sexta-feira, 28 de agosto de 2009

EM CARTAZ - II

CHICAGO VICE
Estados Unidos, 1954. Rip Altman é um dos homens de ouro da polícia de Chicago. Logo no início da história, ele aparece desmantelando uma rede de prostituição - sem tocar nas camas! Em razão disso, é promovido em periculosidade de trabalho. E recebe a incumbência de vigiar, noite e dia, os passos de Carmine. O mafioso Carmine que, com mãos de ferro e pés de barro, controla toda a famiglia Gambino. Altman nisso é inexcedível. Gruda. Segue Carmine em todos os passos, só o perdendo de vista nos momentos em que o chefão mafioso planta bananeira. Pelas tantas, o homem da lei surpreende Carmine num descampado, encosta-o num canto de parede... É quando o mafioso se confessa arrependido da vida de lenocínio, pistolagem, tráfico de drogas etc. E diz que vai largar tudo para ficar apenas na extorsão. Convencido da regeneração de Carmine, Altman fica seu amigo e até aceita comer com ele uma pizza de cogumelos, decerto alucinógenos. E que tem efeitos inclusive sobre o cérebro do roteirista pois, daí para frente, o filme se mostra pouco compreensível. Fosse projetado ao contrário, talvez as coisas fizessem sentido, se encaixassem...
MORTE NO TONEL
Mercado Comum Europeu, 1985. Drama baseado na vida real de Joachim B., um cidadão português de ascendência materna alemã. Em face da recessão econômica em seu país, Joachim B. emigra, indo fixar residência na Baviera, Alemanha. Após algumas dificuldades, ele arranja emprego numa fábrica de cerveja. De função em função, chega à mais ambicionada delas. A função de primeiro-amassador de lúpulo da fábrica, a qual exige pés escrupulosamente limpos. Em contrapartida, dá-lhe renda suficiente para fazer generosas remessas de dinheiro à esposa que ficou em Portugal. Um mês a remessa não se materializa, e a mulher recebe uma má notícia. Joachim teria morrido afogado num grande tonel de cerveja. Ela viaja às pressas para a Baviera, os diretores da fábrica acodem ao aeroporto da região para recebê-la e... a má notícia é confirmada. Inclusive circunstanciada: Joachim tivera uma morte terrível, porém rápida (apesar de seu vaivém final entre o tonel e o mictório). Em prantos, a viúva toma o primeiro avião de volta para Portugal. Não sem antes apanhar, a modo reparatório, duas malas alheias na esteira do aeroporto.
O EREMITA
Grã-Bretanha, 1978. Apesar do título é o filme que apresenta as cenas com os maiores ajuntamentos humanos da filmografia mundial. São as pessoas que povoam os pesadelos do eremita. E, na pele deste, acha-se Daniel O'Brega, um ator irlandês que dispensa apresentação (pelo menos neste papel). O eremita é um desiludido com o mundo dos homens, mas não com o dos morcegos. Vive numa totalmente escura furna, de onde só sai para comprar gelo redondo. Certa manhã, a sua faxineira o encontra com febre e agonizante. Internado á força no Hospital de Base de Wakefield, eis o diagnóstico que lhe dão: histoplasmose. Uma doença da qual ele fica bom, só por pirraça com os médicos e o padre da extrema-unção. De volta à vidinha boa de antes, dessa vez desiludido com o mundo dos morcegos - transmissores da histoplasmose - o eremita vai morar num poço artesiano que secara. Mas que, no primeiro inverno, reenche de água, afogando-o. É um filme que até hoje não foi exibido no condado de Yorkshire, o local da filmagem. Depredariam o cinema. Por conta do calote que o veterano diretor Paul Hunter, 18, passou nos figurantes por lá recrutados.
NUNCA TE VI
Brasil, 1986. Com Paulo César Aperreio, no melhor papel de sua carreira. Ele é Macondo Ferraz, um bem-sucedido homem de negócios paulista (entre suas atividades, está a de dirigir uma carteira de investimentos com a qual ajuda as pessoas até que elas fiquem falidas). E que, entediado com o trabalho, resolve passar umas férias na Europa e na França, com conexão na Bahia. O mau tempo, porém, obriga o avião em que ele vai a fazer um pouso de emergência no Dedo de Deus, em Teresópolis. E, quando melhoram as condições meteorológicas, uma surpresa desagradável: o avião não pega nem com empurrão. Com o sistema de comunicação avariado, resta a passageiros e tripulantes a espera pelas equipes de busca e salvamento. Elas chegam dias após, e todos são resgatados com vida. Todos, menos Ferraz cuja ausência é diminuída por uma ossada que as equipes descobrem no local. Detalhe crucial: uma trempe, com as cinzas ainda quentes, parecem apontar na direção de um canibalismo por parte dos sobreviventes. Mas, ao fim dos interrogatórios policiais, são todos inocentados. Sob protestos de um detetor de mentiras importado dos Estados Unidos (mentira, importado do Japão). Rodado com o nome provisório de "Nunca te vi, sempre te comi", por sugestão do distribuidor o filme teve o título encurtado. Para não confundir o cinemeiro pornô.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A CRÍTICA INÉDITA SOBRE A OBRA LITERÁRIA DE PAULO GURGEL

