O fato é que comigo se passa o seguinte. Achar que um texto recém-concluído, desvirginando a brancura do papel, por si já se constitui um antegozo. Sim, porque o gozo propriamente dito dar-se-á apenas por ocasião da publicação. Ah, que bom se houvesse nesses casos a ejaculação precoce... Não ficando o autor à espera de uma publicação que tarda e, às vezes, nem sequer acontece.
Eis no que divirjo da poeta norte-americana Emily Dickinson: a publicação é parte necessária do destino de um escritor.
Mas, falando ainda da companheira, ela não é de ter muitas exigências. Quando apresenta algum defeito, disso se encarrega o especialista. No dia seguinte, lá estou eu com a máquina como se nada houvesse acontecido. Todo irrequieto, debruçado sobre ela, a escrever mil caracteres por hora. Esperem aí: mil é muito? é pouco? Não faço a menor idéia do que representa essa vazão datilográfica. Oscar Wilde se deu por satisfeito porque, ao longo de uma manhã, escreveu uma vírgula e, à tarde, a desescreveu.
Bem, nesse meu afã, somente uma coisa poderá me interromper. Haver chegado a hora de trocar a fita.
Meu Deus, como detesto o servicinho sujo! E fico a adiar o momento em que vou fazê-lo, mesmo sabendo que é apenas uma questão de tempo. Bater forte nas teclas ajuda um pouco, até certo ponto. Mas... quando a gente vai, descobre que tem de teclar duas, três vezes cada letra para que ela saia no papel, aí não dá mais. É fazer hoje o que devia ter sido feito ontem, anteontem... Meio parecido, aliás, com o que também acontece a meu violão. Apenas quando a pátina (gostaram?) já recobre as suas cordas, abafando-lhe o som, é que encordoamento novo ele recebe.
Máquina de escrever com fita nova está tudo resolvido. Não, não está. Por vezes, a fita substituta é tão ruim de tinta, que tudo continua como dantes. Com as letras sendo "anemicamente" impressas no papel, para desespero de quem, depois de tanta relutância, é que se abalançado havia a substituir a fita. Até que, consumidor logrado, sabem qual foi uma vez a minha reação? Escrever no ato um candente protesto ao fabricante - e com a fita de carregação ainda na máquina, esse o meu azar!... Porque o fabricante, obviamente, deve ter recebido a minha carta de reclamação... em branco.
E ficou o escrito pelo não escrito.
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Coube a um brasileiro, o padre João Francisco de Azevedo, a invenção da máquina de escrever. Idealizado e construído à mão por ele, este invento figurou na Exposição Agrícola e Industrial de Pernambuco, em 1861. Registro o fato porque muitos ignoram quem é o inventor e - mais ainda - que ele é brasileiro. Padre Azevedo, apesar de festejado em sua época pelo que fez, nenhum lucro material veio a auferir com o invento.
E a gente logo associa a máquina de escrever ao piano. Pois, como o instrumento musical, a máquina através de suas teclas produz uma espécie de música. Tlec, tlec, tlec... Só que bastante monótona a musiquinha, não acham? Uma tecla que aperto tem o som parecido com o da seguinte, assim por diante.... Máquina de escrever versus piano, eita comparação gasta e antiga! Na época de sua invenção, eis como a "Revista Ilustrada" já descrevia a máquina do Padre João Francisco de Azevedo:
"O sistema geral é quase idêntico ao dos pianos, isto é, por meio de um teclado, convenientemente adaptado, consegue-se transmitir ao papel os caracteres correspondentes, formando palavras, linhas, parágrafos, enfim, a escrita regular de uma ou mais páginas. O teclado está disposto em quatro pequenas carreiras, tendo cada tecla a indicação de uma letra; assim pois, tocando-se uma tecla, a letra correspondente vai imprimir-se num papel que envolve e desliza por um rolo no cimo do aparelho. Para a separação das palavras, basta tocar em uma pequena régua colocada ao fundo do teclado."
É... a máquina de escrever nem de longe tem os recursos do piano, instrumento que sola e harmoniza. Em compensação, ganha dele em materialidade. Pois, enquanto vou tlec-tlec-tlec solando, vou também com ela criando a própria "partitura".
Não fora assim, e pedindo vênia à minha "Olivetti" pelo que vou dizer, melhor seria compará-la a uma concertina de botão.
Publicado no jornal O POVO, em 07/01/92, e no livro MEDITAÇÕES
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