sábado, 16 de maio de 2009

NUVENS

Em pequenino eu achava que os santos moravam nas nuvens. Cada santo em sua nuvem, conforme a importância. Se o santo era proeminente, a nuvem idem, de modo a traduzir o seu prestígio. Até chegar ao humílimo santo na humilíssima nuvem. Em outras palavras, esse mundo velho sem porteira, mundo cheio de desigualdades sociais, tinha o seu "repeteco" lá nos páramos, achava eu. Nos dias de hoje, chamo isso de visão antropomórfica dos seres celestiais. Ah!, mas eu punha os santos nas nuvens, conquanto não fossem elas negras!... As nuvens negras, esclareço aqui, eram só para os santos mutuários do Banco da Nublada Habitação. De santinho-do-pau-oco para baixo.
Um que destoava era São Jorge. No mister de aporrinhar o dragão, o santo inglês morava no local de trabalho. Na Lua, dindinha Lua. Desanuviado por convicção, o santo pelejador ainda mora lá. Fosse nefelibata, a sua inseparável lança teria virado um para-raios. Mas, raios! Por que santo (afora São Jorge), depois de uma existência terrena agoniada, escolhe ir morar numa nuvem a um pulo daqui? E por que, cargas d'água (ô expressãozinha apropriada!), após sofrer o diabo nas mãos dos dioclecianos da vida, santo resolve ir morar numa nuvem a um tiro de canhão daqui? Quando há os anéis de Saturno...
Eram perguntas da mente infantil jamais respondidas. E viver nas nuviosas fofuras... para santo tinha lá suas vantagens. Primeiro, não havia a monotonia da paisagem; segundo... Espere aí, a monotonia da paisagem talvez seja melhor do que esse eterna-metragem sensaborão. Da Terra para santo ver. Aliás, desde as famosas estripulias do Barão Vermelho que morar nas nuvens só apresenta desvantagens. O avião supersônico, o canhão a laser, o satélite "xeretão" e agora essa mania salobra da nucleação artificial. Eta costumezinho bobo! Como era antes: dia da faxina, a santarada em mutirão, São Pedro ao comando... "Hora de esgotar, pessoal!" E a chuva benfazeja caía sobre as plantações.
Quantas vezes eu me recostei na relva para apreciar o pleomórfico espetáculo! Sopradas pelo artífice vento, as nuvens a formarem enxundiosas figuras de animais! A anta, o rinoceronte, o urso, a ovelha... Ganhava de longe a ovelha. Aliás, o lanífero animal mais parecia - ainda parece - uma nuvenzinha que baixou à Terra. E eu via no céu outros animais também feitos do algodonoso material, mas isso em pequenino. Hoje, quando penso que Magalhães Pinto vislumbrou nelas a política, estraga tudo. "A política é como a nuvem; olha-se outra vez e já mudou." Pois bem, foi depois dessa comparação que Magalhães Pinto adotou o guarda-chuva, talvez receiando alguma nuvem derramadeira. O guarda-chuva. Para proteger a careca e a casa bancária. Sub umbra alarum tuarum protege me.
Nas histórias em quadrinhos um tipo de nuvem é bastante comum. Observada do chão, ela se confunde com as demais nuvens distribuídas à sua volta. Porém, ela oculta o covil de um astucioso vilão - é uma nuvem artificial. De onde ele, através de uma avançada parafernália, espreita a Terra para cometer suas vilanias. Só que o vilão, no final, entra em trombas (d'água), sempre. Aliás, quase sempre. Não esqueçamos o guerreiro poderoso que, depois de saciado na bendita Geni, partiu incólume em seu zepelim prateado. Numa nuvem fria...
Agora, o leitor atente para estes versos:
"Abraço a Juno ou, louco, abraço aquela
Nuvem de ouro ilusória e vagabunda?!...
Minha ventura, ó céus, é tão profunda,
Tão larga e tanto que eu duvido dela!"
Pertencem ao soneto "Íxion", de Raimundo Corrêa. Reza a lenda que Íxion, rei dos lápitas, fora admitido no convívio de Júpiter e de sua esposa, a deusa Juno. Ultrapassando os limites da conveniência, Íxion fica perdidamente apaixonado pela deusa. Avisado da corte desrespeitosa do rei dos lápitas, e também para pô-lo à prova, Júpiter produz uma nuvem dourada, com a forma de Juno, e a coloca junto dele. O louco apaixonado corre a abraçá-la, mas o ciumento Júpiter, com o seu poder divino, o precipita no inferno aos cuidados das Fúrias. Na mansão dos mortos, o pobre Íxion é amarrado com serpentes a uma roda de fogo, a qual nuca cessa de girar, girar, girar...
Moral da história
Quando a nuvem é dourada o melhor é deixá-la passar. Em branca nuvem mesmo.

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