Todos os dias recebo cartas de pessoas que me escrevem com os mais diversos pretextos. Leio-as e depois as destruo em meu moedor de carne que já conheceu tempos de abastança. Entretanto, guardei uma das que chegaram nos últimos tempos por sua singularidade:
"Prezado senhor:
O que proponho nessas linhas vem a ser uma verdadeira revolução na literatura universal. Porque estou certo de que toda obra literária, mesmo no fastígio da glória, ela tão-somente aspira à simplicidade da anedota. E não estou a falar apenas da que se filia ao gênero picaresco, cujo anseio parece óbvio. Constato que todo obra literária deseja é se resolver logo, através do discurso direto, curto e objetivo. Ao invés de devanear por aí porque o autor assim estabeleceu. Ainda mais que os tempos de hoje (em que a pressa é a tônica) estão a exigir um enredo sem volteios, onde o leitor chegue asinha ao final. E possa depois dizer que leu o livro tal... (ai!) num tapa.
Para começo de conversa, acolhendo o que proponho o escritor ganharia tempo. Ao escrever romance, novela ou conto bastar-lhe-ia compor início e final. Nada de meio! Esse enchimento de linguiça em que o escritor supostamente põe o talento. E para que essa coisa execrável separando o escritor do escrevedor? Só serve para discriminar, criar párias na arte literária. Portanto, abaixo o talento que sabe a prolixidade.
E viva a sinopse! Uma comissão de lacônicos poderia muito bem reescrever os clássicos. Eis como ficaria, por exemplo, o "Dom Quixote de la Mancha": Era um vez um fidalgo idealista que, com a mente excitada pelas façanhas dos herois dos livros de cavalaria, se dispõe a correr mundo para desfazer erros e vingar agravos. Alto, magro, beirando os cinquent'anos, para fazer com que a Mancha, sua terra natal, também participasse da glória que iria adquirir, adota o altissonante nome de Dom Quixote de la Mancha. Em suas aventuras, acompanha-o o gordo Sancho, seu fiel escudeiro, a quem o fidalgo prometera a posse de bens materiais que resultassem de suas andanças. Mas dão os dois com o cavalo e o burro na água, respectivamente. E a história termina com Dom Quixote recuperando a razão, em seu leito de morte, e com Sancho pouco recompensado por tão morosa empreitada.
Dirão uns que a obra revisitada fica sensaborona. Entretanto, pior é perdermos tempo lendo romance de autor russo. Prolixo, não! Apenas porque o seu editor pagava por página escrita. Viremos, pois, essa página. Já se foi a época em que o escritor dava ao lume uma obra maçuda (e maçante) só para impressionar, mostrar que tinha fôlego, por aí... Agora, economizar é preciso. E nos sobrará tempo para ler livros e mais livros, naturalmente reescritos.
E o que se economizaria de papel. Um ganho ecológico, por sinal, já que o papel é fabricado a partir da celulose e esta provém de florestas arrasadas. O que é a ironia, prezado senhor. Cada vez que o Partido Verde faz circular um manifesto, ele, por baixo, pôs abaixo umas tantas criaturas vegetais. E aqui aproveito para sugerir que as crianças usem mais o megafone.
Felizmente, ficou para trás o estilo barroco. O sujeito escrever, com aquela tola riqueza de ornatos, uma estrofe inteira para nomear o galo! Mas, ainda há muito o que mudar. Dá na vista que continuamos nós, escritores, mal colocados quando alguém sentencia que um desenho vale mil palavras. Não passamos de uns verborrágicos, meu senhor, e nos esvaímos na mais reles verborragia desatada. Digamos numa palavra aquilo que o pintor só possa expressar em mil pinceladas. E teremos aprendido a lição de Ezra Pound, em seu "ABC da Literatura" (Cultrix, 218 páginas). Oh, perdão...
Precisamos emagrecer o estilo. De modo a reaproximá-lo do seu original sentido de ponteiro (de osso ou metal), com que se escrevia sobre a camada de cera das tábulas. E, de quebra, facilitaríamos a edição, o transporte, a distribuição e o manuseio dos livros, pouco importando suas quantidades. Também resolveríamos o crônico problema da falta de espaço nas bibliotecas. Toda a obra infanto-juvenil de Jules Verne num único livro de bolso... não parece até ficção?! Asseguro inclusive que a microfilmagem não ousaria tanto em termo de redução.
Na nova ordem literária pouca gente sairia perdendo. O prefaciador, que seria desmontado do dorso alheio (não se tolerando que ele voltasse como posfaciador), e... ah, Xerazade! Eu falo da sultana Xerazade que, todas as noites, contava uma história cheia de peripécias para o sultão Xaryar, seu marido. E, com tal artimanha, ia adiando a morte já decretada pelo marido, que não era besta de perder o entretenimento. Não, eu não me apiedo de Xerazade. Mesmo porque um dia, aliás, uma noite a sua imaginação iria mesmo bater pino.
E, finalmente, peço desculpa pelo muito que se alongou a carta. Em minha proposta, prezado senhor, a epistolografia constitui a exceção.
Esperando uma resposta favorável, creia-me seu sinceramente
Dr. Carta Pácio."
Não respondi. E guardei a carta com este acrescento: "Escrever numa folha de papel em branco é uma forma de perturbar-lhe o silêncio (Samuel Beckett)".
PGCS
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