sábado, 23 de fevereiro de 2013

CHICO E O ELEPÊ "VIDA"

MÚSICA
Para os cultores da boa música popular brasileira um acontecimento sempre esperado é o lançamento do disco anual de Chico Buarque. Trazendo o título de "Vida", nome também de uma das faixas, o seu último elepê, produzido pela Polygram (os vindouros deverão ser editados pela Ariola, com a qual Chico acaba de assinar contrato), já se encontra nas lojas e departamentos de discos.
Doze canções compõem o disco: "Vida" (inédita), "Mar e Lua" (gravada também por Simone), "Deixe a Menina (inédita), "Já `Passou" (inédita), "Bastidores" (gravada também por Cauby e Cristina, separadamente), "Qualquer Canção" (inédita), "Fantasia" (já gravada pelo conjunto MPB-4), "Eu te Amo" (inédita), "De Todas as Maneiras" (já gravada por Maria Bethânia), "Morena da Angola" (recentemente gravada por Clara Nunes), "Bye Bye, Brasil" (gravação anterior do próprio Chico em compacto) e "Não Sonho Mais" (sucesso recente na voz de Elba Ramalho).
Nestes registros fonográficos Chico esbanja cérebro e coração. É o letrista (desenvolto) de todas as faixas e também o musicista (inspirado) de quase todas; quase, porque ocorrem parcerias em "Eu te Amo" (com Tom Jobim) e "Bye bye, Brasil" (com Roberto Menescal).
Meus comentários sobre cada uma delas:
"Vida" - Da peça "Geni". Mostra o autor a se posicionar no plano existencial. No início, uma dúvida ("quem sabe eu fui feliz") que, entretanto, evolui até transmudar-se em certeza ("eu sei que fui feliz"). Um instante de comoção poética: "luz, quero luz / sei que além das cortinas / são palcos azuis".
"Mar e Lua" - Também da peça "Geni". Fala de um amor proibido entre duas mulheres em uma cidade distante do mar, que "levantavam as saias e se enluaravam de felicidade". Marcadas pela incompreensão humana, buscaram uma fuga suicida "correnteza abaixo" e, à maneira de um enredo mitológico", "foram virando peixes / virando conchas / virando seixos / virando areia / prateada areia / com lua cheia / e à beira mar". O renascimento simbólico delas, em uma cidade grande, quiçá menos repressora.
"Deixe a Menina" - Um samba melodicamente bem conduzido que lembra o Chico dos velhos tempos. Um conselho que fica: "por trás de um homem triste / há sempre uma mulher feliz / e atrás dessa mulher / mil homens sempre tão gentis". É bom dar-lhe ouvidos.
"Já Passou" - Uma canção no melhor estilo joão-gilbertiano. O autor veste a pele de alguém sentimentalmente ferido e, ao mesmo tempo, obsessionado em demonstrar que "já curou". Convence.
"Bastidores" - Música que vem impulsionando o reaparecimento artístico do cantor Cauby Peixoto. O cotidiano de desilusões, medos e hesitações de uma cantora de cabaré que, a despeito de tudo, ainda brilha em cena: "cantei, cantei / jamais cantei tão lindo assim / e os homens lá pedindo bis / bêbados e febris / a se rasgar por mim".
"Qualquer Canção" - Momento de lirismo do Chico. Uma melodia simples a conduzir uma letra, cuja preocupação maior é tocar o coração até de quem não ama.
"Fantasia" - Samba com a abertura à maneira de uma fantasia (em linguagem musical). Pode proceder daí o título da canção. Ou, então, do convite, imaginoso, para que a gente distraia "o erro do suplício ao som de uma canção". A palavra de ordem é mesmo cantar "noite e dia".
"Eu te Amo" - Chico vê(-se) um amante que perde a noção das horas, que não sabe como partir. "Nas travessuras das noites eternas" o amor é um desvario que parece chegar ao mundo não-anímico. Confiram neste terceto: "como se na desordem do armário embutido / meu paletó enlaça o teu vestido / e o meu sapato ainda pisa no teu". Jobim comparece ao piano (a música é dele), majestoso. Há também a participação vocal da cantora Telma.
"De Todas as Maneiras" - Uma espécie de balancete sentimental fechado com perdas. Depois "de todas as maneiras que há de amar", o amante que (in)tenta desvencilhar-se ("larga a minha mão / solta as unhas do meu coração") daquela que, até então, fora a pessoa amada. Simplesmente, por não se conter a um apelo de fora "quando chega o verão".
"Morena de Angola" - Composta por Chico em terras angolanas. Uma letra de ambientação "afro", com o emprego calculado das palavras (chocalho, canela, cochicho, cacho, remelexo etc.), uma estocada ideológica, quando o autor diz: "morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA", e um ritmo assaz envolvente.
"Bye Bye, Brasil" - Do filme de mesmo nome, trazendo de volta um Menescal velho (o que quer dizer novo) de bossa. É, ao lado de "Eu te Amo", a música de maior riqueza harmônica do LP. Vem, entretanto, com um arranjo mais "fechado" do que o da gravação original, em compacto simples. Aqui, bauxita e fliperama, Parintintins e e calça Lee, caminhão e patins, toró e Rua do Sol - Maceió formam os contrastes de um Brasil antropofágico. Desse entrechocar de culturas ainda é possível se esperar que, "com a bênção do Nosso Senhor / o sol nunca mais vai se pôr". Apesar de tudo.
"Não Sonho Mais" - Do filme "República dos Assassinos". Fala de "um sonho medonho / desses que, às vezes, a gente sonha /e baba na fronha / e se urina toda e quer sufocar". Ora, um sonho medonho não pode ser descrito em termos brandos e Chico vai a fundo no antilirismo. É um baião estilizado.
Ainda umas considerações finais. Sobre o Chico-intérprete: ele está mais agradável, mais solto em sua voz pequena. Sobre o amigo Francis: ele também deve ser lembrado pelos arranjos e regência deste bem elaborado disco.
Por tudo que vi e ouvi, recomendo.
1º. de fevereiro de 1981

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