sábado, 5 de setembro de 2009

A FLOR DO ABORRECIMENTO

"A melhor crônica a gente não a escreve. Ela nos escreve,
pronta que já estava na sensibilidade comum." - Artur da Távola

Fortaleza, seis horas. À base do sacolejo, eu desperto a manhã de seu sono pesado. Ato contínuo, meus velhos chinelos me arrastam até o banheiro. Neste lugar, reflito: o espelho... por que ele tem de fazer as mesmas coisa todos os dias? Lavar os olhos, esvaziar a bexiga, banhar-se, escovar os dentes. Etc.
De volta ao quarto. Minhas roupas escolhem o corpo que pretendem usar durante o dia. A camisa social, um tórax espadaúdo, as meias (que estão furadas), dois pés de incontidos dedões, a gravata, um pescoço que a não sufoque, assim por diante. E cá estou produzido (no sentido que os estilistas dão a esta última palavra).
"Que horas são?", pergunta o meu relógio de pulso outrora pontual. "Sou quinze pras sete", respondo secamente. Pois acabo de me lembrar de outro relógio, o do ponto, que, para meu especial desagrado, repetirá esta pergunta logo mais. Ah, eu devia ter troçado dele: "Oração? Só na igreja."
Chove aos potes. A caminho do trabalho, eu finjo que não vejo os táxis. Os táxis, todos no desespero, acenando para mim. Passo (ao) largo: estou ocupado com a minha pressa ou apressado com a minha ocupação, sei lá, não quero ser mais um a chover no molhado.
O fato é que, após ter cruzado por alguns barquinhos de papel, eu encalho. Enquanto o sol, disposto a espiar minhas íris, começa a abrir uma imensa clareira nas nuvens. E, como que por desencanto, algo acontece a meu superportátil guarda-chuva (até então oculto sob a camisa). Ele, triunfante, abre o seu amarfanhado náilon. Ao sentir, porém, um pingo de chuva retardatário, ele se recolhe... por precaução.
"Por quanto tempo serei ainda um quarador ambulante?", indago. O astro diurno, "firmamentão" acima de minha cabeça, dissipa os cúmulos dessa dúvida: "Por um tempo inferior ao que se gasta contando até dez". E eu constato que sim, por volta do número 9,756.
"O quê?" Um sabiá-laranjeira agora escuta os sons maviosos que saem dos meus ouvidos - a natureza é bela! A cena seguinte, a de um gato subindo na laranjeira, ardilosamente, demonstra que a a natureza também precisa fazer uma revisão em sua dialética. Enquanto isso, na defesa de seu existir, seja o sabiá menos ingênuo, menos laranja.
O saguão do edifício em que trabalho. À porta do elevador, como sempre, encontro-me com o Sr. Cunegundes que pressiona meu nariz. Ele, invariavelmente, faz isso quando quer subir ao quarto andar. Agora, detestável é o Sr. Coriolano que, para ir ao sexto, tem que dar um chute em minha panturrilha esquerda. Mas hoje vou chiar. "Por que não perta só o meu nariz, como faz o bom, afável e simpático Sr. Cunegundes, e sobe o resto pela escada?" E tomara que não dê zorra. É inominável onde tenho o botão de emergência.
Chego, enfim, a meu escritório. O local em que cultivo, dia após dia, a flor do aborrecimento. Sim, é correto o que disse Alain Rémond: "Um escritório é uma microsociedade governada por códigos que dão origem a incontáveis fofocas, neuroses, paixões". Como é também correto eu desabar, digo, desabafar: "Ai de ti, Homo burocraticus!" Fofocas, neuroses, paixões... estou mesmo encalacrado. Eu, Homo burocraticus.
Eis os sinais: a escrivaninha se fecha para mim, os cafezinhos me consideram um cara frio, fraco e fedorento, a cadeira não aprecia meu estofo e a máquina de escrever, os meus mindinhos emperrados; para o arquivo de fichas sou fichinha; os cigarros se irritam com meus brônquios, o telefone não quer papo comigo, o bebedouro não me engole, o ventilador de teto me põe para circular e resmas de papel ofício mofam... de mim.
Pois é, acho que estou me coisificando. Não escapo nem mesmo de uma cesta de plástico barato da seção. A qual, na fatuidade de seus papeizinhos amassados, a toda hora me joga na cara um... "tá me enchendo, pô!"

