sexta-feira, 11 de abril de 2008

1992

Valerá a pena estar acordado em 1992?
Diante do que o o presidente Collor recentemente anunciou, dando este ano como sendo de arrocho e dificuldades e prometendo algum alívio somente em 1993, presume-se que não.
Por isso, não fique na recessão esperando a depressão chegar. Fuja de ambas as situações da melhor maneira que existe: dormindo.
Encontra-se em nossa cidade o Dr. Rip Van Winkle para ministrar um curso de sono prolongado. O notável mestre, que acumula em seu saco de dormir a experiência de haver dormido 20 anos ininterruptos, foi discípulo de um outro não menos notável, o grego Epimênides. O qual, por sua vez, logrou dormir 57 anos a fio, com a alma desagregada do corpo a estudar Filosofia e Medicina.
Se você está interessado, compareça logo ao Palácio de Morfeu. Trazendo apenas colchonete, travesseiro, pijama ou penhoar (conforme o sexo), tampões de ouvidos, lençol e cobertor.
Enquanto estiver sob seus soníferos cuidados, equipes de monitores treinados encarregar-se-ão de:
- trocar periodicamente os lençóis molhados;
- sacudir o dormidor acometido de pesadelo (mas com o cuidado de não o acordar para a realidade que pode ser bem pior);
- massagear-lhe as panturrilhas e, caso tenham sido previamente solicitadas, outras partes (não-erógenas) do corpo;
- completar o nível de água do copo com a dentadura;
- perseguir de forma implacável grilos, percevejos e pernilongos que ousem entrar no recinto;
- e reconduzir o sonambúlico de volta ao leito.
Dr. Rip Van Winkle não usa porrete, pêndulo, barbitúricos ou mosca tsé-tsé. Apenas o poder natural da persuasão - que teve a aprovação unânime da Food and Drug Administration - acrescido de ligeiras pinceladas acerca de como vai ser o presente ano. Sinta aí: inflação, choques econômicos, mais inflação (com soluços), AIDS, corrupção, cólera, CPI, 59º imposto... Por isso, é largar ou pegar... no sono, e quem tem juízo escolhe a segunda alternativa, claro! Mesmo porque o Mestre do Sono não é de conversar para boi não dormir.
Atenção! Por não se tratar de eletrossono, o método do Dr. Rip Van Winkle não remove os macaquinhos do sótão. Nem faz você ir dormir Ibrahim e acordar Merquior. Apenas ajuda a atravessar o inditoso ano de um modo absolutamente indolor, como se você estivesse dos pés a cabeça untado de xilocaína.
Concluindo o ano de sono, receberá o dormidor um certificado. Para a justificação de todos os compromissos não atendidos, inclusive os relacionados com a Receita Federal. E receberá também uma sinopse do noticiário econômico e político do País. A fim de bem se sair numa questão que, no pós-despertar, inevitavelmente vai formular a si próprio.
Valerá a pena estar acordado em 1993?
Pelo sim e pelo não, no ano seguinte Dr. Rip Van Winkle vai estar novamente a postos.

* * * * *

No início do ano, a TV Globo botou uma parte do seu elenco de profissionais a serviço de uma proposta. Esta: convencer o brasileiro a fazer (depois de inventar e tentar) um 92 diferente. E, para dar o recado global, é que aconteceu na telinha o maior troca-troca artístico. Em que diretor fez esquete, apresentadora sapateou, ator dedilhou violão, atriz cantarolou e até o Primo Rico virou o Primo Pobre (e vice-versa). Ficando assim demonstrado - via exemplos famosos - que qualquer um tem condição de trocar o ramerrão cotidiano por experiências que desenvolvam os pendores latentes.
Requisitos para tanto: uma dose de boa vontade e um afrouxamento na autocrítica (este último fora do script, claro).
Felizmente, não estamos em 69. Porque aí, ocorrendo a proposta da Globo, verificar-se-ia um forte efeito perturbador no plano dos bons costumes. Com inevitáveis consultas - por parte dos erotômanos tupiniquins - ao "Kama-sutra", ao "Positions" ou mesmo à tão aguardada coleção de revistinhas do Zéfiro. Para se inteirarem sobre o que de novo estaria havendo sob o... teto espelhado dos motéis. Mas isto depois de terem eles dado trato às bolas, inventando e tentando, inventando e tentando... Afinal a Globo dixit.
Apertando o botão de forward até chegar a 1992. No reveillón, muito mais que a entrada neste ano, eu comemorei (e "bebemorei") a saída do ano anterior. Ah, intempestivo flui! Porque, para o meu próprio bem, eu devia ter ficado no limbo até as coisas melhorarem. Pois, de saída, aliás, de entrada o que já encontro no ano? As promessas do governo, políticos legislando em causa própria, o problema do menor abandonado, o do maior desempregado, o cartel do cimento, consórcios de carros dando trambiques, as estatísticas de mortos e feridos no trânsito louco, analfabetismo, tráficos de influências, corrupção e impunidade, as doenças se propagando a jato (o ministro, de bicicleta), a novela dos aposentados... Enfim, tudo como dantes no Quartel de Abrantes (inclusive a velha tara de ameaçar com botar a tropa na rua).
No país da "imexibilidade" que a mesmice é também perene, lá isto é. E, pelo andar da carruagem, digo, carroça não dá para acreditar em mudanças à vista. Salvo aquelas que aconteçam para continuar tudo igual, cravo e ferradura levando idênticas marretadas. Então, no meio dessa pasmaceira, vai que eu fique a pensar sobre o que é fazer um 1992 diferente. Um 1992 tão inusitado que o Gerald Thomas ainda não tenha inventado, nem o Cacá Rosseti tentado... Hum, está difícil... A menos que eu, para sair do dilema apresentado, seja tão inovador quanto consigo ser anacrônico.

Feliz MCMXCII, leitor!

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