quarta-feira, 28 de maio de 2008

O FAROL

Poderia ser chamado de farol do cafundó-de-judas, do caixa-pregos, do cornimboque do Diabo ou de farol com qualquer outra expressão do gênero. Que desse a idéia de estar situado num local ermo, afastado. Ou, ainda, simplesmente ser chamado de O Farol (menos de O Farol do Fim do Mundo, porque aí já seria plagiar Julio Verne). E, digamos que o farol em questão (Santa Sutileza, que quase me fez dizer "em foco"!) fora erigido numa ilha pequena e montanhosa - uma ilhota! A fim de que, na escuridão da noite, protegesse as embarcações da destruição contra os arrecifes. E, desse modo, evitar que vidas humanas servissem de repasto aos tubarões.
Quantos rochedos e arrecifes havia por ali onde um navio, em noite de breu, poderia bater! Sobrosso acontecia algum, porém aquele farol era a única garantia para uma nau atravessar aquelas águas sem... sobroço. Daí a importância do trabalho do guardião do Farol. Subir, todas as noites, a comprida escada helicoidal que ia dar na sala onde ficavam as grandes lanternas. A seguir, ajudado por Georges, imediato de guardião, encher de óleo o reservatório das grandes lanternas, as quais eram postas a iluminar o oceano (mas não todo o oceano, como pensava Georges).
Uma noite, porém, o faroleiro notou que muitas das residências da ilhota estavam às escuras. Pois que existiam outros moradores naquela ilhota (afinal, vocês não estão lendo o romance de Julio Verne). E ele procurou saber o motivo de tanta escuridão doméstica. "A falta de óleo para as lâmpadas", responderam-lhe. "E o navio de suprimento não vem antes de um mês. O que é a ironia, senhor. Mandamos luz para o oceano, mas não a temos em nossas casas". Embora não gostasse muito desse "mandamos" (pois era ele quem mandava), o guardião ficou de estudar a solução.
Logo, ei-lo em casa entregue a reflexões. Com os dedos maquinalmente entretidos com o pêlo bem cuidado de Philippe-Auguste, o fiel cão. Que é relaxante fazer pitó em pêlo de cão, lá isso é. Ademais, ajuda a aclarar as idéias... Ei! Quem sabe se ele emprestasse uma partezinha do óleo sob a sua guarda aos moradores, a fim de que suas lâmpadas voltassem a brilhar? Isto imaginado, o faroleiro com um safanão afastou Philippe-Auguste para que este fosse banzar em outro lugar e levantou-se. Foi cubar a reserva de combustível a ver se dava para realizar alguma beau geste. Não dava, é verdade, mas o guardião ainda assim preferiu correr o risco de emprestar o óleo. A ter de contrariar uma voz interior, arrastada nos erres, desde o início a favor do empréstimo.
Então, chamou Georges para que distribuísse entre os moradores, a cada um conforme as necessidades, o escasso combustível. Com isso, transgredindo as normas que diziam ser aquele combustível para uso exclusivo do Farol. E, aventuro-me a dizer, o que também moveu o guradião a tanto. Ter os ilhéus nas palmas das mãos, presos pela gratidão. Este sentimento que, em tempos de política (o guardião tinha um projeto), traz certos dividendo ao politicalho. Desse modo, daí a nada, em todas as casas da ilhota, estavam as lâmpadas a queimar o óleo amigo.
Não houve quem não vivasse o faroleiro. E, como dantes, os ilhéus voltaram a se alegrar nos fandangos bailados.
Até que, numa noite, o guardião foi visitado por um sonho. Ele sonhou que era o faroleiro de uma outra ilha - sem farol! Na qual a sinalização era feita pelos disparos periódicos de um canhão. Que eram dados de hora em hora, com pólvora seca - mas que produziam barulho e clarão suficientes para alertar os navegantes próximos. E, nesse mister, ele se revezava com alguém bastante parecido com Georges, só que mais retaco. A quem inclusive caberia o canhonear seguinte (visto que o guardião dormia e mesmo sonhava). No entanto, na hora devida o ajudante não deu a canhonada. O que fez com que, naquele momento de estampido nenhum, o guardião acordasse sobressaltado.
Algo de ruim se pressagiava. E, tomado de um mau pressentimento, o faroleiro subiu apressadamente até a sala das grandes lanternas. Estavam apagadas, e lembrou-se de que Georges antes comentara a respeito do fim iminente do combustível. E, não estando o Farol a facheá-lo, o oceano em volta era um pretume só. Ouvia-se o vento, o quebrar das ondas, gritos... Apurou os ouvidos. Sim, ouviam-se gritos. Mon Dieu, estava a acontecer ali um grande naufrágio e ele nada podia fazer. Recém se espedaçara um navio nos rochedos, gritos de desespero varavam a medonha escuridão, e ele... ele... nada podia fazer.
E não ficou somente naquele naufrágio. Ainda aconteceriam outras tragédias marítimas, todas elas por falta de um facho de luz que orientasse, durante a noite, as embarcações... (Não, não substituía o Farol a luz bruxuleante de umas tantas lâmpadas domésticas, pois estas mal alumiavam os compartimentos em que eram postas.) Até raiar uma manhã em que, ao se contabilizar o sexto naufrágio, constatou-se também que o pior tinha acontecido. Havia, na última noite, colidido contra os rochedos o navio de suprimento, o qual era responsável pelo abastecimento da ilhota. De praticamente tudo: do óleo combustível para o farol aos gêneros alimentícios que todos consumiam.
Tempos depois, intrigado com o sumiço de tantos navios, o continente resolveu apurar os fatos. Mandando um navio na rota dos desaparecimentos, com atenção especial ao que pudesse ser encontrado nas coordenadas geográficas do Farol. Lá chegando, as autoridades, que já haviam concluído sobre o que acontecera (pela visão dos destroços flutuantes cujo número ia aumentando enquanto se aproximavam da ilha), verificaram ainda o seguinte. Hélas!, nenhum ser humano estava vivo, a todos matara a inanição. Ah, terra sáfara, aquela...
Pois unicamente, e transformado no mais esquálido dos cães, sobrevivera Philippe-Auguste. E com alento apenas para abanar a cauda (em saudação às autoridades), cerrar os olhos e, em seguida, adentrar um trevoso país. Onde, ao que tudo indica, não verá farol nenhum como aquele.

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