina de escrever e, por isso, o livro vai lento. Tens que temporizar, pistoleiro. Esse livro, que no momento se resume a uma ficha catalográfica, é um terço do ideal dele.
Mas eu sei onde as andorinhas têm insônia. Toda noite de domingo Heteróclito vai para a cama com a Bruna Lombardi. Já perdi a conta das vezes em que ele, na noite domingo, leu na cama o livro de poemas da Bruna. Pois a hora é essa, matador. Sem dizeres fogo vai, atira nele o bom tiro. Bom tiro, matador - antes que eu esqueça -, é aquele que sai pela culatra.

MULTICONTOS

Em seu Projeto Cultural de 1983, o BNB-Clube de Fortaleza promoveu o I Concurso de Contos com o objetivo de revelar novos autores cearenses. Concorreram 80 autores, dos quais 39 tiveram seus trabalhos selecionados pela comissão julgadora.
Fizeram parte desta comissão os escritores José Alcides Pinto (recentemente falecido), Airton Monte e Batista de Lima. E, na coordenação do certame, esteve o Sr. José Aldro Luiz de Oliveira, à época o diretor cultural do BNB-Clube.
Os trabalhos escolhidos, em número de 44, foram reunidos em um livro intitulado MultiContos. Com dois contos premiados (Heteróclito, seus inimigos e Heteróclito, suas casas de pasto), tive a satisfação de vê-los publicados na referida coletânea.

MultiContos pode ser lido na internet no site issuu,com.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

DOIS CONTOS

De minha autoria figuram na ANTOLOGIA ATÉ AGORA os contos COM A CARA E A COVARDIA, nas páginas 146 e 147, e PONTO E VÍRGULA, nas páginas 148 e 149, que já haviam sido publicados em ESMERALDAS e LETRA DE MÉDICO, respectivamente.

PAULO GURGEL

sábado, 14 de junho de 2008

A PROPÓSITO DESTA ANTOLOGIA

A partir de 1983, a SOBRAMES – CEARÁ tem mantido a louvável tradição de publicar livros quase que anualmente (foram dez publicações em treze anos).
Em 1995, publicamos o décimo livro e chegamos à conclusão de que a hora era de comemoração.
Acreditamos que uma excelente maneira de comemorar nossa dezena de livros seria editando o décimo primeiro que resumisse o que de melhor apresentassem os anteriores.Assim nasceu Antologia Até Agora 1983 – 1996, cujo lançamento programamos para a ocasião do XVI CONGRESSO NACIONAL DA SOBRAMES porque mostraríamos aos colegas de todo o Brasil o nível de produções literárias e a atuação da SOBRAMES – CEARÁ.

MÉDICOS: POESIA E PROSA

Carlos D’Alge

Em 1995, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Ceará publicou o seu décimo livro reunindo a produção literária dos seus associados.
Para assinalar essa ocorrência, a Sociedade edita a Antologia Até Agora 1983 – 1996, que será apresentada por ocasião do XVI Congresso Nacional da SOBRAMES.
A Antologia inclui 25 poetas e 22 prosadores, números expressivos que comprovam o traço humanístico desses médicos que, entre os hospitais, as clínicas e o Curso de Medicina, ainda encontram vagas para a literatura.
Vejamos os poetas. São 67 composições, numa média de três por autor. Todos eles figuraram nas antologias da SOBRAMES – CE. Entre eles, há um desaparecido, Caetano Ximenes Aragão, cujo Romanceiro de Bárbara foi muito festejado pela crítica. Caetano era um humanista. Clínico Geral, possuía uma bem selecionada biblioteca. Coerente com as idéias da juventude, nos seus livros registrou preocupação com a justiça social. O médico Geraldo Bezerra oferece um dos poemas desta Antologia a Caetano:

“O poeta montou no seu sonho
E alegre, risonho
Voou para o além.”


Luís Teixeira Neto é o autor do poema mais longo, com o título “Poema sem nome, escrito em 1968”. Emanuel Carvalho de Melo dedica um dos seus poemas a John Lennon, cuja poesia e música embalaram o sonho de muitas gerações. Heládio Feitosa e José Rômulo Barbosa são autores de bem elaborados sonetos. Pedro Henrique Saraiva Leão, poeta, acadêmico, professor e presidente da SOBRAMES –CE, no estilo que já é conhecido, ironiza poeticamente ocorrências que assustam o mais comum dos mortais, como o câncer e o infarto:

“Não tenho medo do câncer
temo que canses de mim.
É preciso que eu esteja farto
quando o infarto chegar
que o carteiro tenha passado
que a festa tenha acabado.”


