sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

QUANTO FOI?

Numa certa época, quantas vezes não me sentei em um banco da Praça do Carmo! Mas não se tratava de instantes do desfrute de algum otium cum dignitate desse seu criado Matias, porque eu então me achava na flor da meia-idade. Sabem como é, eu não gostava de ir gratuitamente (o taxista concordaria?) ao centro da cidade e, mesmo hoje, só faço isso quando algo me obriga a tanto. Então, sentar-me num banco da praça era para mim uma espécie de interregno, entendam assim. E era também a oportunidade de dar uma boa engraxada nos sapatos.
Invariavelmente, eu escolhia para sossegar as pernas o banco em que "batalhava" um engraxate perneta. Como forma de incentivar o trabalho de um deficiente físico ou porque este se mantinha reservado e silencioso durante a função, até hoje não sei. O fato é que me desagrada a tagarelice de certos profissionais, sobremodo quando pode me atrapalhar a leitura de um jornal, revista ou enciclopédia. Sacrificar esse hábito para ficar escutando, por exemplo, que "quando Cabral chegou ao Brasil, seu moço, isso aqui já estava cheio de caboclo baiano" não é nada interessante. E isto, por exemplo, foi o que eu já ouvi, com esses ouvidos que a terra há de comer, de um engraxate que fazia ponto na Praça do Ferreira.
Como um dia sintetizou o sábio alquimista, falar é prata e calar é ouro.
Calar, naqueles instantes, era para que pudesse ler em sossego o meu jornal. De modo que, lustrados os sapatos, ilustrado um pouco mais ficasse o dono deles. Embora se questione a vantagem (qual? qual?) de um homem moderno viver bem informado de tragédias, a "peça de resistência" da nossa imprensa. Em matéria de tragédia botamos os gregos no chinelo. Fora os raios desferidos por Zeus, temos todos as tragédias dos gregos e, ainda, a maior de todas as tragédias. É que somos, como alguém já observou, economicamente trágicos.
Toc, toc. Era o instante em que o engraxate perneta, com duas pancadinhas da escova na lateral de sua caixa de trabalho, sinalizava que o serviço fora concluído. Eu parava de ler o jornal, de fazer minhas ruminações (V. parágrafo anterior) e, ato contínuo do Banco do Brasil, metia a mão no bolso com uma pergunta já na ponta da língua.
"Quanto foi?".
E, assim que ele dizia, pagava-lhe o serviço feito - com alguma gorjeta (gratificação que se destina à gorja ou garganta, segundo os etimologistas). Era o sinal de minha aprovação ao serviço feito.
Apesar de não ser exatamente o caso, dali eu saía assoviando o "André de sapato novo", só parando nos breques do chorinho para olhar os pisantes e envaidecer-me de como eles tinham ficado.
Um dia, porém, a minha pergunta recebeu uma resposta inesperada (dita com certa animosidade até).
"Você num já sabe quanto é? Por que pergunta?"
Exatamente quanto custava a engraxada naquele dia eu não tinha a menor noção. E, no país da inflação, haja cachimônia para alguém se dedicar a acompanhar preços e tarifas. Nenhum bem aqui produzido, nenhum serviço aqui executado vinha conseguindo sustentar o preço do dia anterior (só meses após é que o Funaro entraria no saloon para curarizar os etiquetadores das lojas e dos supermercados). Portanto, eu precisaria de um computador da última geração que custaria... aí por volta dos... ora, esqueçam. Tinha encontrado um lustrador de sapatos que não sabia onde estes apertam!
Retirei-me com a afronta atravessada na garganta, sentindo-me um perfeito Aureliano ("era para eu perguntar ou responder?").
Mudei de engraxate. Pouco tempo depois, mudei de sapatos. Para aqueles que dispensavam a atenção dos profissionais do brilho.

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