PAULO GURGEL: HUMORISTA E POETA
O médico, poeta e humorista Paulo Gurgel é também ficcionista nas horas vagas. E horas vagas para ele é o tempo disponível entre a profissão, a poesia e o violão. Que me desculpem a rima. Mas o ritmo poético e o acorde acordam nesse homem o humor, que o pratica com grande sobriedade e agudo senso crítico. Sensível à beleza artística, é um expert da criatividade.
Vez por outra, nos mostra nos suplementos literários a dimensão de seu talento inventivo numa simples crônica ou estória engraçada. Diríamos, mas propriamente, de fino humor, onde a ironia desponta aguda, ferina, insinuante, inusitada. É este o poeta que temos agora em mãos, participante de duas antologias, a primeira datada de 1981, VERDEVERSOS, e a segunda com o título ENCONTRAM-SE, do ano em curso.
A publicação dos livros mencionados é da responsabilidade do Centro Médico Cearense, e na primeira antologia nada menos de dez figurantes são encontrados. Na segunda, a lista estica para quatorze. E isto prova que, se a coisa pega, vamos longe. Médicos escrevendo poesia? - ora direis os tolos! E nós respondemos que é o que de melhor pode acontecer nos dias de hoje. Há os males do corpo e os da alma. Os nossos médicos-poetas cuidam dos dois. E em nosso meio já temos cultores das musas de alto nível, de nome nacional, como Airton Monte e Caetano Ximenes Aragão, para citar apenas dois do VERDEVERSOS, sem contar com Pedro Henrique Saraiva Leão, que saiu do movimento concreto do Ceará, lançado em 1957, e que não está incluído entre aqueles poetas.
Mas, o que vem a ser a poesia de Paulo Gurgel? O humor estaria ausente? Não. E até isto se nota em sua minibiografia. Vejamos: "Detesto ser levado a sério; o contrário, também." Em outra passagem o temos assim: "Amante dos livros, dois deles marcariam-lhe profundamente a juventude: 'Os Lusíadas', de Homero, e 'Ilíada", de Camões." (O grifo é nosso, mas a afirmação é dele.) "Abriram-lhe tanto a visão que fez um exame de vista sem que o oculista lhe dilatasse a pupila."
Isso são trechos esparsos de sua minibiografia (que não é tão mínima assim). O humor também invade a prosa desse cartunista da palavra e da imagem poética, que nos deu apenas o espaço do quarto minguante para redigir estas palavras: "Quero só quatro linhas para botar num livro". E aí estão mais que "quatro palavras" que, contudo, não dão ainda para fazer um juízo crítico de seus trabalhos inseridos nas publicações já referidas. Mas não podemos fechar esta nota sem antes dar ao público uma demonstração de sua criatividade poética:
"Que anjos são esses
Que se nutrem da celestial ambrósia
Mas que não diligenciam
Quando mastigo cogumelos venenosos?"
Humor cáustico, mas humor, também aqui se vê. E só ele, entre nós, o faz com tanta autenticidade assim. Vamos à frente, poeta; não há retorno para nada. O que está morto está perdido. Às bruxas o passado e o louro dos herois.

José Alcides Pinto fez essa apreciação em 1983, a respeito do trabalho literário de Paulo Gurgel, entregando a este uma cópia para a publicação, o que só acontece agora.

PECULIAR APRECIAÇÃO DO LIVRO "SOBRE TODAS AS COISAS" EDITADO PELA SOBRAMES - CEARÁ
Chegou-me às mãos, por gentileza de Geraldo Bezerra (45), o livro SOBRE TODAS AS COISAS - EDIÇÃO CONJUNTA - SOBRAMES/CE (1). Então, eu li Celina Pinheiro(5), Francisco Medeiros(37), Helvécio Feitosa(67), Luiz Alberto(99), Marigélbio Lucena(119), Hamilton Monteiro(55), Emanuel Carvalho(27), João Wilson(91), Luiz Moura(107), Dalgimar Meneses(17), Ícaro Meton(83) e Paulo Gurgel(129).
Foi então que, dando asas à imaginação, eu, fugindo do QUOTIDIANO(101), agarrei um COMPANHEIRO(102) e dizendo É PRECISO VIVER(52), fomos ver o NOTURNO DA CIDADE GRANDE(60). Antes de relatar esta CRÔNICA DA NOITE(93), digo: - nós, TORCEDORES DE FUTEBOL(125), separados do CARTOLA DO FUTEBOL(127), fomos ver MEU TIME DE FUTEBOL(126) que estava EM CARTAZ(135) elevado. MEU CORAÇÃO I(85), sem REFLEXÃO(103), sentiu o jogo CUMBUCO(55).
Deixei-o lá, saí, só, procurando BILACA(40), com a INQUIETUDE(63) e o INDISCIPLINADO(113) e ADMIRÁVEL MUNDO LOUCO...(91) cheio de MUTAÇÕES(48). Então, HOMO FALLUS ERECTUS(42), apertei o SEGUNDO(131) MEU CORAÇÃO II(86) cheio de DESEJO(85) e FEITIÇARIA(64). Era uma TARDE ABSURDA(62), véspera de CARNAVAL(105) e o CARNAVALESCO(14) em TEMPO REDESCOBERTO(65) aguardava o DESENLACE(12), sim, UM ESTRANHO ENTERRO(71), CICATRIZ(117) de O INFORTÚNIO DE JUCA(75), vítima de O MAL-DO-ZECA(79). Era como um NATAL VENDIDO(95) e eu, sentindo INSÔNIA(59) e cheiro de DERROTA(28), lembrando os REFLEXOS DO NEGRO(30), onde SER OU NÃO SER... HONESTO(5) era MAGRA FANTASIA(32), propus á ROSA(49), sim, a VOCÊ(58): - SEJAMOS NÓS(44).
Realizamos então A PRIMEIRA FUGA(17): era O DIA DE SÂO SARUÊ(83) e deixamos "O SERTÃO EM POLVOROSA(67). PERDÃO... ERA UMA VEZ UM PAJEÚ(84). Mas MARIA CLARA(103), a BRANCA DAS NEVES(137), aproveitando AS COROAS DE APOLO(133), disse-me: escreve a ELEGIA EM VIDA A JOSÉ DE AGUIAR RAMOS,VAMOS CONSTRUIR O HOSPITAL DO CÂNCER(119), pois CADA MOMENTO, A VIDA(46) é AMOR NA CONCEPÇÃO DO POETA(37).
Eu, com FEBRE(33), compus este CANTO ENIGMÁTICO(105), autêntica SÚPLICA DE NATAL(61), endereçando A VOCÊ, MEU FILHO, MINHAS ESPERANÇAS(97) pois, APESAR DE TUDO(34), NINGUÉM SE LEMBROU DE TI...(53), mas AINDA PRESTA O TEU AMOR(45).
Rumei então para NOVA IORQUE(31) onde daria a AULA DE 14 DE MAIO DE 1975(21) sobre O QUE PODE HAVER DE COMUM ENTRE: INVERSÃO UTERINA TOTAL, O REDEMOINHO MARÍTIMO DE MAELSTROM E A MANOBRA DE GUAXINIM(122) e soltei THE ATOMIS BOMB(43) e TAU SALOMONIS(25) com as MEMóRIAS DE UM ATESTADO MÉDICO(107).
Com A MARCHA DO TEMPO(50), olhando OS OLHOS DA MULHER AMADA(99), UMA SEMANA MAIS TARDE(43), entre REFLEXÕES(35), à hora d'O JANTAR(9), uma CONCEPÇÃO(38): - SER POETA(29), é UMA ESTÓRIA DE EMERGÊNCIA(89) NO UMBRAL DO ANÍSIO(27), cresce como BOLA DE NEVE(51) da INFÂNCIA(87), após a BALADA DO POETA SEM NOME(100), dedicada à MÃE(10).
Em ANTÍTESE(104), após o EXAME PRÉ-NUPCIAL(11) e consultar RELÓGIOS(7), resolvi escrever UM POEMA PRA VOCÊ(96). Era a VISITA DA POESIA(56): - O CURIOSO CURIÓ(116) desprendeu uma FORTUITA LÁGRIMA(39), sequei-a com FÓSFOROS(129).

