"Onde estiver seu tesouro, lá deverá estar seu coração."
E. H. Carr
"A avareza cresce com os anos, porque vai tomando no homem
os espaços que, com o tempo, outras formas de egoísmo
deixam vazios."
Monteiro Lobato
Eta velório para mortal nenhum botar defeito! Falo do velório pedra noventa que fizeram para o comendador Bonifrates, logo que ele bateu as velhas botas. O comendador morrera sem deixar mulher e filhos, mas parentes até do enésimo grau, criaturas dos desvãos do mundo, acorreram em grande número para chorar o seu passamento. Aqui, uma mulher gritava de cortar coração, ali, um homem todo compungido soluçava de dor e, acolá, outra mulher ensopava de lágrimas o ombro alheio. Conjuntivites à parte, as lágrimas rolavam aos borbotões no imperdível velório.
O falecido era o assunto de todas as rodas. E, para assanhar a cupidez geral, os papos iam bater na fortuna que ele presumivelmente deixara. Houve alguém que até estimou o montante de cobres economizados por Bonifrates, à custa de correr atrás dos bondes mas sem pegá-los. Fiu, dentro do espírito de tostão poupado, tostão ganho, só isso já dava uma dinheirama (imaginem o que ganhara de outros modos). Mas aí, surgiu um outro para assegurar que o salto quantitativo na fortuna do comendador se dera justamente quando ele abandonara aquela prática. Para então (epa!) se dedicar a correr na cola dos táxis da cidade, um hábito bem mais rentável.
Pois é, Bonifrates era um gigante da avareza, desses que a gente reconhece pelo dedo. Dedo com unha-de-fome. E, se já para o fim de uma vida de esganação, dele filaram um que outro óbolo para as obras de Santa Engrácia, ora, isso não empanava quase a fama de pão-duro. Ah, o coração mole e dilatado, por vezes abrindo a guarda... Porém, o coração logo, logo se trancando a poder do endógeno digitálico da sovinice, que isso o tranca tinha lá de sobra. E daí, então, por muito tempo, daquela cornucópia não saía uma mísera moeda que não fosse sob a rubrica da agiotagem.
Mas... de que morrera o velho somítico? Segundo a medicina gratuita, de uma pneumonia que ele pegara nas costas. E o que é a morte, meus temerosos leitores, foi o harpagão ceifado por uma doença que a medicina hodierna trata a cascudo. A isso e mais as milhões de unidades da "bolorina" de Alexander Fleming, claro. Entretanto, para este narrador, mais que a pneumonia o que matou Bonifrates foi a sua política de contenção de despesas. Tão rígida que o fez se fiar apenas(mente) no poder curativo das sobras de um frasco de Peitoral de Angico Pelotense. Aliás, sobras que já provinham do tratamento de moléstia assemelhada num tio-avô, falecido com o frasco ainda pela metade. Xaropezinho reincidente, hê, hê...
O caixão - preto com ornatos dourados - de primeiríssima! Com o mesmo balizado por quatro espigados castiçais empunhando as tais velas de alumiar defunto. Ao pé do ataúde, coroas funerárias completavam a "decô". Quanto aos olores, eram tão ativos olores que disfarçavam os miasmas em formação. Dava gosto velar aquele corpo comendatário. Pois, a todo instante, por lá circulavam bandejas com café e vinho licoroso, tabuleiros com doces e salgadinhos... Além de haver uma sortida mesa de frios e, para os bem-espaçados do estômago, a pièce-de-résistance. Que nada faltou ao bom carpidor.
Ah, decerto não era Bonifrates quem financiava o caro funeral. Primeiro, que ele não aprovaria o desperdício, mesmo em se tratando de círio bom, defunto bom. E, segundo, que ele, por estar morto, ficara sem condições de assinar um simples cheque ao portador. De forma que podemos retirar Bonifrates do rol dos suspeitos para substituí-lo por alguns anjos que andavam pelo mundo... Que eram eles os patrocinadores das derradeiras homenagens ao comendador, de olho, porém, naquela jacente herança.
Nesse afã, os anjos não repararam num tipo franzino, de "oclinhos", que circulava por lá com certa desenvoltura. De sua mão direita, pendia uma maleta de cor preta - com que vontade agarrada! Enquanto sua outra mão corria, "pianísticamente", por sobre os tabuleiros das babas-de-moça. Era o advogado do comendador Bonifrates. Um rosto que se abria num sorriso "malúfico" de dissimulação. Porque, leitores, creiam. Naquele velório só ele sabia das extravagantes vontades do comendador, ditadas quando este se achava já nas vascas da morte. Numa carta testamentária bem guardada nos escaninhos de sua maleta.
O segredo, eu conto o segredo como foi: Bonifrates não legou um mísero cobre para ninguém. Deixem que o avarento, para a surpresa dos que conheciam o seu interesse apenas por coisas materiais, estivera nos últimos tempos a estudar o assunto da metempsicose. Indo beber da doutrina da transmigração da alma até no Livro Tibetano dos Mortos. Então, quando pressentiu que a indesejada das gentes se punha a caminho, tomou a providência. Fez-se herdeiro de si mesmo. E deu as condições para ser reconhecido na próxima reencarnação: guri com forte reflexo de preensão palmar, num berço de pau-branco carunchado etc.
É isso. Quem espera por sapatos de defunto a vida toda anda descalço. E nessa história, que acaba aqui, quem ficou calçado foi o advogado de Bonifrates. Para ele, como paga dos serviços testamenteiros, o comendador lhe deixou umas ações bem ordinárias da Panair do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário