quinta-feira, 24 de abril de 2008

JORGE, UM CEARENSE

No local combinado e na hora marcada – com apenas um dia de atraso – consegui iniciar a entrevista de Jorge, esse conterrâneo que vive sob os spotlights da fama. Ele chegou meio mal-humorado, por haver um pouco antes chutado uns paralelepípedos fora de ordem na Rua Tabajaras, e suas primeiras palavras foram de desabafo: “Veja você o que é o comportamento do povo cearense. A caminho desta entrevista, tive de agüentar um ônibus cheio, com as pessoas se apertando como aspargos numa lata... Uma senhora gestante, aí pelo sétimo ou oitavo mês, com um filho remelento ao colo, nem ao menos teve a cortesia de me ceder o assento que ocupava... Quanta indelicadeza, meu Deus!”
Bem, como em matéria de ônibus cheio eu não sou nenhum “pino que satisfaz”, de imediato concordei. Mas, já percebendo que Jorge, com aquele linguajar de “aspargos em lata”, havia-se aculturado. Nos velhos tempos, ele teria dito “caranguejos no surrão” que, a par da superior força comparativa, é uma expressão da maior cearensidade. Se bem que, na presença dele, eu prudentemente evitasse comentar isso. Para não o melindrar, Jorge é difícil “pacas”. E uma pergunta desajeitada, um posicionamento contrário, um ruído diferente do gravador (ou que sei mais eu?) podia levá-lo a bruscamente encerrar a entrevista. Com isso prejudicando, por desídia do repórter, um leitorado que é sempre tão ávido de informações sobre Jorge bem como o que ele pensa.
Acontece que Jorge, como homem de ação, apresenta uma agenda mais cheia do que o calendário turístico da Bahia. E já se constituía num grande tento jornalístico eu estar com ele, ali, numa das mesas do Estoril, imobilizado para um depoimento. Era, daí para frente, não assustar a criança que... “É um erro o individual se submeter ao coletivo, principalmente se tiver dinheiro para o táxi.” Pronto! Ainda com laivos daquilo que recém o aborrecera, mas já era Jorge criando uma de suas frases lapidares. E, ao mesmo tempo, com a graça e a simpatia de volta ao rosto, era ele já sinalizando o começo de um depoimento. Quando, então, podia-se agora apostar, ele deitaria uma enorme falação, dessas de deixar para trás qualquer taxista de corrida longa.
Antes, ainda um compromisso ele me cobrou. Não publicar, em hipótese alguma, a entrevista numa terça-feira “para não se misturar com o material de segunda de que os jornais, nesse dia da semana, são feitos”. Eu não só aquiesci como também, com um generoso acréscimo de minha parte, comprometi-me de que... nem o seu necrológio. E me postei a ouvi-lo – ora discorrendo no bom português, ora na “língua do pê”, ora no “gestual arranhado” – em suas fluentes considerações sobre os mais diversos assuntos. Já, de cara, convencido de que eu estava lidando com o mais acabado referencial da intelectualidade brasileira. Do Oiapoque à Marilena Chaui.
Ele, com a palavra: “O Brasil, ora veja. De país abaixo do equador está passando a ser abaixo do Equador, tão ruim que se acha. Observe a nossa economia: ninguém acredita em nossa moeda, ela serve para jogar cara ou coroa, calçar a perna de uma mesa... e para mais o quê? Se não temos, como os portugueses, um escudo que nos defenda da inflação. Ou se não colocamos, nas cédulas, retratos do Golias, Costinha, João Kleber e outros comediantes, que é para dar mais seriedade... Por isso, cabeleireiros e decoradores têm adotado o milenar sistema de trocas, o qual, aliás, trata-se de um evidente recuo. Enquanto a política aqui não passa de uma arte para administrar a mentira, advogo que devemos aperfeiçoá-la nem que isso nos custe uma fortuna em jetons. E a História? Não explica o que aconteceu entre João XXIII e Joãozinho XXX, o que, pensando bem, é melhor que fique em silêncio. Mas, retomando o assunto da economia: quem sabe a fórmula para oxigená-la é o economista luso-americano Mr. White Martins, ninguém mais. Ou se faz o que ele diz ou, em breve, estaremos todos comendo farofa de alfinete. Mas o que ele diz? O que ele diz, sei lá, muda o que diz a toda hora... Ah, não comer do mel que é servido na ponta de uma faca, parece um provérbio tibetano, não é? Mas é dele, Mr. White. Como também é dele se dizer para não comer do mel enquanto as abelhas voam atrás... Bem, quanto a mim, tenho uns narcodólares ganhos honestamente que me permitem uma existência digna, comparável a do cachorro-ser-humano do Magri. E quer saber de uma coisa? Essa lei em tramitação para revogar a Lei de Gerson não passa. E se passar não vai pegar.”
