sexta-feira, 14 de agosto de 2009

COISANDO INVENTOS

O homem enquanto espécie, ao longo dos milênios, tem progressivamente atulhado os locais onde mora, estuda, trabalha e se diverte de uma infinidade de objetos. São objetos que ele criou, está a criar, para o seu conforto, adestramento, exercício das profissões e entretenimento. À satisfação, portanto, de suas enormes necessidades de espécie mais evoluída do planeta. Antes disso, quando ainda não havia chegado a Homo habilis, e suas exigências era bem menores, ele apenas se cercava de uns poucos objetos. Os trecos que ele ia achando "pelaí" e botando neles as devidas serventias.
Foi somente quando o homem se fez artesão que a coisa deslanchou. Pois, em virtude da habilidade conseguida, ele passou a criar os objetos de que necessitava. A cadeira, por exemplo, para atender ao corpo que pedia o "de-sentar". E cada artefato que ele criava tinha uma só utilidade, mas não por muito tempo. Pois, adiante, aparecerem os sofisticadores dos inventos. No caso da cadeira: 1) quem a colocou entre varais para transformá-la numa liteira; 2) quem a pôs no guincho para cinematografar; 3) quem lhe acrescentou armações curvas para que pudesse balançar; 4) quem a equipou de fios elétricos para ser capaz de eletrocutar...
(Não, a sela não é cadeira; constitui um invento à parte.)
Assim como há os sofisticadores, há os subvertedores dos inventos. Aqueles que encontram para a coisa inventada a sua utilização num contexto, digamos, não familiar. Ora, se por um lado, todo e qualquer invento integra o plano da realidade, por outro, existe nele o germe do suprarreal. E os subvertedores sacam bem isso. Quando, por exemplo, descobrem (Chicago, anos 30) que o estojo do violino é bom também para carregar metralhadora. E, a propósito de ambos os grupos, o leitor me permita esta síntese: são os sofisticadores que aprimoram os inventos (o canivete suíço é a obra-prima deles!), mas são os subvertedores que conferem às coisas inventadas as mais surpreendentes funções.
Para ilustrar o que acabo de dizer, apreciemos as cenas seguintes: o operário da construção civil a trinchar o bife do almoço com a colher de pedreiro / o malandro a marcar o samba tamborilando numa caixa de fósforos / o médico a pesquisar o reflexo de Babinski por intermédio da chave do carro / o molecote que fui a soprar guarânia no pente com papel / e você aí a limpar o cabeçote do gravador com o auxílio de um cotonete... As provas de que, em tempo integral, somos mesmos uns subvertedores dos inventos. Na razão direta em que os objetos todos - do cotidiano - estão aí a pedir algum uso surreal.
Já houve quem reduzisse luxação de ombro com as manobras preconizadas, mais bola de bilhar (número 7) - com esta colocada no oco axilar do paciente, no momento da redução. Cirurgião que inserisse bolas de pingue-pongue em tórax de enfermo para fechamento do espaço extrapleural. E, certa vez, um colega que, acometido de feroz tendinite, a qual não melhorava com os medicamentos auto-receitados, ainda assim não se dar por vencido. Apelando para o calor, esse eficaz meio físico da fisioterapia. Aí, desprovido de melhor equipamento, botou o ferro de engomar a aquecer e... passou a tendinite a ferro.
Ah, são tantos os usos possíveis para os objetos que o mais possante dos computadores, caso se metesse a registrá-los, queimaria os circuitos integrados já na segunda letra do alfabeto. No "B" de Bom-Bril. E dou novos exemplos, agora no campo da música. Pode-se tirar som de violino (violin-like) de um serrote ferido por um arco. Som de xilofone de um jogo de garrafas com escalonados níveis de água. E som de porco, ora bolas, açulando porco (como Hermeto fez numa gravação). Contudo, eu já deixei de comprar uma flauta de segunda mão, baratíssima, porque o proprietário tinha o hábito de restaurar as chaves do instrumento com um inusitado produto biológico. Casulo de aranhas.
Marcel Duchamp, artista plástico francês dos mais inovadores, usava muito das associações surrealistas nos objetos do cotidiano. Colocando-os fora do contexto habitual, o que fazia deles obras artísticas designadas de ready made. Aqui, aproveito para chamar a atenção do leitor a um fato que acontece nas enfermarias de nossos hospitais. Durante as horas de solidão, os pacientes mais hábeis que reprocessam determinados componentes do lixo hospitalar (frascos e equipos de soro, por exemplo), transformando-os em singelas obras de arte. De arte hospitalar, dou o meu aval a tais criações, mesmo não sendo um crítico de artes plásticas.
Imaginação criadora é também o que não falta aos habitantes do sistema carcerário. Daí, os "cossocos" (armas brancas fabricadas de um quase impossível material), as "teresas" (cordas improvisadas para a escapada geral) etc. Numa de suas fugas da ilha-prisão, Papillon lançou-se ao mar em cima de um saco de aniagem recheado de cocos (um objeto flutuante, pois não). Porém, o mais astucioso engenho para a fuga fê-lo o cirurgião plástico Osmani Ramos, de quem fui amigo em fase pré-criminosa (dele, bem entendido). Utilizando-se de material especializado existente na enfermaria do presídio onde, na qualidade de médico, tinha fácil acesso, ele montou uma escada... de gesso. Sem que chegasse a usá-la, pois que os agentes prisionais a descobriram antes. Mas vai para ele o primeiro prêmio na categoria originalidade.
E a citação de uma mancada histórica. Da parte do cidadão Charles Duell, então diretor do Departamento de Patentes dos Estados Unidos da América, que enviou carta ao presidente William McKinley, no fim da qual pedia exoneração e extinção do cargo. Com a justificativa: "Tudo o que tinha de ser inventado já foi inventado". Em 1889, isso. Quando ainda hoje, um século depois, inventando coisas - e coisando as já inventadas - o homem não dá o menor sinal de que vai arrefecer.

COISANDO INVENTOS
é uma espécie de "resposta" a INVENTANDO COISAS
(que já foi publicado no Preblog, em junho de 2008).

Um comentário:

Ynot Nosirrah disse...

"A necessidade é a mãe da invenção."
Quem foi mesmo o autor dessa frase, uma grande verdade, por sinal?