quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CARTA DE UM NÁUFRAGO

Gosto de ficar horas e horas numa praia deserta. Sou meio Padre Anchieta e, à maneira dele, passo o meu tempo a escrever versos na areia. Uns haicais, quase sempre dedicados à Maria Madalena (essa a minha peculiaridade).
Deu que, na última das minhas andanças praianas, encontrei uma carta. Carta de náufrago, reconheci logo por causa do envelope, tipo casco-escuro, que eu tive de abrir com um saca-rolhas. 
De dentro, espumando - só podia ser de raiva! - saiu esta mensagem:
"Estou (ou sou) náufrago há quase 20 anos numa ilha do Atlântico, talvez perto das costas brasileiras, uma vez que, no meu rádio de pilhas (7 fôlegos elas têm), escuto com alguma facilidade programas radiofônicos desse país. Isto, embora suavize minha solidão, estabelece uma confusão (to)tal na minha mente que, por vezes, chego a tirar o chapéu e a ficar pulando em cima do dito-cujo.
Lembro que, no início de minha estada na ilha, emocionado ouvia as transmissões esportivas que faziam a glória do país do futebol, como era assim designado. Havia times de popularidade, árbitros e bandeirinhas de segura competência e torcidas participantes.
Veio 1964, o ano do rebuliço, quando tudo foi mandado para as cucuias. Primeiro, decretando sob intervenção a Liga de Futebol e, segundo, extinguindo os clubes a ela filiados. Depois, a esse imenso país de arquibaldos e geraldinos, impuseram dois timecos: o C. R. Situação e a Oposição F. C., os quais travariam, a partir de então, a maior pelada de que se tem notícia.
No começo, só dava o C. R. Situação. E não podia ser de outra maneira, pois a Oposição F. C., que já entrara em campo desfalcada, sofria sistemáticas expulsões de seus jogadores. A arbitragem era tão parcial que, ainda no primeiro tempo, acabei com a minha boina italiana.
Já no segundo tempo melhorou alguma coisa. Incentivado por uma crescente torcida, a Oposição F. C. avolumou seu jogo e ameaçou virar o placar. Só não o conseguiu porque o Presidente da Liga autorizou a entrada em campo de alguns jogadoresw (biônicos) para reforçar, em quantidade, o C. R. Situação. Meu panamá de puro feltro não houve como evitar o estrago.
Findou o tempo complementar, o escore equilibrado. Por sugestão do C. R. Situação, acatada com certa relutância pela Oposição F. C., decidiu-se que ia ocorrer prorrogação. Por conta do suadouro, no intervalo concedido, os jogadores de ambos os times mudaram as camisas. Se, no vestiário do C. R. Situação existia um jogo completo de camisas limpas, o mesmo não acontecia no da Oposição F. C., que teve de improvisar com camisas desiguais.
Foi só o Presidente da Liga ver a Oposição F. C. em campo, desuniformizado, recrudesceu. Ou seja: ditou uma nova regra, oxítona, chamada vinculação. A jogada só podia ser armada, desdobrada e completada entre os que estão com as mesmas cores (por exemplo, de alviverde para alviverde), sob pena de anulação do gol que porventura resultar. Casuismo, quando me acalmei minha cartola inglesa estava em pandarecos.
E, por nada mais possuir que proteja minha cabeça do sol desvairado dos trópicos, de forma irreversível, me fiz ao mar em busca do continente. Do continente europeu, que distância não é problema para quem, como eu, sabe nadar de cachorrinho."

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