Finalmente, já que não há tempo nem espaço para citar todos os 25 poetas, destaque-se o poema “In memoriam Sr. Andrade de Tal, um cadáver de estudo”, de Ricardo Augusto Rocha Pinto, e ainda os poemas de Antero Coelho Neto e Hamilton Monteiro.
Os prosadores, em número de 22, são autores de 34 textos divididos entre a crônica e o conto. Não é fácil precisar os limites do conto. A crítica tem procurado estabelecer alguns parâmetros que são discutíveis. Moreira Campos dizia que conto era tudo aquilo que o autor assim denominava. Há os modelos tradicionais: Machado de Assis, Eça de Queirós, Humberto de Campos, que também escreveram crônicas para os jornais. O conto moderno, que nasce com Tchecov e Maupassant, hoje é mais curto e tende a fixar uma situação.
Nos cronistas e/ou contistas da Antologia Até Agora há uma exceção, homenagem ao saudoso médico, fundador da Faculdade de Medicina, e humanista, Newton Gonçalves. A sua aula de abertura dos cursos da Faculdade de Veterinária do Ceará, proferida em 1º de março de 1972, com o título de “Louvação dos Bichos”, é um bem documentado trabalho sobre os animais do nosso cotidiano.
Dos 22 prosadores realço duas interessantes narrativas: “A Heroína de Mossoró”, de Francisco Nóbrega, episódio do tempo de Virgulino Lampião, e a de Marcelo Gurgel que, entre o sentimento de perda e saudade, evoca o médico Paulo Marcelo Martins Rodrigues.
E, para concluir, destaco as crônicas de Roque Muratori (meu colega no Colégio Cearense), Flávio Leitão e Cleto Brasileiro Pontes, e ainda os contos de Paulo Gurgel.

ANTOLOGIA ATÉ AGORA 1983 - 1996

Antologia de prosa e poesia publicada em 1996 pela SOBRAMES, Regional do Ceará.
Edição Comemorativa ao XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.
Reúne 101 composições produzidas por 47 médicos e já publicadas em dez livros anteriores (TEMOS UM POUCO, CRIAÇÕES, SOBRE TODAS AS COISAS, LETRA DE MÉDICO, EFEITOS COLATERAIS, MEDITAÇÕES, OUTRAS CRIAÇÕES, ESMERALDAS, PRESCRIÇÕES E AMOSTRA GRÁTIS) da Sobrames - Ceará.
Apresentação de Carlos D'Alge.
Livro com 162 páginas.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

ARMA QUENTE - 2

"Não, John, a felicidade não é uma arma quente."

O facínora encostou o (ainda) frio cano do revólver em meu peito e disse:
- Sabia que vai morrer?!
Chamo-me Bernardo. O que, quando bem entendo, me dá o direito de cometer alguma bernardice.
- Vou, é? Quando?
- Agora mesmo. Não está vendo o "berro" aqui?! O Honorato me mandou...
- "Peraí"... O Honorato é meu amigo!
- Não morra iludido, cara. Ele me pagou - e bem - para que eu despachasse você.
- Quanto?
- Não está querendo dobrar a grana, está? A fim de trocar de lugar com ele...
- Não, o Honorato não vale o dobro de mim.
E não vale mesmo. Nos últimos tempos, minhas dívidas não estavam sendo pagas, outras tantas vinham sendo contraídas, e... sabem por quê? O Honorato.... ele, como avalista, não honrava essas dívidas.
Agora, eis que me mandava um celerado de funestas intenções. Com os olhos injetados de quem à noite não dormira, só para me tocaiar. E que estava ali a me ameaçar. Ou será que, para ficar ainda mais ameaçador, ele pingara nos olhos colírio de groselha? Bem, perguntar é que eu não ia, pois estava em plena defensiva. E cabia-me, até onde o auto-controle funcionasse, ser polido em toda a conversação.
- Ora, o Honorato não precisava...
- De quê, cara?
- Ser tão preocupado comigo. Empreste-me o revólver que eu sei morrer por minhas próprias forças...
- Espertinho.
- Ou por falta delas... de morte natural.
- Demora muito. E o que eu acertei com o Honorato foi morte matada.
Pensei numa opção para a sobrevivência que não ficasse apenas na argumentação. Alguém já me dissera que os meliantes costumam usar balas imprestáveis. Dificuldades em obtê-las de fontes idôneas e que, por conta disso, suas armas de fogo muitas vezes "quebram o catolé". Há inclusive toda uma estatística em favor de quem está prestes a ser vítima, desde que não esta não esqueça as palavras mágicas:
- Pernas para que vos quero!
Exatamente o que cumpri à risca. Enquanto o celerado, naquele afã de mostrar serviço, pôs-se a descarregar o revólver.Com quatro tiros bem na mosca, isto é, em mim.
Alvejou-me no ventrículo esquerdo, na crossa da aorta, no tronco da coronária e, por último, no cabo do meu marca-passo cardíaco, desconectando-o.
Como vêem, nenhum dos tiros atingiu-me algo que fosse vital. De sorte que, se ele me matou, não fez o serviço bem feito.