Texto escrito no Rio, em 11 de abril de 1988, por Tito de Abreu Fialho, então presidente da SOBRAMES - Nacional, e enviado ao Ceará para os participantes do citado livro.

LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA "EFEITOS COLATERAIS"
Minhas senhoras; meus senhores; meus colegas.
O caro, preclaro, e raro colega Luiz Gonzaga de Moura Júnior, presidente desta entidade médico-literária, solicitou-me apresentar a vocês os demais colegas presentes nesta antologia. Mormente para cumprir um protocolo, eis que são todos conhecidos e apreciados.
Permitam-me - contudo - de início nomear outros, os quais nesta crestomatia não figuram: Francisco de Castro / AfrânioPeixoto / Oswaldo Cruz / Miguel Couto / Clementino Fraga, pai e filho / Fernando Magalhães / Maurício de Medeiros / Aloysio de Castro / Deolindo Couto / Peregrino Junior / Carlos Chagas Filho / Pedro Nava / Ivo Pitanguy / o nosso Airton Monte, todos figuras de truz da Medicina e da Literatura brasileiras.
Como são, igualmente - quiçá com a mesma proficiência - os colegas hoje e agora reunidos nesta coletânea, a demonstrar, mais uma vez, que "letra de médico" não é tão ilegível, como apregoam alguns: (...)
PAULO GURGEL, verdeversejando desde 1981, terça com a mesma destreza a crônica, o humor, e o conto, de maneira fluida, condensando-se ao sabor do ar expirado por seus temas prediletos. Pneumologista de escol, não padece daquela dispneia intelectual, tão encontradiça, a qual nem os médicos conseguem tratar.

Discurso proferido por Pedro Henrique Saraiva Leão (um dos participantes da antologia), em 14 de dezembro de 1990, na noite de lançamento do livro "Efeitos Colaterais".

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A CRÍTICA PUBLICADA SOBRE A OBRA LITERÁRIA DE PAULO GURGEL

UMA ANTOLOGIA DE POETAS MÉDICOS
I
São oitenta e três poemas e dez poetas médicos reunidos numa antologia ("Verdeversos"), numa bem apresentada edição do Centro Médico Cearense, com os respectivos cuidados de edição, paginação e ilustração. (...)
II
Finalmente, Joâo Bosco Sobreira e Paulo Gurgel Carlos da Silva. O primeiro participou da antologia "Queda de Braço" e tem um livro de poemas inédito "A Pedra e a Fala". Do segundo há uma curiosa e irreverente minibiografia que antecede os seus dez poemas. (...)
Humor e irreverência , talvez um toque de non sense, encontramos nos poemas de Paulo Gurgel "Vesperal" e "Profética". Bem anda o poeta, em tempos "reaganianos" - como escreve Millôr - em aludir ao mito do caubói invencível John Wayne. A preocupação social nos poemas "Desfazenda" e "Auto do Compadecido". No final deste poema, o entretexto cresce na medida em que o poeta escreve: "As minhas mãos / Uma sabia da outra". Um momento de evocação da infância recuperada aparece no sugestivo poema "Quintal de Infância".
Carlos D'Alge
In: Jornal "O Povo", fevereiro de 1981.

