Ontem (27.07.81) e anteontem, este jornal deu guarida na seção "Cartas do Povo" a duas missivas do Sr. Paulo Gurgel Carlos da Silva, nome um tanto esdrúxulo que confere a Carlos status de família e rebaixa Gurgel ao status de indivíduo. Simbólico, o fenômeno, se analogado ao posicionamento do autor das cartas, que, professa o que eu chamaria anti-ecologismo.
O Sr. Gurgel Carlos deve ser identificado aos interesses do chamado "capitalismo selvagem", que não é tão-só a materialização daquele aforismo do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), que antecipou uma concepção do homem como fera para o seu próprio semelhante (homo hominis lupus). A palavra locucionada aí ("selvagem") bem que significa implicitamente destruidor da natureza, da fauna e flora silvestres, e dos recursos e belezas naturais. O problema ecológico é produto do capitalismo, da instituição capitalista motivo-lucro, e do individualismo considerado como defeito do capitalismo. O sistema capitalista converteu as atividades econômicas em processo de entropia, como reconhece o economista Celso Furtado. É que as denominadas deseconomias externas, vergonhosamente consentidas e sancionadas, estão na essência desse capitalismo reduzido a um mecanismo e estrutura de destruição, poluição e obstrução da natureza.
O Sr. Gurgel Carlos procura zombar de uma causa que hoje constitui o apanágio dos idealistas, humanistas e cientistas (v. o Clube de Roma). Assim, escreve gaiatamente, mas indubitavelmente faz humor negro com um tema trágico e apocalíptico. Sob os termos ecológicos que , denuncia uma doutrina subreptícia, que tenta impingir aos leitores, de modo circunloquial e solerte, mas indigente ou falto de conhecimentos de ecologia.
Vou fazer uma amostragem disso.
Na carta de anteontem, o Sr. Gurgel Carlos lança em cena a sua personagem J. Natura, o Ecólogo. Apenas prova, porém, seu despreparo ou má fé intelectual para com o assunto em que se imiscui, se intromete e se intruja. Diz, por exemplo, da referida personagem, com a qual visa a ridicularizar a ciência e técnica ecológicas:
1) "Apanha a roupa passada num armário onde passeiam baratinhas jamais dedetizadas."
Ignoraria o Sr. Gurgel Carlos que o DDT pode ser utilizado mediante cuidados próprios, isto é, ecologicamente? Ignorantia non est argumentum.
2) "Estacionado entre os pilotis do edifício, o seu (dele, J. Natura) fusca a álcool, comprado numa decisão sábia de não poluir as ruas com chumbo tetra-etila, produto tóxico existente na gasolina."
Defenderia o Sr. Gurgel Carlos as multinacionais do petróleo?
3)"Lá (na feira de pássaros), J. Natura circula comprando avezinhas canoras" (entre as quais, cita "periquitos australianos"). "depois, fora da cidade, "liberdade para os emplumadinhos".
Existirá alguém, afora o Sr. Gurgel Carlos, que não saiba, em função de um mínimo conhecimento ecológico, que pássaros, quer domésticos ou domesticados, quer oriundos de outro ambiente ou clima, não tem condições de sobrevivência nessa liberdade que J. Natura lhes concede?
Na carta de ontem, o Sr. Gurgel Carlos faz uma incursão ao reino da prosopopeia, onde põe a monologar novo personagem que cria, Coqueiro da Varjota, alusivo a uma palmeira dessa espécie, recentemente condenada à morte por uma sentença judicial. A nova personagem, nascida que é das motivações anti-ecológicas do Sr. Gurgel Carlos, fala gaiatamente, de acordo com o humor que o seu criador pratica. Para Coqueiro da Varjota (leia-se: o Sr. Gurgel Carlos os homens têm dois defeitos: "bedelhismo" e hipocrisia. E é aí que a personagem se confunde com o autor. Este, logicamente, pertence à malsinada espécie homem, e é por isso que, através de Coqueiro da Varjota, mete o bedellho no affair e afronta "tantos coqueirófilos" (sic), além de solidarizar-se com o cacique Juruna ("estão me jurunizando", afirma) e com a Amazônia ("que ninguém liga", comenta).
O último defeito dos homens, conforme Coqueiro da Varjota ou o Sr. Gurgel Carlos, isto é, a hipocrisia, fica meio indefinido. Deveria o criador da personagem ter dado um claro pronunciamento ecológico, porque não parece que defenda realmente o cacique Juruna, ou seja, os remanescentes indígenas e seu habitat, que é correlato dos recursos naturais, pertencendo embora à categoria que o economista S. V. Ciriacy-Wantrup denomina recursos culturais tangíveis. Outrossim, o cacique Juruna, como se viu pela televisão, proclama as propriedades medicinais da jurubeba, em face dos medicamentos quimioterápicos das multinacionais; e, por outro lado, a personagem J. Natura é usada pelo Sr. Gurgel Carlos para mofar dos medicamentos homeopáticos ("a homeopatiazinha para a hipocondria de sempre", que a personagem se receita pela vontade de seu criador). E, quanto à Amazônia, deveria a personagem Coqueiro da Varjota ter qualificado aquele "ninguém" a que se refere, que não podem ser pessoas como os ecologistas tão ostensiva e ofensivamente ligados àquela região saqueada pelas multinacionais, mas que sim podem ser pessoas como o próprio Sr. Gurgel Carlos, cuja desova ecológica é das mais suspeitas.
Cordialmente,
Oswaldo Evandro Carneiro Martins
(29 de julho de 1981)
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