Eis na íntegra a sua última carta:
"Prezado senhor,
O assunto ao qual chamo a sua atenção é da mais alta importância, uma vez que se relaciona com algo que nos é muito precioso: o corpo. Alicerçado em que consultei, à exaustão, os compêndios de anatomia de minha privada biblioteca (privada enquanto adjetivo, bem entendido). E que, após a tal consulta, acabo de chegar a uma irrefutável constatação. O homem tem - pasme o senhor! - o domínio útil do seu corpo, mas em verdade não é dele proprietário. Quer dizer, ele ganhou o corpo do qual deve tirar proveito (antes de o dar aos vermes); no entanto, ele chegou tarde.
Isto porque os homens da ciência - anatomistas, na maioria - estabeleceram o loteamento da carcaça humana. Nada deixando a que não se reportassem através de um de - partícula que confere relação de posse. A começar por Adão, não propriamente um anatomista (apenas um nomeador dos seres vivos em geral). Quando deu o nome a este belo pomo que o senhor carrega no pescoço, integrando os seus caracteres sexuais masculinos. O que é, aliás, aceitável, Adão, o super Adão, foi o pai primordial. Em nenhuma hipótese, porém, eu coonesto o que aconteceu depois.
Por exemplo, um guerreiro grego, naquilo que ele tinha de mais frágil, emprestar o nome ao mais robusto tendão do corpo humano. O guerreiro Aquiles, e chega a ser irônico o fato. Como também não coonesto o loteamento do homem pelos anatomistas de todos os tempos e lugares, só porque o dissecaram com o fim de estudo. E aproveito aqui para nobilitar os precursores da ciência que trata da forma e da estrutura do ser humano. Demócrito, Anaxágoras, Alcméon, Empédocles... mas esses homens eram uns filósofos!
No corpo humano não há ligamento, esfíncter, aponeurose, válvula, prega e forame que não pertença a algum anatomista do passado. São exemplos do que eu digo o gânglio de Gasser (neurogânglio sensitivo do trigêmio), as pregas de Kerckring (da mucosa do intestino delgado) e de Houston (da mucosa do reto), o coxim de Bichat (a massa adiposa da bochecha), a cisterna de Pecquet (dilatação da extremidade inferior do ducto linfático), a válvula de Braune (na junção do esôfago com o estômago), a aponeurose de Dupuytren (fáscia que reveste os músculos da palma da mão), o forame de Vesalius (orifício do osso esfenóide), o ducto de Stenon (da glândula salivar parótida)...
A relação é por dizer interminável. Máxime porque, numa certa fase da retalhação anatômica, passaram a nomear os ângulos. O que Broca, Camper, Alsberg, Daubenton, Mulder, Ranke e tantos outros fizeram ao crânio. Os espaços. O que Traube, com igual espírito, fez ao lugar ocupado pelo estômago... Sei não, mas fica a parecer com outros loteamentos por aí, que não primam exatamente pela honestidade. O espaço de Donders, que fica entre o dorso da língua e o céu da boca, quem é que cai nessa? Só o incauto - e com alguma salivação, acrescento.
E não parou aí a volúpia loteadora. Com o advento da microscopia óptica, os histologistas e os citologistas entraram na jogada. E tome aparecer uma alça de Henle no rim, uma célula de Clara no pulmão, outra de Küpffer no fígado. Até mesmo ilhotas, como as de Langerhans no pâncreas. (Ah, o ideal de possuir uma ilha que a poucos é dado concretizar!) Também os embriologistas. E tampouco sei onde tudo isso vai parar. Agora, principalmente, que a microscopia eletrônica mostra tudo em nível subcelular. Está aí o aparelho de Golgi que não me deixa mentir.
Ainda bem que não é pela enfiteuse. Neste regime, além de pagar foro anual a essa turma toda, seríamos obrigados a conservar órgãos, aparelhos e sistemas... sem qualquer deterioração. E isso, meu prezado senhor, simplesmente não o fazemos.
Aguardando uma resposta abonadora, renovo-me seu, sinceramente
Dr. Carta Pácio."
Que desatualizados cartapácios não deve ter lido o Dr! Para ignorar que a nomenclatura anatômica de há muito aboliu os epônimos. Pois estes, além de nada significarem morfológica e funcionalmente, por vezes não passavam de uma injusta homenagem histórica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário