quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DOMURU E EU

Em minhas poucas horas em Kobe, Japão, afastei-me de meu animado grupo de excursão para ir visitar Enryba Domuru, o famoso monge Zen. Encontrei-o no jardim de seu mosteiro, a passear solito, os pés miúdos pisando em folhas secas caídas das amoreiras. Enquanto alguém, que eu não via mas adivinho que seria um discípulo seu, tocava num shamnisen (alaúde japonês de três cordas) cujos silêncios eram belíssimos. Já havendo assistido no Brasil, durante alguns anos, Domuru falava um português razoável - daí haver sido possível o nosso diálogo. E, embora eu fizesse por onde, em momento algum ele perdeu o equilíbrio que o fazia merecedor da boa reputação.

- Como fizeste para alcançar o Nirvana?
- A ti pode parecer estranho, mas foi pela evasão... de mim mesmo.
- E imitando-te... posso eu também chegar a esse estado de paz, plenitude e ausência de todo e qualquer sofrimento?
- Sim, porém aí terás feito... bem, digamos que...
- Pô! Domuru. Sem rodeios.
- Uma besteira. Uma daquelas besteiras... sem tirar nem pôr!
- Espera. Atingiste o Nirvana e agora és contra?
- Nem contra nem a favor, muito pelo contrário. Apenas digo que há tolice no agir de quem, a pretexto de querer chegar ao Nirvana, ignora o Sansara.
- Explica-me o que é isto.
- Não é Zen explicar algo. Todavia... Sansara é a instabilidade das coisas, a transitoriedade da vida, a agitação do mundo. É o que se contrapõe ao Nirvana para que ocorra o equilíbrio.
- E há como resumir tal ensinamento?
- Sim, numa frase. Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
- Puxa! Domuru. É... anfíbio o que acabas de dizer. E suponho que tu tens outras coisas a me ensinar.
- O amor à natureza! Medita sobre o seu equilíbrio de formas, cores... Não há beleza que se compare à de uma rosa entrefechada.
- A beleza de um botão entreaberto, talvez.
- Ora, vejo que estás progredindo... E, para o contato com a natureza, não te eximas jamais das cavalgadas no campo.
- Devo eu mesmo ferrar o animal?
- Sim, conquanto dês uma no cravo e outra na ferradura.
- De acordo.
- E jejua, meu jovem. Pois muito terás de jejuar.
- Sem limites?
- Com. Se não deves matar o cabrito, tampouco deves deixar o tigre morrer de fome.
- Mas... devo apenas meditar, jejuar, maravilhar-me com a natureza?
- Exercita-te também nos trabalhos manuais. Como no ofício da tecelagem, por exemplo.
- Está bem. Serei o que tece as próprias vestes.
- Sem atar nem desatar, prometes?
- Esquece, esquece.
- Então, aprende que o grande Daruma, para alcançar o autoconhecimento, nove anos meditou em frente a uma parede branca.
- Bem, às vezes, eu assisto à missa com um olho no culto, outro no padre. Eu sei que é pouco...
- Ora, é um belo e edificante exemplo, dentre os muitos que encontramos no cristianismo. Esta religião, por sinal da cruz, é a única que oferece a solução para um importante dilema. Imagina que um homem seja colocado entre a cruz e a espada...
- Pode esse homem eleger ambas as alternativas?
- É o que acontece. Ele vira padre-capelão.
- Calma aí, Domuru. Aonde queres chegar?
- Com a ajuda do sin-cre-tis-mo, eu quero chegar ao homem exemplar. Aquele que não é carne nem é peixe.

Nisso, pareceu-me ter ouvido um apito familiar. Do cargueiro, fundeado em Kobe, no qual eu vinha viajando (sem lavar o porão). Ora, longe que eu me achava do porto, nem sei como escutei aquele apito, mas se era real (era!), o navio estava prestes a zarpar. Então, premido pelo pouco tempo que me restava, em mim berrou uma fera imediatista.
- Anda lá, Domuru. Quero agora o teu infalível preceito para desenvolver a personalidade.
- Ó jovem. Quando conseguires não ser boi nem ferrão, não ser vidraça nem estilingue, não ser sândalo nem machado...
Demais! Aí, tomei o meu caminho de volta. Assim: nem tão lento que parecesse provocação, nem tão rápido que parecesse covardia. E penso que Enryba Domuru deve ter gostado desse meu jeito de sair de cena.

2 comentários:

Ynot Nosirrah disse...

Se não me engano, esse monge já apareceu no Casseta&Planeta, há alguns anos. Lá ele também disse algumas tiradas filosóficas bem hilárias. Acho que tenho o programa gravado. Vou procurá-lo.
Falando sério, há alguns dias comentei aqui que muitos médicos não querem mais trabalhar de jaleco, mesmo em ambiente refrigerado, não foi? Essa parte do ambiente refrigerado estou dizendo agora. Disse também que nunca vi um médico psiquiatra usar jaleco, não foi? Digamos que seja meia verdade. Lembrei-me que dr. Antônio Mourão ainda usa jaleco.

Paulo Gurgel disse...

Ynot, olá.
Não teria sido Encyma Domuru, parente em duodécimo grau de Enryba, o monge que andou fazendo suas gracinhas no Casseta & Planeta?