sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A ADULTERAÇÃO DE PROVÉRBIOS

Ao folhear o livro "O Padre do Jumento", sobre a vida e a produção intelectual do (nosso) Padre Antonio Vieira, a quem devemos o existir literário do "ciclo do jumento", algo de imediato me prendeu a atenção. Em suas páginas 126-127, uma lista de "alguns provérbios que chegaram a nossos dias adulterados, ninguém sabe por quem", conforme textualmente registram Amorim Filho e Expedito Duarte, os autores do mencionado livro.
É que, na qualidade de adulterador de dez dos provérbios publicados, quero lá a minha autoria reconhecida.
Foram inicialmente publicados em maio de de 1984, na coluna "Gente e Fatos", do jornalista Edmundo Vitoriano. Depois que José Raimundo Costa, jornalista e também adepto do passatempo de adulterar provérbios, começou a divertida série. Eu recordo que, na época, até criei o nome "paravérbio" para rotular o que estávamos a fazer. Ao inventar essas frases que não transmitiam uma experiência nem davam um conselho, que são os fins usuais dos provérbios. Aliás, chegavam a fazer o oposto, na qualidade de meros produtos do ludismo verbal.
Posteriormente, a José Costa e a mim, juntou-se Lauro Ruiz de Andrade nesse espirituoso ofício de adulterar provérbios. De sorte que somos os três, não obstante o pater semper incertus dos latinos, os autores da lista publicada no livro de Amorim Filho e Expedito Duarte.
Relaciono os meus "paravérbios" que saíram nessa lista:
Prov. - Vaso ruim não quebra.
Parav. - Vaso ruim, mão quebra.
Prov. - Cada um por si e Deus por todos.
Parav. - Cada um por si e deu para todos.
Prov. - Antes que cases, vê o que fazes.
Parav. - Antes que cases, vê: que pazes!
Prov. - Cesteiro que faz um cesto faz um cento.
Parav. - Cesteiro que faz um sexto faz um... lento.
Prov. - Deus dá o frio conforme o cobertor.
Parav. - Deus dá frio: conforme-se com o cobertor.
Prov. - A situação está mais pra urubu do que pra colibri.
Parav. - A situação está mais pra urubu. Pra que coibir?
Prov. - Não adianta chorar sobre o leite derramado.
Parav. - Não adianta chorar sobre o leite, desmamado.
Prov. - Ao vencedor as batatas.
Parav - Ao vencedor as mamatas.
Prov. - A fé remove montanhas.
Parav. - Maomé remove montanhas.
Prov. - Águas passadas não movem moinhos.
Parav. - Águas passadas não redemoinham.
Não se trata de nenhuma novidade o passatempo de parodiar provérbios. Fazer jogo de palavras com as expressões e os ditos mais conhecidos, dando-lhes sentido novo, chegou a ser moda no século XIX. E, ao que parece, continua sendo, visto que os humoristas não pretendem abandonar o rico filão. Do qual já foram faiscadas, entre tantas, as seguintes pepitas: "o Brasil espera que todos comprem seu dever", "depois da tempestade vem a ambulância", "quem ama o feio é porque o bonito não aparece", "quem dá aos pobres ou empresta... adeus", "a ociosidade é mãe de todos os vices" e "quem vê cara não vê que horas são" (esta última encontrada pelo Barão de Itararé).
Acerca desse fenômeno humorístico, talvez haja explicações. Uma delas, apela simplesmente para o princípio de que "uma grande verdade é aquela cujo contrário é igualmente uma grande verdade". Outra, como diz Lopes Ribeiro, é porque "a nova forma de viver à pressa tenha trazido como consequência natural a morte dos provérbios, essas muletas do bom senso que condensam uma longa experiência, previnem perigos ou dão bons conselhos". E, como não surgem novos provérbios, é que os "paravérbios" vão tomando o lugar dos velhos anexins.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