ESTANTE DE LIVROS
Dez médicos puseram as mangas de fora e reuniram em "Verdeversos" as suas poesias: Airton Monte, Alarico Leite, Caetano Ximenes, Emanuel de Carvalho Melo, João Bosco Sobreira, José Jackson Sampaio, Maria Irene Nobre, Lucíola Rabelo, Paulo Gurgel e Winston de Castro Graça.
Os poemas de Paulo Gurgel, quase todos, trazem a marca do grande poeta. (...)
Paulo Gurgel é, para mim, uma revelação poética admirável. O poema "Quintal de Infância" é um quadro estético, e espelho de uma sensibilidade artística incontestável: (...)
A Paulo Gurgel, que se ocupa aqui de cousas triviais, pode-se aplicar as palavras de Otto Maria Carpeaux: "A arte é um dom do Céu, mas tem que servir à Terra".
"Oriental" é um poema que mostra a radiografia do homem: (...)
Estou certo de que Paulo Gurgel ainda nos vai fazer surpresas maravilhosas no campo da poesia.
Abdias Lima
In: "Tribuna do Ceará", 18 de março de 1981.

LIVROS
"Encontram-se" neste livro quatorze luminares da medicina brasileira: Beto Bezerra, Dalgimar Meneses, Emanuel Carvalho, Francisco Nóbrega, Francisco Sampaio, Heitor Catunda, Jackson Sampaio, Lucíola Rabello, Paulo Gurgel, Ricardo Augusto R. Pinto, Rose Mary M. da Silveira, Sérgio Macedo, Wilson Medeiros e Winston Graça.
Encontram-se para, em verso e em prosa de claridade lunar ou solar, nos dar conselhos sobre a saúde, falar sobre o mistério da vida, sobre os problemas da carne, as saudades dos cais, para protestar contra um mondo robotizado ou rir (Paulo Gurgel) de tudo, inclusive de si próprio.
PAULIFICANTE
PAULO, não é que nasci? Tinha um grande projeto,
-----fluvial, de atravessar caudaloso o
PAUL da humana existência, mas
-----represo-me, estagno-me - sorte
PAU - termino por saber que me espreita uma
PÁ de terra e que, dia qualquer,
-----eu morro
P... da vida.
Paulo Gurgel é um humorista à Leon Eliachar. É pena que não esteja enriquecendo as revistas do Sul.
Abdias Lima
In: "Tribuna do Ceará", 15 de junho de 1983.

CRIAÇÕES
"Criações", a nova antologia que o Centro Médico Cearense acaba de publicar, é um livro que mesmo não se destinando à realização de uma ambicionada carreira literária, enfeixa em suas páginas a virtude de provocar outras reflexões. No geral, trata-se de um projeto que, se por um lado peca pela falta de unidade estética e mundividencial, por outro assombra pela qualidade de alguns textos que apresenta, assaltando, muitas vezes de surpresa, a sensibilidade literária do próprio leitor. (...)
Sobre a irreverência do discurso de Paulo Gurgel, eu teria muita coisa a dizer, mas, contraditoriamente, eu diria que nada tenho a acrescentar. Gostaria que os seus textos fossem assimilados tal como ele os concebeu, assim de forma tão irrecusavelmente metafórica que parecem espreitar a sua própria decodificação.
No mais, gostaria de aqui registrar a importância dessa iniciativa do Centro Médico Cearense, no sentido de divulgar, através de sucessivas edições, a produção literária de seus associados, erguendo um empreendimento inquestionavelmente pioneiro no âmbito das associações profissionais existentes no Ceará.
A Editora do Centro Médico Cearense, portanto, está de parabéns, como de parabéns estão os seus articuladores, especialmente os médicos Emanuel Carvalho e Paulo Gurgel, responsáveis pelo seu programa editorial. E se mesmo, como insinuei, ainda não atingiu um estágio capaz de polarizar a ambivalência por mim reclamada, no início desta apresentação, isto se deve ao fato de o Centro Médico Cearense, antes de ser uma sociedade de escritores, se constituir numa escola que apreende a vida exatamente ao contrário daquilo que aprendemos na escola, dando-nos, assim, a lição de que literatura é vida e de que viver nem sempre representa uma opção pelos descaminhos da realidade.
Dimas Macedo
In: "Diário do Nordeste", 28 de fevereiro de 1986, e nas páginas 40-42 do livro "Ossos do Ofício", publicado pela Editora Oficina, em Fortaleza, 1992.

DIAGNÓSTICO POÉTICO E FICCIONAL
Paulo Gurgel e Emanuel de Carvalho reuniram-se com médicos seus amigos e, através da Editora Centro Médico Cearense, publicaram "Criações" - um belo e sugestivo título para a antologia que ora apresentam ao público cearense. Cearense, dizemos nós, porque dificilmente esta equipe de poetas ultrapassará as fronteiras do Estado, não pela qualidade dos poemas, que são bons, mas por falta de distribuição, que é esse, ainda, o maior problema para quem escreve e reside na província. (...)
Voltemos, agora, ao livro - "Criações". Há um fato de muita singularidade neste livro: são as "biografias" dos autores apresentadas (e animadas) pelo poeta Paulo Gurgel - um homem muito inteligente e portador de um espírito de observação fora do comum, dotado de um senso de humor raro entre escritores, mesmo ao nível nacional. O livro não faria sentido algum se o leitor não começasse pelas orelhas - orelhas de bom sinal, por sinal, diga-se de passagem.
Os antologiados - nove ao todo - estão reunidos aqui, neste volume de prosa e poesia, cada qual dando a dimensão de seu talento, de sua criatividade, de sua veia poética ou ficcional. É um grupo da pesada e que pesa muito nas letras de nosso Estado. Pela ordem de entrada no florilégio: Dalgimar Meneses, Emanuel Carvalho, Geraldo Bezerra, Hamilton Monteiro, Hugo Barros, Luís Teixeira, Paulo Gurgel, Pedro Henrique S. Leão e Sérgio Macedo.
José Alcides Pinto
In: "Tribuna do Ceará", 24 de maio de 1986.

