quinta-feira, 22 de julho de 2010

LABORES LABORATORIAIS - 1

A Questão Lafi
Em 1968, fui contemplado com uma "bolsa" de um laboratório farmacêutico. Chamava-se Lafi a empresa que me concedeu essa "bolsa", uma casa farmacêutica que nem existe mais. Na verdade, os compromissos que eu assumia por lá tinham mais as características de um subemprego; porém, por não me tomarem muito tempo, não me traziam problemas para o meu curso de graduação na Faculdade de Medicina. Aliás, possibilitavam-me que eu aprendesse um pouco de Farmacologia, sem ao menos ter passado por essa disciplina. E havia ainda os "caraminguás" que eu ganhava do laboratório, por sinal muito bem-vindos.
A Farmacologia era ensinada no quarto ano da Medicina e, em 1968, eu ainda estava no terceiro ano. No Lafi, deram-me um exemplar do Litter, tido como o melhor livro de Farmacologia, no qual eu devia estudar as aulas que, ao longo do ano, teria de ministrar aos propagandistas do laboratório. Não esquecendo de incluir nelas as informações contidas numas apostilas que me chegavam do departamento médico do laboratório.
Essas aulas aconteciam aos sábados, a partir das 11 horas, na sede da empresa à rua Assunção, no centro de Fortaleza. Assistiam às minhas exposições três propagandistas e o próprio gerente regional do Lafi, Dr.Valdemar, um bacharel em Direito.
Uma segunda atribuição minha na empresa era ajudar na promoção de seus produtos. Cabendo-me fazer isso exclusivamente com os meus mestres na Faculdade de Medicina. Ganhei uma valise preta e, a cada mês, o Lafi deixava em minha residência uns caixotes com amostras de seu produtos farmacêuticos. Aos poucos, eu os distribuía com meus professores e, por ser inevitável, também os distribuía com meus colegas de turma. Findo o período de distribuição, eu tinha de fazer um relatório para só então receber uma nova remessa de medicamentos.
O Lafi comercializava duas dezenas de medicamentos, não me lembro do nome de todos. Havia: o Dienpax e o Nitrenpax, sedativos do grupo dos diazepínicos, sendo o segundo um remédio especificamente para dormir; o Clorana e o Triclorana, nomes comerciais da hidroclorotiazida e da hidroclorotiazida associada ao triantereno, diuréticos até hoje muito prescritos; a Disteoxina, uma medicação "hepatoprotetora" (conforme a crença da época na existência dos remédios para o fígado); o Tetracloroetileno Lafi, um vermífugo a ser tomada na dose única de dez "pérolas" para o tratamento da ancilostomose; a Bituelve (do inglês B-twelve), à base de vitamina B12; e o Betamicetin, o nome de fantasia do cloranfenicol do Lafi.
A última droga da relação citada fez-me, certo dia, passar por um pequeno vexame. Quando tentei sugerir ao professor Dr. Murilo Martins que a incluísse em seu receituário. O médico hematologista, de quem teria aulas no ano seguinte, era radicalmente contrário ao uso do cloranfenicol, por considerar que esse antibiótico, entre os efeitos adversos, podia causar anemia aplástica. E, tentar contornar a situação alegando que no Betamicetin, por estar o antibiótico associado a vitaminas do complexo B, reduziria o risco para a aplasia medular, só fez aumentar a gafe.
Algum tempo depois, já desvinculado do laboratório, eu ouviria do Dr. Glauco Lobo (pai) a seguinte história. O emérito cirurgião fora chamado para atender um paciente em casa, quando suspeitou de que estaria diante de um caso de intoxicação digitálica. Mas era uma situação improvável, já que o paciente não devia estar usando digitálico. Entretanto, ao conferir os remédios que ele vinha tomando, encontrou a Digitoxina (à razão de três comprimidos ao dia) entre os mesmos. Como consequência de um erro que acontecera numa farmácia, onde alguém dispensara a Digitoxina (no lugar da Disteoxina).
Como se vê, a "letra de doutor" causava seus problemas já naqueles tempos.

2 comentários:

Fernanda Martins disse...

Dr Paulo, o Sr poderia contar mais sobre as embalagens e as propagandas destes remédios que se refere?
Eram tradicionais para a época? Havia algo de marcante nelas?
Acontece que meu pai fez várias destas embalagens e seu depoimento seria muito importante.

Obrigada. Fernanda Martins

Paulo Gurgel disse...

Fernanda Martins, olá.
Não disponho de mais informações sobre remédios de minha época como acadêmico de medicina, além das que já coloquei nas postagens Labores laboratoriais 1 e 2 e Tem remédio?, todas no Preblog.
Numa certa ocasião, respondi assim um e-mail de um leitor:
Caro LC Franca, olá.
Como diria Jack, o Estripador, vamos por partes:
Desconheço qualquer ligação do Lafi com o Procienx, em 1968. Recordo apenas que o Lafi comprava o Valium, do Roche, e o vendia com o nome de Dienpax - e mais barato! É possível que fizesse isso com outros produtos que comercializava.
O prefixo "ana" tem origem grega, significa repetição, separação etc, está em palavras como anatomia e análise, e não sei porque foi colocado em Anamebil e Anastrongil.
Betamicetin era o antibiótico cloranfenicol do Lafi (rever meu artigo no Preblog).
O processo de formação do nome Bituelve é também explicado no artigo.
O Dienpax era um tranquilizante utilizado em adultos de todas as idades. Como o Frontal, atualmente, o qual ainda não existia naquela época.
Nitrenpax (HQ?) era um remédio para insônia.
Na anemia hipocrômica as hemácias empalidecem (como o dono). A deficiência de ferro é a principal causa desse tipo de anemia.
Ascarbiron, Disenfórmio e Sedavier eram do Procienx.
E os folders são das duas casas farmacêuticas, apenas não me recordo deles.
Um abraço.
Dr. Paulo Gurgel