quinta-feira, 19 de junho de 2008

HETERÓCLITO, SEUS INIMIGOS

Como pode uma pessoa tão boa (no julgamento materno) como Heteróclito ter inimigos? Mas ele os tem: inimigos figadais e baçais, conforme o órgão visado. Se bem que, com o passar do tempo, a diferença se acabe, pois os baçais evoluem para figadais. Sempre. E os figadais de uma figa, todos eles, estão no encalço do nosso herói. Temo, porém, que não haja resposta para a pergunta inicial. Ou que haja: Judas, que era Judas, tinha inimigos, por que Heteróclito não haveria de tê-los?
Só que Heteróclito não precisa ter inimigos com os amigos que tem. Como, por exemplo, o Toinho Valha Couto que, pelo hábito de bater velozmente as abas do nariz, é também chamado de Narinas Frenéticas. Se a doutrina da transmigração da alma estiver correta, esse Toinho em outra encarnação foi coelho. Ou Coelho. No entanto, para não derivar muito, deixo a descrição completa do calhorda para outra oportunidade. Fiquem só com este conceito: Toinho Valha Couto é dos que apertam os outros fora do abraço.
Ah... Ah... Matar Heteróclito numa quarta-feira normal de trabalho é simplesmente uma piada. Ele não tem existência real na azáfama da semana, no ruge-ruge leonino do dia-a-dia. Alguém, por acaso, já matou um espectro de homem? Um zumbi? Assim é Heteróclito. Um Jó-vivente que trabalha mais do que o permitido pela "Lei de Saúde dos Aprendizes", do parlamento britânico de 1802. Querido pistoleiro: conseguirás no máximo fazer alguns buracos em Clitinho. Não haverá a homologação divina para o teu nefando ato.
Clitinho hás que matá-lo no ludismo de um fim de semana, que é quando ele segrega pelos poros vida. Para facilitar, nossa vítima durante o "uiquende" tem um roteiro necessário. Começa sexta-feira à noite, no Estoril; mas, oh!... não o mates agora. Não são três horas da manhã, e Heteróclito et caterva ainda não derrubaram o governo da República. Se o fizeres darás "preju" ao povo, de onde emana todo o poder inclusive o de fogo.
Sábado à tarde, poderás encontrá-lo no Capacete Branco, uma barraca de beira-praia. Lá, banhistas e proprietário respiram um clima de mútua confiança. Heteróclito gosta. Invariavelmente, ele toma quatro cervejas e tenta pagar duas. Vem o proprietário da barraca, passa o ciscador na areia, e ele é obrigado a pagar seis. São as regras do jogo. Estás disposto a pagar a exorbitante conta dele? Não? Esperemos então a noite chegar.
Heteróclito está na casa de serestas do Santiago. A casa encontra-se lotada, pensa nisto um par e meio de horas antes de perpetrares o "cliticídio". São pessoas sensíveis que não tolerarão, jamais, que um estampido fira a suave música. Se, ao menos, o regional estivesse tocando aquela peça de Tchaikovski que tem ribombar de canhões, aí sim aproveitarias a circunstância. Mas não. Estás cheio de dedos, pistoleiro, percebo. E não aparece um cristão de senso prático que te traga uma harpa.
Na manhã de domingo Clitinho entra numa edipiana. Acarinhado pelas três tias solteiras de Jacarecanga que tentam, a poder de caldos de carne e limonada, tirá-lo de uma tremenda ressaca. Uma ressaca maior do que a do mar de Jacarecanga. Tem dor de cabeça terebrante, matéria ígnea no estômago... Meu Deus, Heteróclito promete não beber de hoje para trás. Nessas horas, ele tem vontade de ir passear no barco de Caronte. Por precaução, as cuidadosas tias escondem de Clitinho todas as armas potenciais da casa inclusive o cortador de unhas. Trucidá-lo agora é um ato de solidariedade, não condiz com a tua mal-querença. À tarde, então.
Pena que, à tarde de domingo, ele não possa ser interrompido. É quando ele dá prosseguimento ao "Queda e Coice do III Reich", um livro que espera editar pela Nação Ybiapaba. Os pensamentos voam, as palavras andam, a língua de Heteróclito vez por outra se engancha no rolo da máquina de escrever e, por isso, o livro vai lento. Tens que temporizar, pistoleiro. Esse livro, que no momento se resume a uma ficha catalográfica, é um terço do ideal dele.
Mas eu sei onde as andorinhas têm insônia. Toda noite de domingo Heteróclito vai para a cama com a Bruna Lombardi. Já perdi a conta das vezes em que ele, na noite domingo, leu na cama o livro de poemas da Bruna. Pois a hora é essa, matador. Sem dizeres fogo vai, atira nele o bom tiro. Bom tiro, matador - antes que eu esqueça -, é aquele que sai pela culatra.

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