quinta-feira, 5 de junho de 2008

ARMA QUENTE - 1

Por não mais suportar tanta aflição, Evilásio decidiu tentar a solução do desespero. Pegar o "três-oitão" em cima do guarda-roupa, encostar o cano da arma na têmpora, apertar o gatilho e... explodir os miolos. Para pôr termo a uma existência que, numa avaliação que ele mesmo fizera, adquirira ultimamente um péssimo valor. De mel coado, no máximo. Como sói acontecer a todo ser humano em que a paz de espírito deixa de ser possível. Por razões as mais diversas, já que este mundo como Deus o fez é de tão grande complexidade.
No seu caso, por causa dos assuntos com que a mulher - uma seca-pimenteira de marca maior! - vinha-lhe chateando. De modo contínuo - como cantiga de grilo! Em que a temática eram as pequenas catástrofes, por ela pinçadas com a precisão de relojoeiro no dia-a-dia do bairro. Posto não ser mulher de deixar passar em branco infortúnio de ninguém mas, sim, de relatá-lo (com grande prazer, claro) onde ouvidos existissem. Para o desasossego de Evilásio que, tendo estes mais alcançáveis, não tinha quase como fugir do tagarelar da leva-e-traz.
Ah, sobre ele andavam a desabar todas as conversas desagradáveis que perambulavam pelo bairro... Trazidas pela falação de Abigail, esse o nome da megera, de uma forma tão assídua para o recesso do lar, que ele ficava a ponto de estourar. No passado, fora mais suportável essa desdita, é verdade. Evilásio então trabalhava num emprego público onde ficava a salvo, em grande parte do dia, do baixo astral da esposa. E esta, para descarregar o humor mórbido, tinha de recorrer a outras companhias. Umas comadres que, após atenciosas escutas, como retribuição enriqueciam-lhe também a pauta.
Mal ele chegava a casa, Abigail já abria o inesgotável bedelho:
- O Manoel não passa deste mês, está desenganado pelo médico.
- Hum...
- Das Dores anda botando chifres no marido.
- Hum... hum...
- O cachorro do Ari mordeu o carteiro.
A saída era Evilásio desistir do programa da televisão (o jornal houvera lido no emprego) e ir até a mercearia da esquina. Dar umas "bicadinhas", enquanto o tempo passava, até se sentir entorpecido o bastante para retornar. Numa hora da noite em que na mulher, por se encontrar dormindo, já houvesse encostado a matraca. E o ambiente refeito em silêncio - como é da prerrogativa de um cidadão que quer apenas isto: dormir! No dia seguinte, era ele engolir o café apressadamente e, o mais rápido possível, arrancar-se para o trabalho (que ouvido de gente não é pinico).
Um dia, porém, o nosso barnabé aposentou-se. Ficando, desde então, em regime de tempo integral à disposição dos aporrinhamentos conversatórios da mulher. E, pouco tempo depois, descobriu que fugir para o boteco não seria mais possível. Uma gota de extrema severidade, que o privava de consumir álcool e tira-gostos, havia estrompado a antes tão querida válvula de escape. E, mais, muito mais, com a rápida progressão da doença, Evilásio se viu praticamente um inválido - todavia, com a audição perfeita. Para regozijo de Abigail cuja conversa aí desceu ao nível de poleiro de pato.
Dias e noites de tortura se seguiram para Evilásio. Um sofredor ante o matraquear da esposa que, aproveitando-se da situação, não dava a mínima trégua. Nisso, foi quando ele, como se falou no começo da história, decidiu tentar a solução do desespero. Perante a tagarelice da mulher cuja língua, em se tratando de fofocar, não parava de crescer horrores. Com a ressalva de que caso sobrevivesse (contingência de quem pratica a roleta-russa, por sinal), ela não entendesse a experiência como encerrada. E acionou o gatilho.
Bem, não partiu da arma nenhum projétil a varar o crânio do desinfeliz. No entanto, quando ele mostrou que, no tambor do revólver, existia de fato um cartucho (apenas por acaso não deflagrado), a mulher ficou estupefacta. E, desde aquele dia, para não ter de carregar um suicídio na consciência, mudou definitivamente o teor da prosa. Da água para o vinho (onde está a verdade, como se diz). Pois Evilásio, resoluto como se mostrara, já acenava com a possibilidade de repetir a façanha. Usando, na vez seguinte, dois cartuchos no tambor do revólver, depois três...
Só que não foi preciso prosseguir com a chantagem da roleta-russa. Porque Abigail, daí para frente, empenhou-se para que naquele lar só rolasse papo-leveza. E, Evilásio, em virtude disso, depois jogou fora os seus cartuchos que davam tiros de pólvora seca.

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