P.S.: Caso o facínora venha a ser preso e, por um desses equívocos da Justiça, aconteça de ser condenado eu já deixo instrução a respeito. Com o meu advogado - que também se chama Bernardo - para imediatamente apelar.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ARMA QUENTE - 1

Por não mais suportar tanta aflição, Evilásio decidiu tentar a solução do desespero. Pegar o "três-oitão" em cima do guarda-roupa, encostar o cano da arma na têmpora, apertar o gatilho e... explodir os miolos. Para pôr termo a uma existência que, numa avaliação que ele mesmo fizera, adquirira ultimamente um péssimo valor. De mel coado, no máximo. Como sói acontecer a todo ser humano em que a paz de espírito deixa de ser possível. Por razões as mais diversas, já que este mundo como Deus o fez é de tão grande complexidade.
No seu caso, por causa dos assuntos com que a mulher - uma seca-pimenteira de marca maior! - vinha-lhe chateando. De modo contínuo - como cantiga de grilo! Em que a temática eram as pequenas catástrofes, por ela pinçadas com a precisão de relojoeiro no dia-a-dia do bairro. Posto não ser mulher de deixar passar em branco infortúnio de ninguém mas, sim, de relatá-lo (com grande prazer, claro) onde ouvidos existissem. Para o desasossego de Evilásio que, tendo estes mais alcançáveis, não tinha quase como fugir do tagarelar da leva-e-traz.
Ah, sobre ele andavam a desabar todas as conversas desagradáveis que perambulavam pelo bairro... Trazidas pela falação de Abigail, esse o nome da megera, de uma forma tão assídua para o recesso do lar, que ele ficava a ponto de estourar. No passado, fora mais suportável essa desdita, é verdade. Evilásio então trabalhava num emprego público onde ficava a salvo, em grande parte do dia, do baixo astral da esposa. E esta, para descarregar o humor mórbido, tinha de recorrer a outras companhias. Umas comadres que, após atenciosas escutas, como retribuição enriqueciam-lhe também a pauta.
Mal ele chegava a casa, Abigail já abria o inesgotável bedelho:
- O Manoel não passa deste mês, está desenganado pelo médico.
- Hum...
- Das Dores anda botando chifres no marido.
- Hum... hum...
- O cachorro do Ari mordeu o carteiro.
A saída era Evilásio desistir do programa da televisão (o jornal houvera lido no emprego) e ir até a mercearia da esquina. Dar umas "bicadinhas", enquanto o tempo passava, até se sentir entorpecido o bastante para retornar. Numa hora da noite em que na mulher, por se encontrar dormindo, já houvesse encostado a matraca. E o ambiente refeito em silêncio - como é da prerrogativa de um cidadão que quer apenas isto: dormir! No dia seguinte, era ele engolir o café apressadamente e, o mais rápido possível, arrancar-se para o trabalho (que ouvido de gente não é pinico).
Um dia, porém, o nosso barnabé aposentou-se. Ficando, desde então, em regime de tempo integral à disposição dos aporrinhamentos conversatórios da mulher. E, pouco tempo depois, descobriu que fugir para o boteco não seria mais possível. Uma gota de extrema severidade, que o privava de consumir álcool e tira-gostos, havia estrompado a antes tão querida válvula de escape. E, mais, muito mais, com a rápida progressão da doença, Evilásio se viu praticamente um inválido - todavia, com a audição perfeita. Para regozijo de Abigail cuja conversa aí desceu ao nível de poleiro de pato.
Dias e noites de tortura se seguiram para Evilásio. Um sofredor ante o matraquear da esposa que, aproveitando-se da situação, não dava a mínima trégua. Nisso, foi quando ele, como se falou no começo da história, decidiu tentar a solução do desespero. Perante a tagarelice da mulher cuja língua, em se tratando de fofocar, não parava de crescer horrores. Com a ressalva de que caso sobrevivesse (contingência de quem pratica a roleta-russa, por sinal), ela não entendesse a experiência como encerrada. E acionou o gatilho.
Bem, não partiu da arma nenhum projétil a varar o crânio do desinfeliz. No entanto, quando ele mostrou que, no tambor do revólver, existia de fato um cartucho (apenas por acaso não deflagrado), a mulher ficou estupefacta. E, desde aquele dia, para não ter de carregar um suicídio na consciência, mudou definitivamente o teor da prosa. Da água para o vinho (onde está a verdade, como se diz). Pois Evilásio, resoluto como se mostrara, já acenava com a possibilidade de repetir a façanha. Usando, na vez seguinte, dois cartuchos no tambor do revólver, depois três...
Só que não foi preciso prosseguir com a chantagem da roleta-russa. Porque Abigail, daí para frente, empenhou-se para que naquele lar só rolasse papo-leveza. E, Evilásio, em virtude disso, depois jogou fora os seus cartuchos que davam tiros de pólvora seca.