sábado, 16 de março de 2013

O RELÓGIO SAPECA

O relógio tinha o aspecto de um cachorrinho sapeca com as feições humanizadas. O cabelo de franjinha (lembro-me deste detalhe) e de como ele, com muita graça, empunhava um ramalhete de flores amarelas. Em contraste com a cor de fundo do objeto, entre o verde e o azul.
Na verdade, o cachorrinho descrito era a "capa" sob a qual se ocultava o mostrador do relógio.
Levantada aquela "capa", via-se a hora pelo sistema digital e, ao mesmo tempo, ouvia-se uma música. Uma musiquinha fina, metálica e de poucos compassos. Não duraria muito sem o "da capo" programado para fazer repetir a melodia.
O relógio não tinha um "made in" para indicar onde fora fabricado. Puerto Stroessner? Seria um bom palpite. Avaliado na "feira dos relógios" da Praça do Ferreira, seria classificado como roscofe (termo pejorativo para rotular um relógio de má qualidade).
Como nada é eterno, principalmente nas mãos de um guri, em pouco tempo o relógio ficou defeituoso, com as horas se sucedendo caoticamente. Pior: o conjunto já não se mantinha fechado, o que fazia a música ficar tocando ad infinitum.
Então, dei um jeito de amarrar a capa no corpo do relógio. Para isso, usei a pulseira (de quatro cores, esqueci de descrevê-la) do próprio relógio e o condenei ao esquecimento de uma gaveta. Tentei, pelo menos. Mas, vez por outra, quando eu abria a gaveta, o sacolejo afrouxava a pulseira e o relógio voltava a tocar a impertinente música.
Passei-lhe uma fita durex, porém esta logo cedeu.
Aquele relógio, de poucos cruzados, não tinha mesmo um grande valor. Mas não me agradava deixá-lo tocando e tocando até acabar a pilha. Talvez porque fosse uma crueldade deixá-lo esvaindo-se em música.
Nós, intelectuais e pseudos, somos pessoas sensíveis. Cada nota desperdiçada é uma gota de sangue derramada pelo relógio, pensamos assim. Vislumbrando para ele o mesmo destino dos relógios "derretidos" do Salvador Dalí.
Qualquer crime contra o tempo, ou contra um de seus agentes, é um crime hediondo.

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