INIMIGOS NATURAIS

O mundo está cheio dos chamados inimigos naturais. Constituindo o mais clássico dos exemplos o cão e o gato, o qual é aproveitado ad nauseam nas histórias em quadrinhos e nos filmes de desenho animado. No entanto, eles não são inimigos exclusivos, já que o cão teme a carrocinha, a vacina, o foguetório e a tina d'água e hostiliza abertamente o carteiro. E porque o gato também costuma atazanar o rato, o qual, por sua vez, assusta o elefante... Quanto ao elefante, ah, este incomoda muita gente!
Outros inimigos naturais: o balão e o alfinete, a vidraça e o bodoque, o sapato e o chiclete, o carro e a motocicleta, a farofa e o ventilador, a árvore e o machado. Etc. Não passando de uma grande ingênua a árvore que disse para a floresta: "Calma, arvoredo, o machado é um dos nossos". Pois, vá lá que o cabo do instrumento seja de natureza vegetal, como considerou a arvorezinha, mas... o seu cortante ferro, hein? É uma meia verdade, isso sim. Além do que é preciso ser muito sândalo para, depois do que acontece, ainda perfumar o machado, esse vândalo!
Também a patroa e a empregada, o álcool e o fígado, o sal e a pressão, Deus e o diabo (vai se dar muito mal quem acender uma vela para ambos), a bactéria e o antibiótico, o chinelo e a barata (que se for esperta tampouco atravessa galinheiro), a crase e o estudante, a pimenta e as hemorróidas, a sogra e a humanidade, a pedra e o dedão do pé... A propósito, chute só onde Drummond foi buscar inspiração para escrever o seu conhecido poema.
E a lista é interminável! O caloteiro prejudica o garçom. Que dá o troco na mesa seguinte, aliás, esquece-se disso. A roleta de ônibus martiriza o gordo; a fumaça, a colmeia; a mala (sem alça), o carregador; o banco, o devedor... Até chegar ao bicudo que - exemplo extremo - é inimigo nato de outro igual. Quando eles tentam se beijar, naturalmente.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

VOCÊ E EU

  • Você toca tuba na banda e eu espremo limão.
  • Você encontra o paraíso perdido e eu o interdito.
  • Você é superoriginal e eu já vi esse filme antes.
  • Você é motoqueiro e eu respeito jamantas.
  • Você entra com o lombo e eu com o jucá.
  • Você vai ver e eu não estou lá na esquina.
  • Você espera na fila e eu tomo cafezinho na gerência.
  • Você empurra o carro e eu puxo o freio de mão.
  • Você procura a rolha e eu tomo o champã.
  • Você posa bonito e eu uso filme vencido.
  • Você dá saltos ornamentais e eu esvazio a piscina.
  • Você empurra o carro alegórico e eu desfilo.
  • Você vai à Pasárgada e eu deponho o rei.
  • Você vai à guerra e eu faço o fogo amigo.
  • Você carrega o piano e eu levo a vida na flauta.
  • Você paga e eu como o pato (ao tucupi).
  • Você carrega sua cruz e eu, a minha (que é de isopor e tem rodinhas).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

DR. CARTA PÁCIO E SUAS MEIAS PALAVRAS

No tempo das diligências máquinas de escrever, eu recebia muitas correspondências do Dr. Carta Pácio. Em geral, eram cartas bastante longas e minuciosas. Nesta, porém, Dr. Carta Pácio abandonou o habitual estilo gongórico e foi direto ao cerne de uma questão.

"Prezado senhor:

O que vou lhe comunicar é baseado em pesquisas que tenho feito sobre a vida e a obra de um notário chamado Leclair. Foi ele que, no ano de 1843, descobriu que, se as palavras fossem cortadas ao meio, horizontalmente, e deixadas apenas com a metade superior, essas palavras seriam lidas e reconhecidas.
Com os pontos, as vírgulas e as reticências sendo sacrificados, dificuldades surgiriam para se pausar os textos. Entretanto, as aspas, os apóstrofos e os acentos seriam preservados. Meno male!
Pense o senhor na economia que o mundo faria em tintas de impressão. Atrevo-me a profetizar que, no futuro, os cartuchos de tinta estarão entre as coisas mais caras e inacessíveis. Poderá inclusive a humanidade sucumbir numa guerra dos pigmentos.
Avalie também como ficaria melhor a vida das pessoas que leem nas entrelinhas, já que elas (as entrelinhas) ficariam mais generosas. E os analfabetos, como num passe de mágica, seriam transformados em cidadãos meio-analfabetos, o que reduziria à metade essa chaga nacional.
Siga os ensinamentos de Leclair, meu senhor, e não tema que os outros o rotulem de um homem de meias palavras.

Cordialmente seu,
Dr. Carta Pácio"

Não é que o Dr. tem razão! Assim é que, o mais cedo possível, levarei minha máquina de escrever a um técnico a fim de que ele suprima a metade inferior das letras. Enquanto isso, eu não vou sublinhar mais nada.