Com um balcão, onze ou doze mesas de fórmica com as respectivas cadeiras, o restaurante nos últimos tempos vinha se despovoando. E, nos fins de semana, oh, dor maior! Ao se constatar que a frequência ao mesmo não passava de uns gatos pingados bebericando no balcão, algum grupo em torno de um violão na mesa embaixo da castanholeira... ("Peraí", restaurante ao ar livre na periferia desta cidade sem um pé de castanhola não existe.) E todos bebendo, bebendo, mas indiferentes aos odores da mão-de-vaca que fervilhava num panelão da cozinha.
O plano consistia do seguinte: os três organizariam o bingo de um peru assado, ficando eles com a renda dos cartões vendidos. E Bucho de Lama, com a renda - que se antevia considerável - das bebidas, dos tira-gostos... Mas, porque o chamassem à cozinha, o proprietário não ouviu o resto da conversa. O capítulo em que os cupinchas planejaram: 1) furtar o peru (comprá-lo, estreitaria bastante a margem de lucro); 2) fraudar o bingo (para que a papação da ave fosse feita por eles, naturalmente). E, daí, a dúvida histórica: acaso tivesse tomado conhecimento de tais nefandas intenções, o velho Bucho teria ainda cedido a casa para a promoção? Seja como for, estás dispensado da peruação, leitor.
O lance de furtar o peru. Encarregar-se-ia do furto o Honorato, mas devidamente alertado para não reincidir em erro anterior. Um erro relacionado com a expropriação de uma galinha do quintal de D. Maju, quando ele então deu bobeira. Por ter deixado, depois que comeu a ave, as penas cadavéricas em seu lixo pessoal, e este, ao ser revolvido pelas mãos indignadas de D. Maju, revelar a seguir o que acontecera. E aí, embora pudesse ainda negar o crime, Honorato, diante de uma conta apresentada pela vetusta senhora, novamente bobear. Ao sair-se com esta: "O quê?! Quinhentos cruzados por aquela galinha velha e dura?!" Quer dizer, sujou.
O lance de fraudar o bingo. Nenhum deles poderia aparecer como promotor do evento, muito menos dizer o bingo. Ia aparecer marmelada explícita. Aí, Armandinho ficou de abordar Amiltão, o dono de um fusca adaptado para divulgações sonoras; Claudionor, de convidar Moleza para mestre de cerimônias do sorteio. O Moleza podia. Integrava a turma, mas não bebia do licor de pera e, por isso, não tinha uma imagem desgastada perante o grande público. Agora, como seria a burla. Um pouco antes de ser chamado o bingo, um grupo muito especial de pedras se submeteria a um processo de resfriamento num depósito de isopor com gelo. Exatamente as pedras que, quando fossem retiradas do saco pelos dedos termossensíveis do Moleza, fariam bater um cartão também muito especial - em poder da trinca.
E chega a sexta-feira. Com o velho Bucho a correr de uma mesa para outra, bamboleando o grande e mole abdome (que justificava o apelido). A limpar, a todo instante, as entradas da fronte (ainda não era calvo) de um farto suor, resultante este do grande trabalho que o movimento da casa estava a exigir dele. Enquanto, no palco improvisado, através de um sistema de som (do tempo em que a casa oferecia seresta), Moleza ia dando o recado. De raro em raro, sacando uma pedra que não tinha nada a ver, mas só... para não dar na vista. A seu lado, à contemplação de todos, e envolto em papel celofane vermelho, achava-se o assado e por suposto bem temperado peru.
De olho no prêmio, a trinca marcava o cartão. Sob a copa da castanholeira, numa mesa já abarrotada de cascos da cerveja consumida. E, ainda, a fazer gracinhas do tipo:
- Balança o saco, pô.
- Ei, esse não...
E riam-se dos chistes proferidos. Até que souberam de um fato pouco animador: o Amiltão recém se mandara depois de embolsar o apurado com a venda dos cartões. O estipêndio da Amiltão Divulgadora, deixara recibo. E, agora, Armandinho, Honorato e Claudionor? Na pindaíba em que se achavam, era tentar junto ao velho Bucho a "pendura" de mais uma cervejada - mas, isso, só depois. Porque o cartão, que estava prestes a ser batido, iria certamente lhes dar ensejo a uma grande "deglu-glutição".
Era apenas o Moleza pegar a última pedra fria, e pronto! Mas, diabos, lá estava ele a sacar toda uma sequência de números que não constavam do cartão. E, ainda, a desperdiçar o tempo com derivações: "22, dois patinhos na lagoa... 1, ronco do porco... 33, idade de Cristo... 90, nas ventas... 44, quaquaquá..." Tudo bem que se quebre a monotonia do sorteio, mas desafiar a Termodinâmica, com suas leis implacáveis, é que não! E, como exemplar lição, ofereça-se à vista de todos o caso vertente, em cujo final se deu a" melódia". Assim que o Moleza gritou: "18, dos outros..."
Bateu o cartão J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
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