3 comentários:

Ynot Nosirrah disse...

Salve, salve, irmãos Gurgel Carlos,

Tenho algumas dúvidas a tentar tirar convosco, que são duas autoridades na história da medicina em nosso Estado. Não sei se estou me comunicando pela via correta, mas é a única que conheço no momento.
Primeiro, qual a lógica que determinou ou determina a construção de hospitais no Ceará? Que critérios eles usaram ou usam para escolher o terreno, por exemplo? Eu estava matutando sobre isso esses dias quando me lembrei que o HGF, por exemplo, foi construído há 40 anos, justamente no Papicu, bastante longe do centro da cidade e de grandes ruas e avenidas, num bairro onde eu presumo que não havia nada além de algumas casas, chácaras e estradas carroçáveis na época, enfim, dentro do mato ou de um manguezal, se considerar a relativa proximidade com a Praia do Futuro, mas hoje está cercado por favelas. O nosso Hospital das Clínicas também foi construído praticamente em uma área rural para a época, há 50 anos. O Hospital São José, que fica mais perto de onde vocês foram criados, eu sei que foi construído em uma área que já era residencial na época, mesmo assim em uma localização meio escondida, relativamente perto do HUWC mas longe de uma grande avenida. Até hoje, quem tenta chegar lá se perde. Os dois Hospitais de Messejana, o do coração e o mental, foram contruídos bem longe do centro e em áreas desabitadas nas suas épocas. Em Sobral, a nossa Santa Casa foi construída há 84 anos praticamente no lugar de uma fazenda. Sua extensão, o nosso Hospital do Coração, está assentado há 13 anos em uma área erma e cercada por terrenos baldios.
Me corrija se eu estiver errado, mas existe mesmo a máxima de que cemitério e hospital devem ficar longe do pessoal? Para hospital, não sei, porque o prometido Hospital Regional da Zona Norte deve ser erguido na Zona Urbana de Sobral, em uma das principais avenidas. Vou comentar sobre isso no meu blog, futuramente. Já os cemitérios, como os mais antigos foram engolidos pelas cidades, os novos estão surgindo às margens das rodovias.
Segunda dúvida: legalmente, quem pode usar o título de "doutor", no Brasil? Na prática, qualquer um usa, mesmo sem ser das áreas de saúde ou do direito. Até emfermeiras estão sendo chamadas de "doutoras".
Terceira dúvida: o que os senhores pensam sobre o jaleco? Qual a importância de usar jaleco? Tenho observado que os médicos pouco a pouco estão querendo abolir o jaleco. Muitos médicos, em diversas especialidades, especialmente na psiquiatria, não usam mais ou nunca usaram jaleco em serviço. Nunca vi um psiquiatra usando jaleco em canto algum. Nas outras especialidades, como nefrologia, infectologia, gineco-obstetrícia, hematologia, reumatologia, neurologia, oncologia, entre outras, existem profissionais que não usam jaleco, enquanto os residentes e os internos são obrigados a suportar diariamente um "gibão branco" feito de tecido incompatível com nosso clima tropical, senão são barrados nas portas dos serviços. Em Sobral, já houve até "staff" passando visita na enfermaria calçando chinelos. Ai de mim se eu fizesse isso.
Quarta e última dúvida: como anda o Ato Médico? Há alguma novidade a respeito? O projeto parou? Eu não me considero prepotente nem arrogante. Não desejo roubar a cena de trabalho de A ou de B, mas acho que todo mundo precisa ter seu lugar definido, não é? Por isso eu gostaria de ver a versão mais atualizada do projeto de lei para confirmar que sou a favor ou não. A última vez que a vi foi em 2005 e não vi nada de errado nela.
Bem, senhores, agradeço pela atenção e espero ler vossa resposta em breve. Desejo-lhes bom resto de feriado.