SOBRE TODAS AS COISAS E ALGO MAIS
I
Esses médicos do Ceará são fogo. Além de bons, em muitos casos ótimos, excelentes profissionais, muitos deles se destacam também em outras atividades, notadamente no campo da Cultura, da Literatura em particular. Existe aqui inclusive uma seção da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, que há vários anos vem atuando com muita garra na edição de livros, oito ao todo até o momento, prosa e poesia, contando com este interessantíssimo "Sobre Todas as Coisas", saído recentemente. A exemplo de cinco já publicados, este agora reúne um bom número de médicos escritores, explorando (no bom sentido) mais de um gênero literário, com destaques para o conto e a poesia. (...)
VIII
Dizer que Paulo Gurgel é um dos sujeitos mais inteligentes aqui da terrinha, criativo (e engenhoso) como poucos é repetir o óbvio. Quem lê o que sai dele em nossa imprensa sabe disso, daí o número de leitores (futuros eleitores?) que ele tem, atentos sem tirar nem pôr à sua prosa, sempre gostosa e bem humorada, sem esquecer, é claro, o seu estilo escorreito e muito bem servido, em termos de língua... brasileira. Sim, ele escreve como o povo fala, sem arrebites digamos gramaticoides, o que seria realmente uma besteira. A parte dele encerra este "Sobre Todas as Coisas" e encerra otimamente, com a gente podendo falar, por isso mesmo, num final feliz. São crônicas e estórias, numa delas ( "Em Cartaz") fazendo brincadeiras com filmes (?) - tudo muito engraçado, à maneira do autor. Médico, está certo, dos bons de nossa cidade, com uma excelente folha de serviços, mas para mim, que ainda não o procurei para uma consultinha, um escritor de mão cheia, legibilíssimo, mesmo quando se está assistindo a uma novela tipo "Sassaricando".
Antônio Girão Barroso
In: "Revista", coluna do "Tribuna do Ceará", 30 de janeiro de 1987.

O CANTAR E O CONTAR SOBRE TODAS AS COISAS
Neste entardecer de fim de milênio, onde as ameaças à raça humana são inúmeras e insondáveis, a palavra parece ser revisitada e recuperada por alguns grupos atentos à integridade do homem. Neste sentido, o verbo se faz remédio e a Literatura se faz milagre. (...)
"Sobre Todas as Coisas" traz variadas texturas e variadas sensorialidades onde o leitor, feito beija-flor, parte por diferentes texturas e variadas paisagens. Alguns dos construtores desta antologia, já conheço de outras tramas literárias e pude viajar através das reafirmações do estilo de pensar e vestir a palavra de cada um; é o caso de Paulo Gurgel, Hamilton Monteiro e Celina Pinheiro.
Paulo Gurgel recria a palavra dentro de uma imagística cinematográfica e hemorrágica, onde a realidade é sempre mais inédita que a fantasia e o espanto afoga sempre o leitor aturdido e perplexo. Deste modo, Paulo Gurgel é escritor engenhoso e iluminado por soluções, individualíssimas e insuspeitas.
Diogo Fontenelle
In: "Tribuna do Ceará", 21 de novembro de 1987.

MÉDICOS ESCRITORES
I
Com um título geral e significativo (para o texto leia-se significante) chega-nos às mãos a antologia "Sobre Todas as Coisas", da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional do Ceará, num total de treze participantes - poetas e ficcionistas - já com o nome firme nas letras, todos demonstrando sensibilidade e dom para a literatura e as artes. (...)
II
As últimas páginas de "Sobre Todas as Coisas" são preenchidas por Paulo Gurgel, um homem de letras dos mais completos de sua geração. É um artista nato. Talento vasando por todos os poros. Mergulhado no absurdo existencial, na vanguarda criativa, tira de tudo isso os efeitos mais surpreendentes. É um idealista. Seu estilo é inconfundível. Sabe lidar com o reino das palavras e seus encantos. Dono de um potencial de fabulação imenso, com alguns contos já premiados, é um dos pontos altos desta antologia. Suas estórias (crônicas, poemas, fábulas?) oscilam entre o picaresco e a prosa de costumes (confidencial). Trabalha com os signos e os signos eróticos. É o desenhista e o escultor da palavra. O cotidiano é a menina de seus olhos. A condição humana está por inteiro em seus escritos.
José Alcides Pinto
In: "Tribuna do Ceará", 16 de abril de 1988.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

