terça-feira, 7 de setembro de 2010

A CONSTITUIÇÃO DIVINA

Apesar de escrita por linhas tortas, a CD primou por ser bastante sucinta:
Artigo 1º - É proibido comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal.
Parágrafo único - Ficam revogadas as disposições em contrário.
O que significava dizer que, no Paraíso, se podia fazer praticamente de tudo, que não dava bronca. Exceto comer do fruto proibido, o qual tinha de apodrecer no pé, por maior que fosse a fome do saber.
Mas o ser humano fraquejou ao cair na língua bífida de uma serpente. E foi expulso do Paraíso. Passou a ter uma existência de dor e sofrimento sobre a Terra. O homem a comer o pão, que não lhe acrescentava miolos, com o suor do rosto (aliás, do corpo inteiro). E a mulher a parir os filhos com dor, lamentando-se por não pertencer à ordem dos marsupiais.
Quando alguém cometeu o primeiro crime de morte, Deus intuiu que tinha de endurecer. Que era o momento de tomar certas providências que premiassem o mérito e punissem o crime e a contravenção. Criou o Céu e o Inferno.
Nos primeiros tempos os conceitos eram bastante claros. Cada ser humano sabia o que era certo e o que era errado. Para se comportar ele seguia o livre arbítrio - uma boutade de Deus para descrever o universo das coisas previstas. Sabia o ser humano que, ao fim de sua terrena existência, dois desfechos existiam: ao homem justo, um kit de camisola, sandálias e harpa que ele ia usar no Céu; ao carga torta, uma carona na ponta de um espeto até a Geena, onde ele ia ser fritado.
Um dia, o Inferno teve um enorme apagão. Sem dizer água vai, Deus quase pôs fim à espécie humana. Por ter informações privilegiadas, Noé escapou com a família e com os animais que não tinham a ver com o peixe. Aqueles que sobreviveram ao temporal foram recebidos em terra firme com um arco-íris ao fundo - sem pote de ouro! Não era oportuno recomeçar o povoamento do planeta sob a nefasta influência da cobiça.
Com a sociedade humana crescendo e se tornando complexa os limites da ética e da moralidade foram ficando confusos. Apesar de já existir um dispositivo infraconstitucional com 10 Mandamentos para tentar pôr ordem na casa.
Para dar alguns exemplos: crime de morte é gravíssimo, mas o que dizer quando o mesmo é cometido, em larga escala, durante uma guerra? E a mentira piedosa que é contada ao que vai morrer? E o contrabando, o caixa dois e o descaminho? E palitar os dentes na Sexta-Feira da Paixão?
Dividir os pecados em capitais (aqueles que são cometidos nas cidades maiores) e veniais (aqueles que são punidos com doenças venéreas) não contribuiu para que as pessoas entendessem aonde Deus queria chegar.
Nem quando Deus também criou o Purgatório Binacional, com sede na fronteira entre o Céu e o Inferno, para as purgações de segurança mínima. Dirigido por uma comissão bipartite de anjos e demônios, e com a presidência ocupada pelo sistema de rodízio, o Purgatório não durou um milésimo de eternidade. E bastou que um papa desse anistia aos pagãos para que virasse um mamute branco.

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