Quando fala Jorge George Bizarria (o seu nome completo) é aquela catadupa de idéias, imagens e frases. E, quando há umas cervejas na jogada, surge-lhe logo a irrefreável vontade de ir ao banheiro. Mas, leitor amigo, não se diz que, quando um brasileiro decide tirar a água do joelho, o outro idem? No que ele se dirigiu ao banheiro do Estoril, eu também me piquei (epa!) no mesmo rumo. Um detalhe interessante: lá, usando as forças motrizes de nossas micções, disputamos a ver quem empurrava mais aquelas bolinhas de naftalina colocadas na calha do mictório. Ah, felizmente não foi uma aposta a dinheiro pois – menos prostático que eu – ganhou ele.
Em seguida, retornamos à mesa onde nos esperava um barulhento grupo. Com um abaixo-assinado para acabar com a poluição sonora na Praia de Iracema, a hoje designada “praia dos amores que o bar carregou”. Ora, durma-se com um silêncio desses... De qualquer modo, em meio ao alarido que o grupo fazia, eu aproveitei para mostrar a Jorge o meu recente exame audiométrico. Como a prova de que não sou um repórter mono-auricular, ouço sempre os dois lados da questão. Mesmo que o lado “B”, como nos discos do Gonzaguinha, não costume prestar.
E a entrevista, daí para frente, continuou no melhor estilo pinga-fogo porque assim preferiu Jorge.
Uma cor? “O amarelo que um dia persuadirá todos os gostos. A propósito, já que você falou em cor, eu defendo a idéia de que antes do quadro deve-se pintar o cavalete.” Uma pedra? “De preferência fora do sapato.” Um trabalho? “Terminar a minha tese: Porque à visão do prato de fritas o saleiro não funciona. É batata, não funciona mesmo.” Uma frase? “Não vamos nos dispersar, que é de Tancredo Neves quando ainda não havia conhecido as bactérias do Hospital de Base.” Um time de futebol? “O Politheama, do Chico Buarque, que é dono do campo, da bola, das camisas e do apito.” Uma declaração de amor? “Mulher que eu amo não sujo com dinheiro.” Um livro? “Zélia, a Grande Mentecapta.” Um prato? “Baconzitos, que eu gosto de comer na cama com Petúnia, a minha deusa neo-punk.” Um passatempo? “Matar moscas com o jornal dobrado.” Uma virtude? “A da originalidade em tudo o que faço, minha própria sombra me considera um ser inimitável.” Um espírito exemplar? “O poeta singular que foi Vinício de Moral.” Uma preocupação ecológica? “Transfiro-a para os filhos do vento fresco com a mata virgem.” Um defeito? “Ora, basta de confidências, pois nem o meu travesseiro até hoje me arrancou tantas...”
Dito isto, levantou-se. E, com o ar de quem estava dando o papo por encerrado, ante a minha pergunta de quais seriam as suas últimas palavras, foi peremptório: “Não farei como o Aurélio que disse zurzir, zwingliano e morreu. Nessa situação, exclamarei: Ah! A interjeição que é a um só tempo dor e alegria, como a significar o espanto, a ironia por ter que recomeçar tudo em algum outro canto do Universo.” E retirou-se, deixando-me com a sensação final de que acabara de atravessar um oceano de sabedoria. Com apenas dois centímetros de profundidade, sim senhor, mas, de qualquer forma, um oceano de sabedoria.

Em tempo – Por uma questão de fidelidade aos fatos, devo registrar que as suas últimas palavras a este repórter foram verdadeiramente estas: “Neste restaurante, tem uma conta que eu não estou a fim de pagar. Mas espero que você reaja de modo oposto, abrangente e, se possível, sem chiar.”

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