COISANDO INVENTOS

O homem enquanto espécie, ao longo dos milênios, tem progressivamente atulhado os locais onde mora, estuda, trabalha e se diverte de uma infinidade de objetos. São objetos que ele criou, está a criar, para o seu conforto, adestramento, exercício das profissões e entretenimento. À satisfação, portanto, de suas enormes necessidades de espécie mais evoluída do planeta. Antes disso, quando ainda não havia chegado a Homo habilis, e suas exigências era bem menores, ele apenas se cercava de uns poucos objetos. Os trecos que ele ia achando "pelaí" e botando neles as devidas serventias.
Foi somente quando o homem se fez artesão que a coisa deslanchou. Pois, em virtude da habilidade conseguida, ele passou a criar os objetos de que necessitava. A cadeira, por exemplo, para atender ao corpo que pedia o "de-sentar". E cada artefato que ele criava tinha uma só utilidade, mas não por muito tempo. Pois, adiante, aparecerem os sofisticadores dos inventos. No caso da cadeira: 1) quem a colocou entre varais para transformá-la numa liteira; 2) quem a pôs no guincho para cinematografar; 3) quem lhe acrescentou armações curvas para que pudesse balançar; 4) quem a equipou de fios elétricos para ser capaz de eletrocutar...
(Não, a sela não é cadeira; constitui um invento à parte.)
Assim como há os sofisticadores, há os subvertedores dos inventos. Aqueles que encontram para a coisa inventada a sua utilização num contexto, digamos, não familiar. Ora, se por um lado, todo e qualquer invento integra o plano da realidade, por outro, existe nele o germe do suprarreal. E os subvertedores sacam bem isso. Quando, por exemplo, descobrem (Chicago, anos 30) que o estojo do violino é bom também para carregar metralhadora. E, a propósito de ambos os grupos, o leitor me permita esta síntese: são os sofisticadores que aprimoram os inventos (o canivete suíço é a obra-prima deles!), mas são os subvertedores que conferem às coisas inventadas as mais surpreendentes funções.
Para ilustrar o que acabo de dizer, apreciemos as cenas seguintes: o operário da construção civil a trinchar o bife do almoço com a colher de pedreiro / o malandro a marcar o samba tamborilando numa caixa de fósforos / o médico a pesquisar o reflexo de Babinski por intermédio da chave do carro / o molecote que fui a soprar guarânia no pente com papel / e você aí a limpar o cabeçote do gravador com o auxílio de um cotonete... As provas de que, em tempo integral, somos mesmos uns subvertedores dos inventos. Na razão direta em que os objetos todos - do cotidiano - estão aí a pedir algum uso surreal.
Já houve quem reduzisse luxação de ombro com as manobras preconizadas, mais bola de bilhar (número 7) - com esta colocada no oco axilar do paciente, no momento da redução. Cirurgião que inserisse bolas de pingue-pongue em tórax de enfermo para fechamento do espaço extrapleural. E, certa vez, um colega que, acometido de feroz tendinite, a qual não melhorava com os medicamentos auto-receitados, ainda assim não se dar por vencido. Apelando para o calor, esse eficaz meio físico da fisioterapia. Aí, desprovido de melhor equipamento, botou o ferro de engomar a aquecer e... passou a tendinite a ferro.
Ah, são tantos os usos possíveis para os objetos que o mais possante dos computadores, caso se metesse a registrá-los, queimaria os circuitos integrados já na segunda letra do alfabeto. No "B" de Bom-Bril. E dou novos exemplos, agora no campo da música. Pode-se tirar som de violino (violin-like) de um serrote ferido por um arco. Som de xilofone de um jogo de garrafas com escalonados níveis de água. E som de porco, ora bolas, açulando porco (como Hermeto fez numa gravação). Contudo, eu já deixei de comprar uma flauta de segunda mão, baratíssima, porque o proprietário tinha o hábito de restaurar as chaves do instrumento com um inusitado produto biológico. Casulo de aranhas.
Marcel Duchamp, artista plástico francês dos mais inovadores, usava muito das associações surrealistas nos objetos do cotidiano. Colocando-os fora do contexto habitual, o que fazia deles obras artísticas designadas de ready made. Aqui, aproveito para chamar a atenção do leitor a um fato que acontece nas enfermarias de nossos hospitais. Durante as horas de solidão, os pacientes mais hábeis que reprocessam determinados componentes do lixo hospitalar (frascos e equipos de soro, por exemplo), transformando-os em singelas obras de arte. De arte hospitalar, dou o meu aval a tais criações, mesmo não sendo um crítico de artes plásticas.
Imaginação criadora é também o que não falta aos habitantes do sistema carcerário. Daí, os "cossocos" (armas brancas fabricadas de um quase impossível material), as "teresas" (cordas improvisadas para a escapada geral) etc. Numa de suas fugas da ilha-prisão, Papillon lançou-se ao mar em cima de um saco de aniagem recheado de cocos (um objeto flutuante, pois não). Porém, o mais astucioso engenho para a fuga fê-lo o cirurgião plástico Osmani Ramos, de quem fui amigo em fase pré-criminosa (dele, bem entendido). Utilizando-se de material especializado existente na enfermaria do presídio onde, na qualidade de médico, tinha fácil acesso, ele montou uma escada... de gesso. Sem que chegasse a usá-la, pois que os agentes prisionais a descobriram antes. Mas vai para ele o primeiro prêmio na categoria originalidade.
E a citação de uma mancada histórica. Da parte do cidadão Charles Duell, então diretor do Departamento de Patentes dos Estados Unidos da América, que enviou carta ao presidente William McKinley, no fim da qual pedia exoneração e extinção do cargo. Com a justificativa: "Tudo o que tinha de ser inventado já foi inventado". Em 1889, isso. Quando ainda hoje, um século depois, inventando coisas - e coisando as já inventadas - o homem não dá o menor sinal de que vai arrefecer.

COISANDO INVENTOS
é uma espécie de "resposta" a INVENTANDO COISAS
(que já foi publicado no Preblog, em junho de 2008).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA

No existir monótono do ser humano, e tornado ainda infeliz pelos projetos não realizados, tudo seria bem mais venturoso se súbito um deus aparecesse. Eu não falo de um deus bíblico, muito poderoso, mas de um deus em carne e osso, não preocupado com a espiritualidade. Apenas capaz de transformar algum sonho em realidade, porque instrumentalizado se achasse para isso. Embora coubesse também ao eleito: abrir a porta, recebê-lo cordialmente (não se desleixando nos detalhes de cada situação) e indicar-lhe o quarto de dormir.
Eis a experiência - inesquecível - vivida por quatro eleitos.

