quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O ENTREGADOR DE JORNAL

Sr. Editor:
Num tempo que as rotativas não trazem mais, uma funcionária do setor de vendas de seu jornal, o Diário do Nordeste, me conquistou. Demonstrando possuir um notável poder de persuasão, no decorrer de uma ligação telefônica (de poucos impulsos), essa pessoa operou em mim um feito simplesmente carismático. Por pôr por (quanto eco, meu Deus!) terra o que, até então, era um tabu meu. Comigo carregava a ideia de que eu jamais seria um assinante de jornal ou revista. Sem que isso significasse alguma restrição ao prestigioso jornal que está a publicar esta crônica (travestida de carta).
Antecedendo a abordagem sofrida, eu devo dizer que, a cada dia, já vinha me tornando o mais regular dos regulares adquirentes do DN. A ponto de só falhar em adquirir um exemplar do periódico na terça-feira (o dia da semana em que o jornal sai com material de segunda).
Era que o sol nas bancas de revistas, me enchendo de alegria e preguiça (quem lê tantas notícias?), reforçava um velho hábito meu. Parar, junto a uma delas, a fim de ver que novidades haviam chegado sob a forma de revista, fascículo ou livro. E, após um momento de leitura e outro de livre arbítrio, adquirir uma dessas mercadorias de cultura, informação e lazer. Entretanto, quando nenhuma delas me provocava algum interesse, pelo menos levar um jornal estava garantido. De modo a compensar um pouco o tempo que o dono da banca gastara comigo. Afinal, ele tinha certas expectativas que não podiam ser tão repetidamente frustradas.
Promovido a assinante de jornal, passei a travar contato com uma nova realidade. Nunca mais sair de casa sem saber os parâmetros da nossa economia indexada, por exemplo. Mas não era só isso. Todo dia que Deus dava, passei a reconhecer o som de uma motocicleta que se aproximava, reduzia a marcha e... parava bem defronte a meu portão. Era o entregador. Seguia-se um breve tempo (em que se pressentia que ele estava dobrando o jornal) e lá vinha o meu exemplar. Depois de ultrapassar o muro da residência para, em seguida, cair no jardim: na grama, num cesto de samambaia ou no capô do carro. Precisão cirúrgica não existia nesses lançamentos do entregador.
Agora, respeite o estrondo que o jornal arremessado fazia ao atingir uma parte cimentada do jardim. Era algo tão tonitruante que até o cachorro do vizinho se punha a latir. O cachorro, fique aqui bem entendido. A crise nacional era fogo, mas custa a crer que o próprio vizinho ficasse latindo para economizar cachorro. Apesar de que esta piada, se for lida por ele, possa comprometer a minha política de boa vizinhança.
Por vezes, o resultado do lançamento dava para ser catalogado como "muito além do jardim" (pedindo vênias pela falta de originalidade da expressão). Era quando o matutino, aproveitando-se de uma janela aberta, aterrissava na sala principal da casa, perto do Buda dourado. Ah, matutino sem tino! Supostamento, o entregador se achava em dia de grande forma física. E conseguira dobrar o jornal nove vezes (o limite para um ser humano), antes de lançá-lo. Nunca o conheci pessoalmente, porém o imagino como um moderno discóbulo.
Jorge de Lima cantou para a eternidade o acendedor de lampiões. Outros, com menor claridade, escreveram sobre o jangadeiro, o boiadeiro e a mulher rendeira. Rompendo o ineditismo existente, coloquei o entregador de jornal no centro desta crônica (que o Sr. Editor naturalmente já percebeu que não é uma carta). É minha tentativa de reparar uma injustiça histórica. Pela regularidade com que ele cumpria o anônimo dever, o seu nome deveria figurar no expediente do jornal.
Atrasos acontecem. Se me propiciam uma perspectiva histórica dos acontecimentos, então deixam de ser problemas. Houve uma vez em que ele deixou o meu jornal pegando chuva. Mas não quero, com isso, entregar o meu entregador. Foi a forma liminar que ele encontrou para me dar um importante recado. Comece a aprender a técnica do papier machê. E, se eu deixei passar a oportunidade, a culpa cabe só a mim.

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