Paulo Gurgel disse...

Ynot, olá.
Não se pode falar de lógica e de critérios quando da criação dos hospitais que você citou (nem de outros hospitais públicos de Fortaleza). Assim, não houve alguma espécie de "Plano Diretor" para eles. Foram surgindo ao sabor de decisões pessoais, pressões políticas, questões administrativas etc.
Senão, vejamos:
Hospital de Messejana - Inicialmente um sanatório particular de 20 leitos para a internação de pacientes tuberculosos; foi salvo de uma falência aí pelos anos 40 ao ser adquirido pelo Governo do Estado do Ceará; passou depois a ser um nosocômio federal para o atendimento de previdenciários do Norte e Nordeste do país, portadores cardiopatias e pneumopatias; há cerca de 20 anos tornou a ser estadual e de referência para o SUS; construído distante do centro de Fortaleza, por estar numa das entradas da cidade é bem localizado para a sua função de hospital terciário e de referência para todo o Ceará.
Hospital de Saúde Mental de Messejana - Não sei a história desta instituição; por ser também um hospital estadual de referência é aplicável a este, quanto à localização, o que foi dito sobre o Hospital de Messejana (de Coração e Pulmão).
Hospital Geral Waldemar de Alcântara - Construído por particulares foi adquirido, concluído e equipado pelo Governo do Estado do Ceará para ser um hospital de nível secundário; encontra-se bem localizado pela mesma razão.
Hospital Geral de Fortaleza - Pertenceu no início à Previdência Social; a escolha do local em que foi construído deve ter sido por um destes motivos: disponibilidade do terreno em que está e/ou proximidade das residências de uma grande parte de seus futuros funcionários e da elite da população previdenciária a ser ali atendida; foi estadualizado junto com o Hospital de Messejana e o local em que o HGF está inserido vem apresentando um crescente adensamento populacional.
Hospital das Clínicas - Não sei lhe dizer se surgiu antes, ao mesmo tempo ou depois da criação do Campus de Porangabussu da UFC; de qualquer modo, atraiu para a região um grande complexo hospitalar: Maternidade Escola Assis Chateaubriand, Hemoce, Hospital do Cãncer etc.
Hospital São José - Este foi construído pelo Governo do Estado Ceará especificamente para substituir umas enfermarias de isolamento que existiam no Hospital das Clínicas; ter ficado próximo a este, na Parquelância, foi uma necessidade para a sua função de ensino desde o início.
Instituto Dr. José Frota - A velha Assistência Municipal, dimensionada para o atendimento da população de Fortaleza, já que é um hospital municipal, e depois muito ampliada, por se encontrar no centro da cidade, tem uma localização inadequada para uma demanda de pacientes originária de todo o estado; a criação posterior dos chamados "Frotinhas" suavizou esse problema, pelo menos com relação à capital.
Hospital Geral César Cals - Por se tratar de um hospital geral e terciário, destinado ao atendimento de pacientes de todo o estado, a sua localização em área muito central não é boa para essa finalidade. Mas não vamos fechá-lo, por isso.
Ainda há o Hospital Infantil Alberto Sabin (no Planalto Rodoviário), os "Gonzaguinhas", o Hospital Geral do Exército, a Santa Casa da Misericórdia (filantrópico) etc. Porém evito me alongar.
Até.
Dr. Paulo Gurgel

Ynot Nosirrah disse...

Obrigado pelos esclarecimentos.
Com relação ao Hospital das Clínicas, de fato o "embrião" dele surgiu antes da Faculdade de Medicina. Quando se falou pela primeira vez em transferí-la para o Porangabussu, as obras foram assumidas pelo Governo Federal e retomadas.
Sobre o jaleco, o que os senhores acham? Devemos continuar militando em defesa deste costume para não permitir que ele sucumba nas próximas gerações de médicos, apesar de alguns acharem que não precisam mais dele para serem identificados como médicos? Da minha parte, vou manter este costume, independentemente de minha especialidade. Só não concordo com quem desfila de jaleco fora do ambiente de trabalho, transportando microorganismos.