Beto, 23, aficionado por automóveis - "A vida toda eu quis ter um carro, mas cadê a grana para isso? Sou franco. Por diversas vezes, cheguei a pensar em puxar um, sair rodando por aí... Mas, seria uma fria, meu irmão. Chega a polícia, me engaveta e, o que é pior, daí para frente sou um cara marcado. Por isso, meu consolo era imaginar que um dia a coisa ia mudar. E como foi que mudou. No dia em que eu estava folheando a 'Quatro Rodas', me babando todo de um Comodoro 88 com opcionais. Entrou um cara meio parrudo, cabelo curtinho, em minha casa. Todo sujo de graxa, me pediu água para beber e lavar as mãos. Dei-lhe água para uma e outra coisa, e disse-lhe também que sentasse um pouco. O homem era cegonheiro, desses sujeitos que transportam veículos das fábricas para as revendedoras. Na porta tava lá o 'caminhãozinho' que não me deixava mentir. Parara por causa de prego. Como eu sempre guardo em casa uma pinga da boa, indo com o jeitão dele ofereci-lhe uma dose... no capricho. O homem ficou doido. Me disse que nunca havia provado cachaça igual. Aí, mandei ver outra, outra e outra. E ficamos amigos. Pelas tantas, sabendo da minha fissura ele me ofereceu a chave de um Monza, para que eu desse umas voltinhas. Saí no carro, né? E ele ficou em casa bebendo da 'branquinha'. E cada dia eu saía num carro diferente, que o gente boa me facilitava. Desde que não faltasse a 'maldita'. Enquanto ele lá mamava, eu rodava com a minha gata. Oito dias, oito carros, até que a polícia apareceu para estragar... a mando dos patrões dele. Mas não peguei cana, né? Não havia roubado nada. Pois é, deus dormiu lá em casa um... não, oito dias, mas para ver que nem ele é perfeito. Eu tinha que pagar o combustível que botava nos carros."
Tony, 45, bicheiro - "Em verdade, foi uma deusa que dormiu lá em casa. Eu me achava num astral mais baixo que poleiro de pato... Tinha levado o fora duma 'mina', numa circunstância que não interessa contar agora, quando a deusa apareceu. Na graça de uma loura - de cinema, meus queridos - que bateu à minha porta. Perguntando por uma pessoa que eu nem conhecia, e depois pedindo para usar o telefone. Ligou várias vezes, porém, do outro lado ninguém atendia. Aí, entre uma ligação e outra, eu puxei conversa. Depois, preparei-lhe um drinque que ela bebeu. E, como o programa dela havia mixado, topou o meu convite para sair na noite. Fizemos um circuito de bar, restaurante e danceteria, nessa ordem. Ao fim da noite, como pessoas civilizadas, fomos pra cama. Perdi a conta do número de minhas cavalgadas até que o dia amanhecesse. Foi safadeza, daquelas que o garoto aqui via nas revistinhas do Zéfiro... a loura topava. Só houve um senão, já no fim. Quando, apesar do imenso prazer que eu tivera, me dei conta do seguinte fato. Não havia visto, nem uma vez só, sombra de orgasmo em seu rosto, corpo... Era grilo com relação a mim? Dela quis uma explicação, meus queridos. E ela, que já estava de saída, foi, me atirou esta: 'Acaso você é Édipo?'" (*)
Juvenal, 56, leitor inveterado - "Bem, eu sou agnóstico. Mas um dia deus dormiu lá em casa. Na pessoa de um vendedor de enciclopédia que bateu à minha porta, com a proposta de vender uma coleção por um plano especial. Não tem ninguém mais bibliomaníaco que eu, mas, ultimamente, eu vinha me privando do hábito. Sem dinheiro para comprar livros e, por vezes, até o jornal. Os tempos bicudos... Aí, eu disse ao vendedor que desculpe mas não dá... Ele até não insistiu muito. E desabafou que fizera uma rota enorme, achava-se naquele momento longe de casa... Já era noite, e eu entendi aquela conversa mole como um pedido de hospedagem. Então, mandei que ele arriasse os livros num canto da sala, e mostrei-lhe o quarto onde ele podia descansar o corpo afadigado. E, noite adentro, enquanto ele ressonava, fiz meu serviço esperto na enciclopédia. Bendita a hora em que fiz meu curso de leitura dinâmica! De modo que, quando o homem despertou pela manhã, eu já estava no verbete 'zwinglianismo'. Depois disso, voltei à realidade só que mais instruído."
Lucas, 38, ufólogo - "Tenho lido tudo sobre o assunto, participado de inúmeros congressos... A ufologia é uma ciência e os ufos são naves espaciais que transportam seres alienígenas, acredito nisso. No tempo de que disponho, chova ou faça sol, armado de luneta posto-me no terraço de minha casa a perscrutar o céu. Certa vez, no terraço... eu ia até me recolher mais cedo, não estava com o aspecto de que ia aparecer algum ufo... Pois bem, mas surgiu algo que me encheu a vista. Não, eu não tinha bebido nem estava tomado de uma ilusão. No descampado, ao fundo da residência, vi que pousava um disco voador. E dele, minutos após, vi que descia um ser indiscutivelmente extraterrestre. Verde, presumíveis dois metros, a cabeça desproporcional ao corpo e com anteninhas, olhos bovinos, os braços finos, longos, com os dedos rentes ao chão... Caminhava arqueado. Um ufólogo tem de estar preparado para o grande momento, recebi o estranho com naturalidade. E graças ao tradutor de línguas - ele estava equipado de um - foi possível a comunicação verbal, de lá para cá e vice-versa. De maneira que, a noite toda, trocamos informações sobre coisas e fatos da Terra e de Cloros, o planeta dele. Clima, fauna, flora, sistemas de governo, esportes, religiões, Plano Cruzado, de tudo um pouco. Fui interlocutor desse deus, porém não o deixei dormir. E não relaxei em meu papel nem quando amanhecia, com ela já a partir... Porque aproveitei para lhe fazer minha última pergunta, uma curiosidade que eu tinha... Perguntei-lhe: 'Como é que vocês transam sexo, lá?' E ele me respondeu: 'Assim, ao mesmo tempo em que os seus dedos agilmente sacolejavam os lóbulos das minhas orelhas.' Por sinal, fizera isso comigo muitas vezes durante a noite. Antes de ele partir, imaginei fotos, vídeo e tal, mas o habitante de Cloros me proibiu de fazer tais registros. Entretanto, eu tenho como provar esse contato de, digamos, quarto grau. Peço apenas que aguardem nove meses, talvez menos. Que a futura mamãe aqui vai deslumbrar o mundo, ora se vai..."

(*) No blog EntreMentes este item foi publicado com uma nova versão:
Tony, 45, bicheiro - "Em verdade, foi uma deusa que dormiu lá em casa. Eu me achava num astral mais baixo que poleiro de pato... Tinha levado o fora duma 'mina', numa circunstância que não interessa contar agora, quando a deusa apareceu. Na graça de uma loura - de fechar o comércio 24 horas, meus queridos - que bateu à minha porta. Perguntando por uma pessoa que eu nem conhecia, e depois pedindo para usar o telefone. Ligou várias vezes, porém, do outro lado ninguém atendia. Aí, entre uma ligação e outra, eu puxei conversa. Depois, preparei-lhe um drinque que ela bebeu. E, como o programa dela havia mixado, topou o meu convite para sair na noite. Fizemos um circuito de bar, restaurante e danceteria, nessa ordem. Ao fim da noite, como pessoas civilizadas, fomos pra cama. Entorpecido pelo álcool, caí em sono profundo até por volta de meio-dia. E, ao despertar, constatei que a deusa, talvez decepcionada pelo meu apagão, tinha ido embora. No espelho do banheiro, havia deixado escrito a batom um número: 1985. Uma charada que, de imediato, eu não decifrei. Mas um bicheiro experiente como eu devia ter entendido o aviso e mandado 'cotar' o malfadado número. Que foi a milhar do tigre que deu, naquele dia, e me quebrou a banca."

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

UMA IDADE DIFÍCIL

Nasci no cabalístico 6 de 6 de 48 (ano com números equidistantes de 6), mas não me tomem pelo anticristo. (Arreda para lá feioso 666, bem sei que quando o espúrio reino estiver para começar, tu antes mostrarás os sinais.) E esse blablablá numérico, de interesse nenhum para quem lê o tablóide, tem de fato o intuito seguinte. Mostrar, com a implacabilidade dos números, a quem quiser conferir na ponta do lápis, que hei chegado aos 40 anos. Uma idade especialmente difícil.
Sim, eu poderia ter pisado no umbral dos meus 40 anos numa festa entre amigos, família... mas que faço eu? Na data natalícia, refugio-me com a mulher e filho numa cidade potiguar. Mossoró, onde Virgulino não entrou e eu escapo - pelo fator distância inclusive - do "parabenizador-pra-você". Preto no branco, petróleo no sal, raciocínio analógico. Eu não falei que 40 anos seria uma idade especialmente difícil? Agora, quanto ao uísque amigo (a curriola merece), eis minha justificação: devo, não nego, mas pago quando puder.
Na véspera, o mar de Majorlândia fazia pano de fundo à latomia da minha Olivetti portátil. Eu tentava furiosamente um intróito para esta crônica. Nesse sentido, em vão tentei. Mas, da solidão e talvez por reflexionar sobre um "farol do fim do mundo" (Julio Verne), arranquei ideia para um conto pequenino. Apenas uma ideia. A musa que preside as letras ainda não se modernizou. E, até hoje, ao ouvido do poeta, continua soprando palavras, fragmentos de frases... quando já poderia trazer o texto completo num teleprompter. Para, aí, o poeta só copiar.
Alguém que completa anos é um pouco como aquele homem da anedota. A cair de um altíssimo edifício e, enquanto a queda não termina, não obstante o previsível desfecho, a dizer "até aqui tudo bem". Ah, seguramente eu não terei mais catapora, papeira, sarampo alemão, essas mazelas infantis. E bexiga também não terei, que esta foi varrida da face da Terra (e da face de seus moradores) pela medicina moderna. Em compensação, devo me preocupar com o colesterol, os triglicerídios, o ácido úrico... ou, preferivelmente, não devo; apenas com os esforços físicos extenuantes, para os quais (esforços sexuais, à parte) decidi que contrato dublê.
E eis-me aqui, quarentão, a driblar a morte. Como no passado, mas ela (epa!) cada vez mais a "manjar" minhas firulas - para um dia, por inevitável, me derrubar feio no gramado. Assim, não adianta mesmo andar de trancinhas, se tem dia que la está a fim de um rastafári. Nem de não jogar gamão. Até lá, é aproveitar as pequenas alegrias da vida de que falou Hesse. Prazer comedido é prazer dobrado, além de mais em conta. E, quando a morte vier, disto me lembrar: ficarei sem boca para rir, sem olhos para chorar.
Finalmente, aos 40 anos, não tenho vocação para ser Paulo, Paulo, no caminho de Damasco. Nenhuma voz, de fonte mal identificada, tem força bastante para promover mudanças bruscas em minha vida. Não caio do cavalo. E mais: vou continuar adubando (com o estrume do animal) os meus pequenos vícios, a ver se bem no meio deles floresce uma grande virtude. "Eras!" Tudo depende de el prisma con que se mira. Por isso, tem sido e não tem sido uma grande jornada esses 40 anos. Tornei a bailar "La bamba" (de novo nas paradas) e ainda não sei o que é votar para presidente (por que será, meu bom José?).
Pois é, 40 anos. Até aqui tudo bem.